Uma das maiores características de Allan Souza Lima como artista sem dúvidas é sua versatilidade e intensidade em interpretar os mais diversos tipos. De Jesus a cantor de funk, frei, bandido… Seja lá o que for, Allan tira de letra. Pernambucano nascido em Recife, depois de uma breve participação em “Mania de Você” (atual novela das 21h na Globo), Allan está gravando no interior da Paraíba a 2ª temporada de “Cangaço Novo”, um dos maiores sucessos no streaming nos últimos tempos. E foi nessas andanças pelo interior do Brasil que foi despertado o lado fotógrafo desse artista cheio de inspirações e transpirações, onde nasceu o projeto “Sertão Íntimo”. E nessa nova entrevista para a MENSCH, Allan fala disso tudo e mais um pouco, desde a influência de Chico Science na sua vida até seu trabalho como diretor.
Ator, diretor, roteirista, produtor… e ainda um pouco fotógrafo e ainda se arrisca na música. Ou seja, a arte em suas várias formas de fazê-la. É muita energia e talento fervilhando na cabeça? Pode parecer um pouco piegas, mas, desde que me entendo como ser humano, sempre respirei arte. Grande parte da minha vida é marcada por isso e minha cabeça sempre está fervilhando em processos de criação, em querer executar as minhas ideias. Sempre anoto todas elas, especialmente, as mais interessantes que estou registrando para, em algum momento, executá-las. Tenho um processo de tempo e de maturação – quando uma ideia se torna contínua na minha cabeça, é porque acho que é hora de agir em cima. Se não, permanece ali, escrita no papel – talvez eu a reencontre em algum momento, se for interessante. Tenho uma alma inquieta, sempre tive – sou inquieto por natureza. Acredito que o artista é isso: vivemos da inquietude. E acredito que é assim que faz parte do início da minha transformação como ser humano – naturalmente, também transformamos os outros.
Indo para o início, foi através da música que você chegou à dramaturgia, né isso? Em especial com a influência de Chico Science. Como foi isso? A música é especial. Comecei minha trajetória artística com ela, e meu primeiro contato foi vendo o Science no muro da casa vizinha. Subi e vi os primeiros batuques nas alfaias, e acho que foi até antes da formação do Chico Science & Nação Zumbi. Aquilo me inspirou, e, a partir disso, comecei a estudar e a tocar bateria. Eu toquei, me aprimorei no conservatório, tive uma banda, e foi assim que, por meio de um integrante, passei a conhecer o teatro. Essa foi a transição. Conheci o palco aos 15 anos, mas sempre quis ser músico – na verdade, desde pequeno. Tive várias bandas de rock, de samba… Sempre me encantou. E minha relação com a música é intrigante para mim, a ponto de eu debater muito sobre ela na terapia, porque não consigo ouvir as letras. Em qualquer som que ouço, não consigo focar nas palavras. Lembro das melodias com precisão quase fotográfica, mas as letras, não. Estou sempre atento aos acordes e uso essa sensibilidade sonora no meu trabalho como diretor, especialmente como ator. Escolho sempre uma faixa específica, algo que me traga o beat, o punch que ajuda a compor o personagem. Por exemplo, quando escolhi Aerials, do System of a Down, para a Cravinhos. A vibração da música me permitiu visualizá-la como um batimento cardíaco, e os picos dessa melodia refletiam os momentos intensos do personagem. Pode parecer uma loucura, mas essa é a minha percepção melódica que levo para o meu processo criativo, seja como diretor, ator ou ao ler um roteiro. O som, sempre esteve presente na minha vida.
