CINEMA: “Assassinato no Expresso do Oriente” Uma Bem-Sucedida Reciclagem de Agatha Christie

Em cartaz em todo o Brasil, a nova versão de “Assassinato no Expresso do Oriente” (Murder on the Orient Express, 20th Century Fox, 2017) é puro luxo. Dirigida pelo inglês Kenneth Branagh que, além das transposições de obras William Shakespeare para a telona, tem um vasto currículo de ótimos serviços prestados à indústria cinematográfica em gêneros diversos, como o filme de super-herói (“Thor”, 2011) e o conto de fadas live action (“Cinderela”, 2015), a produção nada deve à adaptação mais famosa de Hollywood, de 1974, dirigida pelo mestre Sidney Lumet e igualmente recheada por astros e estrelas da nova e da velha guarda.

Quem leu a obra homônima de Agatha Christie (1890-1976) – autora de maior sucesso comercial da literatura popular, com mais de quatro bilhões de livros vendidos, só perdendo para a Bíblia e o bardo inglês –, pode imaginar o quanto pode ser complicado transpor para o audiovisual hoje em dia uma das mais de 80 narrativas da “Dama do Mistério”, cujos detetives preferem usar a massa cinzenta do cérebro ao invés de se exercitar em neuróticos movimentos pirotécnicos, ao estilo dos videogames. Esperto, Branagh sacou logo de saída que apresentar às novas gerações (e ainda cativar as mais antigas, familiarizadas com a escritora) esse tipo de romance policial precisaria mais do que as incessantes acrobacias da câmera, uma marca do cinema digital atual, caso contrário ele faria qualquer coisa… Menos Agatha!

 

No papel da Sra. Hubbard, uma viúva americana moderna para a
época, Michelle Pfeiffer rouba a cena. É a segunda vez nesse semestre que a
atriz veterana se destaca. Elajá havia causado boa impressão em
“Mae!”, de Darren Aronosfsky, há cerca de dois meses atrás. Ela segue
o mesmo caminho de outra beldade do passado, Lauren Bacall, que se destacou no
papel em 1974 (Foto: Divulgação)

Sem abrir mão da essência da Christie – pelo contrário, essa talvez seja a sua mais fiel adaptação nas telas –, o diretor abusa da atualização que os recursos tecnológicos possibilitam para revelar o luxuoso trem Orient Express, praticamente um personagem, sem descambar para a ação frenética, como aconteceu na recente migração para as telas de outro detetive da literatura, Sherlock Holmes, nos longas capitaneados por Guy Ritchie que transformaram o franzino personagem de Conan Doyle no atlético galinho chicken little Robert Downey Jr., chegado tanto a um bafo de bode quanto a um bom quebra-pau num ringue de boxe.

Mantendo a narrativa em jogos de diálogos que tornam o longa-metragem quase teatral, Branagh mostra reverência ao legado da autora, preferindo, salvo uma cena de ação ou outra enxertada, contrabalançar os estáticos duelos verbais com o percurso da câmera por ângulos inesperados ao longo do mais emblemático trem de luxo da história, que levava os bem-nascidos de Paris a Istambul, entre 1893 e 1962, até ser nocauteado pelas dificuldades de ultrapassar as fronteiras terrestres entre Oeste e Leste durante a Guerra Fria.

É primorosa essa produção toda realizada em estúdio, amparada com competência pelo uso preciso de muita computação gráfica de primeira linha que torna plausíveis as sequências passadas fora do trem embarreirado pela neve, em contraposição ao requinte de cenografia e figurino revelado dentro dos claustrofóbicos vagões que servem de cenário para um crime com doze suspeitos.

 

Nada diferente do que se esperaria do minucioso trabalho do cineasta, que também interpreta o protagonista, o pomposo detetive belga Hercule Poirot, cuja eterna busca pela ordem e perfeição o tornam o mais arguto observador capaz de desvendar o qualquer quebra-cabeça criminal. Ao impregnar a obsessão do personagem pela simetria com nuances de T.O.C., a porção-ator de Branagh parece falar de si própria, dado o preciosismo com que o diretor trata qualquer produção sua, seja no tratamento plástico quanto na direção do elenco.

O casting, por sinal, é um caso à parte, outra tirada genial do diretor. O filme dos anos setenta entrou para os anais da história hollywoodiana pela altíssima concentração de ídolos por metro quadrado: além de alguns no auge – Albert Finney, Michael York, Jacqueline Bisset, Vanessa Redgrave e um Sean Connery recém-saído da franquia “007”  –, o filme resgatava monstros sagrados da Era de Ouro que tinham sido aposentados, a contragosto, pela revolução de comportamento que sacudiu os anos 1960: Lauren Bacall, Ingrid Bergman (que ganharia o Oscar de ‘Melhor Atriz Coadjuvante’ pela missionária atormentada Greta nessa produção), Anthony Perkins (o Norman Bates de “Psicose”), John Gielgud, Wendy Hiller e Richard Widmark, além de coadjuvantes de luxo como Martin Balsam e Jean-Pierre Cassel.

Veja trailer oficial:

 

Na nova produção encabeçada por Branagh, brilham Judy Dench, Johnny Depp, Willem Dafoe, Derek Jacobi e Josh Gad, além de estrelas em ascensão como Daisy Ridley, a mocinha da nova trilogia “Star Wars” e até o bailarino ucraniano Sergei Polunin, que do Royal Ballet se catapultou para o mundo da moda, estrelando de capas e editoriais para publicações tipo Vogue Hommes e abrindo desfiles na Semana de Moda Masculina. Mas, o destaque maior vai para a viúva casamenteira vivida por uma Michelle Pfeiffer aos 59 anos, brilhante, mandando ver. Ela continua linda apesar da ação do tempo, sem medo de dar a cara a tapa. Merece ser lembrada no Oscar.