Você é daquelas pessoa que não podemos fazer a pergunta “e se você não fosse ator, o que seria?” (risos). Mas, alguma vez na sua vida, já pensou em enveredar por outros caminhos que não fosse a arte? Refleti muito sobre isso durante a pandemia. Lembro de ter lido uma frase de algum filósofo que dizia que “em períodos de transformação, cada pessoa intensifica uma característica sua: o mais obsessivo, o mais depressivo, o mais medroso, o mais corajoso, o mais transformador”. Essa ideia ressoou em mim. Pensei “não tenho mais arte na minha vida no momento; preciso buscar outro caminho”. Foi quando comecei a explorar o setor alimentício e empresarial. Passei um tempo vivendo em fazendas, onde montei uma pequena empresa e me dediquei a experimentos com cogumelos, como shimeji e shiitake. Estudei esse cultivo por cerca de oito meses e cheguei a plantar dentro de casa, compartilhando parte do processo nas redes sociais. O cultivo de cogumelos é quase alquímico, cheio de técnicas específicas e demandas como a criação de estufas. Aos poucos, a produção ganhou proporções maiores, e comecei a vender shimeji, shiitake e outros cogumelos naturais. Percebi, então, que também tinha uma inclinação empresarial, mas não segui adiante porque o trabalho com o cultivo exige dedicação diária, e entendi que, sem estar presente, a empresa não prosperaria. Foi uma experiência valiosa, que me mostrou meu potencial em outras áreas. Hoje, sigo desenvolvendo essa veia empreendedora, com investimentos imobiliários e outros negócios que comecei a partir dessa primeira descoberta, na pandemia.
Você é de Recife, formado na CAL (Curso de Artes de Laranjeiras), no RJ, e que ganhou o mundo como ator. Como foi essa trajetória até o reconhecimento do seu talento como ator, se tornar nacional? Olha, posso dizer que minha trajetória foi a mais comum, mas também muito batalhada. Algumas pessoas têm muita sorte de conseguir um grande papel logo no início da carreira, mas eu fui conquistando meu espaço aos poucos. Nesses 20 anos, trabalhando no Rio como ator, construí minha vida dia após dia, ano após ano. Encaro minha trajetória como uma escada, que fui subindo degrau por degrau. Sinto que essa construção lenta, tem sua beleza. Quando alcanço algo, as pessoas ao meu redor até dizem que eu deveria gritar de felicidade. Mas, na verdade, não sou de grandes celebrações – prefiro pensar “conquistei mais um espaço”. Não tenho altos picos de euforia, pois os considero perigosos. Foi assim que aprendi a lidar com conquistas e perdas. Para mim, essa estabilidade é uma proteção. Quando algo dá errado, desço um ou dois degraus, mas não mais que isso, porque tudo foi construído com solidez. Esse processo gradual me prepara tanto para as quedas quanto para as vitórias, sem me deixar desestabilizar. Recebo tudo com equilíbrio, seja positivo ou negativo. Essa é a minha visão.
Talento esse comprovado pelos mais diversos tipos interpretados por você, de índio a cantor de funk, de padre a assassino, …e por aí vai. Como é seu processo de criação? É difícil, às vezes, de desapegar de um personagem? O que posso dizer é que cada artista tem seu próprio processo criativo, e nenhum é igual ao outro. Pode até surgir algumas semelhanças, um traço comum, mas jamais são idênticos. Por isso, valorizo tanto a presença de preparadores de elenco em certos projetos, porque ajudam a dar unidade ao conjunto da obra, mas, ao mesmo tempo, eu tenho meu processo particular. O meu método, pessoalmente, envolve uma imersão profunda na vivência do personagem. Para mim, é essencial me aproximar o máximo possível da experiência de ser aquele personagem e manter-me nesse estado o máximo de tempo que consigo. Sou extremamente obsessivo em meus processos criativos e sempre digo que busco a perfeição, mesmo sabendo que ela é inatingível. E essa “obsessão”, acredito, é crucial para a criação. Também costumo escolher uma música específica para cada personagem e, durante as filmagens, ouço apenas aquela canção. No processo de Ubaldo, por exemplo, passei oito meses ouvindo a mesma música repetidamente — talvez três ou quatro mil vezes. São esses detalhes que alimentam minha criatividade. Esse espaço profissional me permite essa obsessão, que considero quase indispensável para o meu trabalho. E sobre desapegar, é muito louco. Ao mesmo tempo que há apego, não quero reencontrar esse personagem – digo que o mato no auge da paixão. E ele chega ao fim nesse ápice, onde ocorrem as maiores loucuras, pois acredito que é nesse instante que o personagem deve partir. E, por mais que eu me desapegue — estou dizendo e refletindo aqui —, mesmo me despedindo dele, às vezes acabo ficando com resquícios como as dores internas, as feridas que ele abriu. Me parece inevitável, mas ao mesmo tempo transformador.
Você está gravando a segunda temporada de um dos trabalhos de maior sucesso no streaming, Cangaço Novo. Esperava por esse sucesso todo? A que se deve isso? Acredito que, ao fazer nosso trabalho, não esperamos pelo grande sucesso — esperamos que dê certo. Quando se fala de sucesso, creio que não cabe a nós, artistas, pensarmos sobre isso. Nosso papel, é executar o trabalho com o máximo de maestria, e, a partir disso, as consequências virão naturalmente. O sucesso, afinal, tem uma fórmula que ninguém descobriu até hoje. Se soubéssemos como alcançá-lo, todo projeto seria um sucesso ou ao menos, a maioria deles. No caso de Cangaço Novo, alguns elementos específicos contribuíram para o potencial da série. Desde a escolha do local de filmagem até a escalação de personagens com perfis reais – tudo foi pensado para imergir no universo criado. Nós, atores, nos lançamos de fato na experiência, vivendo as dores dos personagens ao máximo, especialmente, na primeira temporada. Muitos não se desligaram dos papéis; mergulhamos na natureza e nas vivências dos personagens. A união da equipe também foi crucial — todos estavam envolvidos de corpo e alma, acreditando no projeto. Outro aspecto que considero fundamental foi o rompimento com barreiras hierárquicas. Em algumas produções, há uma separação artificial que impede o ator de se comunicar com o roteirista, sendo encorajado a conversar apenas com o diretor. É uma estrutura militarizada que, honestamente, eu acho insuportável. Lutamos para quebrar isso. Eu queria dialogar com todos, entender cada camada do trabalho. Essa unificação entre roteiro, direção e atuação, somada ao talento de toda a equipe de produção e arte, é uma das forças que potencializam o projeto. Essa tríade cria a base para o impacto visual e emocional da obra, e acredito que, por conta disso, o trabalho se torna verdadeiramente potente.
Como está sendo essa volta com o Ubaldo Vaqueiro? Que desafios ele lhe traz? Posso dizer que estou encarando esse retorno com muito cuidado. Esse personagem me marcou profundamente, e trouxe à tona conflitos emocionais e pessoais que me abalaram até depois do trabalho. Até cheguei a enfrentar o início de uma depressão, com muitas feridas ainda expostas. Agora, com o tempo, decidi voltar a ele de forma mais cautelosa. Para mim, essa segunda temporada do Ubaldo representa uma jornada de cura — e acredito que isso se refletirá naturalmente no personagem.
E dentro do universo da TV, recentemente você participou dos primeiros capítulos da novela Mania de Você ao lado de Mariana Ximenes. Foi breve mas intenso. Como é o processo de encarar um personagem com pouco tempo de exposição? E como foi pra você esse trabalho? Algo de novo? Foi uma experiência breve, mas intensa. Encarar um personagem com pouco tempo de exposição exige uma entrega total – você precisa dar tudo de si, explorar o máximo de criação que consegue. Por ser uma participação especial na primeira temporada, o tempo para construir uma narrativa emocional foi curto. Então, precisei entrar no “pico máximo” de criação para dar vida a ele de forma marcante. É um estilo de trabalho diferente — às vezes, como com Ubaldo, o personagem tem uma trajetória longa, e outras, como Guga, ele cumpre um papel essencial em pouco tempo de cena. Foi intenso, e o trabalho em parceria com a Mari potencializou ainda mais essa entrega. Nos comprometemos a viver esse barulho juntos, sincronizados no mesmo movimento e beat, o que faz toda a diferença. Afinal, nada se faz sozinho.
Como é estar por trás das câmeras atuando como diretor, roteirista e produtor? Acredito que cada função traga uma responsabilidade diferente e uma cobrança diferente também. Como se avalia nessas funções? Eu sempre digo “atuar alimenta meu alter ego”. Já a direção, ela tem um quê de alimentar uma certa megalomania dentro do meu processo artístico, porque você, até mesmo como produtor, pensando tecnicamente, é o maestro. Você decide o caminho do projeto, diferentemente do ator, que se limita à criação do personagem. Minha última direção foi em um projeto muito bonito chamado Ao Anoitecer, uma peça que estreamos na Fundação Progresso. Eu produzi e dirigi, e conseguimos verba para fazer circuito pela prefeitura do Rio. Mas, enfim, tivemos que interromper por causa da pandemia. De lá para cá, entrei no ritmo de atuação, e, neste momento, sinto muita falta de voltar a dirigir. No começo do ano, rodei um documentário que estou finalizando, como diretor, que foi um projeto que eu desenvolvi, e, além disso, estou também com o projeto do meu próximo longa.
Sua ida para as gravações de Cangaço Novo terminaram lhe inspirando para uma série de fotos que resultou na exposição Sertão Íntimo. Como isso começou? Como a fotografia entrou na sua vida? Para ser sincero, não sei exatamente quando a fotografia entrou na minha vida. Sei quando percebi que estava fotografando, quando notei que estava desenvolvendo um olhar interessante nos bastidores de meus trabalhos. Acho que foi em Novo Mundo, em 2017, a novela. Eu comecei a acompanhar os bastidores, fotografando. Nunca me fotografo; acabo sempre fotografando os outros. E lembro que uma das primeiras fotos que tirei, e que até hoje é uma das minhas prediletas, foi da Jennifer Dias no personagem. A partir dali, comecei a fotografar mais. E quando fui para o sertão, decidi “vou assumir esse lado da fotografia. Vou em busca de um olhar”. Pensei não só no lado artístico, mas também no de produção. Queria desenvolver um trabalho para uma exposição Pós-Cangaço. Não queria fazer fotografia só por fazer. Fui com um olhar profissional, convidando o Jota Andrade, um artista visual e plástico com quem já trabalho, e que também fez direção de arte e cenografia em projetos meus. Temos uma afinidade muito grande, e esse nosso trabalho em conjunto se chama Deep Sea, que é um projeto, um caminho entre fotografia, artes plásticas e obras de arte. É um percurso longo, que exige processo e maturação. Estou caminhando com isso, e há muito pela frente.
No meio dessa correria toda de gravação, já percebemos que você curte fugir para a natureza e ficar despido de qualquer amarras. É lá que recarrega as energias. No meio dessa correria toda, preciso admitir que a natureza sempre foi meu refúgio. Quando digo que sou uma pessoa reservada e penso sobre isso, me vejo em silêncio, no meio da natureza. Sempre preciso me reconectar, gosto do silêncio e de estar, muitas vezes, longe da civilização. É onde me reencontro. Gosto de animais, do cheiro de mato. Isso me traz uma paz de espírito essencial, que me alimenta muito, pois é algo bem distante da rotina e do mundo artístico glamouroso e vaidoso em que vivemos. Esse refúgio, essa fuga, é muitas vezes necessário para eu também me despir disso tudo, viver com meu silêncio e me reconectar.
Quem é Allan Souza Lima hoje? Para onde caminha? Sinceramente, acho que sou muitos, tenho várias facetas dentro de mim, e vou me descobrindo. Acredito que o mais interessante da vida é essa descoberta, sempre com o intuito de evoluir. Tenho certeza de que hoje sou melhor do que ontem. E para onde caminho… meu objetivo é sempre evoluir, da melhor forma possível, tanto profissionalmente quanto, sobretudo, como ser humano.
Para lhe conquistar basta… Ter olho no olho e ser verdadeiro acima de tudo.
Fotos Lucas Vianna (@onlylusca)
Agenciamento @Salesproducoes