A escolha do animal de estimação conta muito no momento do julgamento da sociedade. Macho que é macho, se pudesse, criaria um dinossauro em casa, alimentando-o com os pedaços ensanguentados da torcida do time rival. Como isso não é possível (ainda), convencionou-se que homens curtem cães e que gatos são coisa de mulher, quase sempre solitária, louca, mal-amada e/ou praticante de magia negra. Estereótipos. Eu mesmo sempre gostei de animais de todos os tipos e já criei passarinho, papagaio, jabuti, coelho e, claro, cachorros. Nunca havia tido gatos, até que um apareceu para mim, bem no meu local de trabalho, magro, arrepiado, com cara de assustado, novinho demais para estar se aventurando assim pela vida e pelo pátio de uma faculdade. Por morar só em um apartamento que é menor do que um banheiro de rodoviária (porém com um cheiro semelhante), meu primeiro instinto foi procurar o dono ou alguém mais estruturado para ficar com ele. Decidido a encontrar um lar para o bichano, conversei com o vigilante do dia.
– O senhor sabe quem é o dono desse gato?
– Rapai…esse gato tava por aí no pátio.
– Eu sei. Foi lá que eu peguei ele. O senhor sabe quem é o dono?
– Rapai…né o senhor não, professor?
– …veja. Veja só. Eu tô aqui perguntando ao senhor, porque eu não sou o dono e nem sei quem é. O senhor entendeu?
– Rapai…sei não. O senhor pode deixar aí pra ver se aparece alguém que leve.
– Hmmm. É, né? Ele deve ter dono ou uma mãe aqui perto. Melhor deixar ele e…
– Agora mais tarde vão soltar Florzinha.
– …oi? Florzinha?
– É o cachorro do diretor, uma mistura de dobermann com pitbull. Ninguém sabe como um dobermann acabou cruzando com um pitbull, por causa da altura, né? Vai ver usaram um banquinho. Mas o cachorro é o cão, professor. Já matou sete gatos esse mês e tenho certeza que um deles foi só de susto.
– …o senhor tem uma caixa de sapatos pra me emprestar?
E foi assim que me vi voltando para casa de bicicleta, a mão esquerda no guidom, a direita segurando uma caixinha de papelão trêmula com a tampa furada, que de vez em quando miava desesperadamente toda vez que eu ameaçava perder o equilíbrio. Ainda estou me acostumando com a ideia de ter um felino em casa e, enquanto isso, a notícia vai se espalhando entre amigos e parentes. Para a grande maioria das pessoas, um homem solteiro que mora sozinho criando um gato é uma coisa no mínimo esquisita. Para alguns, até mesmo alarmante.
– Alô? Fred?
– Alô, vó? Tudo bom?
– Meu filho, que história é essa de gato?
– Bom, eu…eu achei um e trouxe pra casa. O nome é Azeviche. Hmmm. Gostou?
– Azeviche? Que muléstia é essa?!
– É o nome de uma pedra preciosa, vó, toda preta. Que nem ele.
– Você tá criando um gato preto? Virou macumbeiro, foi?!
– Macumb…o que danado uma coisa tem a ver com a outra?!
– BAIXE O TOM DE VOZ PRA FALAR COMIGO, AQUI NÃO TEM NINGUÉM GRITANDO!
– …certo, vó. Desculpa. Olha, o gato é preto sim, eu não acredito nessas coisas, não tenho superstição nenhuma, tô nem aí. Tá bom?
– Mas meu filho, um gato, prum rapaz assim, solteiro. Não fica bem.
– Como assim, não fica bem?
– O povo vai começar a falar…sabe como é, vão dizer que você é feito esses homens, sabe, que hoje em dia toda novela tem um.
– Galã?
– Não, frango.
– VÓ! Isso é jeito de falar?! E outra, eu não sou gay. Não sou. Por que é que a senhora sempre acha que eu sou gay?
– Porque você me dá motivo.
– …tchau, vó.
Não é fácil criar um gato quando não se tem experiência nenhuma no assunto. Ele não funciona da mesma forma que um cachorro e tem necessidades diferentes. Da mesma forma, a interação com o bicho reserva lá suas peculiaridades. Por exemplo, quando um gato deseja demonstrar desgosto pelas besteiras que o humano desajeitado que mora com ele perpetua diariamente, ele não faz escândalo. Não berra, morde ou te estapeia enquanto você dorme, por mais que você mereça. Não, tais coisas estão abaixo dele. Quando um gato desce do seu pedestal para criticar seus inferiores, ele mija. Mija no chão que você acabou de lavar. Mija no seu sapato social que foi o último presente da sua tia-avó falecida. Mija ao lado da caixa de areia, mas não dentro dela, só para acrescentar avacalhação à ofensa. Mija no sofá que você não impermeabilizou porque é um humano burro e pirangueiro, mija nos pratos que você lavou e deixou no escorredor, mija com a altivez de um anjo distribuindo justas punições. Uma vez, bebi água com um gosto altamente suspeito, de um copo que eu tolamente havia deixado em cima do balcão enquanto ia ao banheiro. Mais de uma vez precisei colocar na janela o colchão que Azeviche havia escolhido como alvo de seus castigos felinos, suportando em silêncio os boatos humilhantes que se espalhavam entre os vizinhos. E aqueles olhos azuis sempre me seguindo pela casa. Me julgando. Evito até tirar a roupa na frente dele, com medo do que ele pode pensar da minha barriguinha protuberante. O danado do gato me fez voltar à academia.
Pior é quando ele decide usar as minhas canelas para afiar as unhas ou me matar do coração, correndo pelo apartamento como um ninja em miniatura, caçando coisas que não estão lá. É difícil compreender como um bicho tão pequeno consegue ocupar todo o espaço de uma cama de casal. Isso quando não resolve dormir em cima da tampa da privada, do teclado do computador (enquanto eu estou usando), da pá de lixo ou da minha cabeça, quando está se sentindo particularmente aventureiro. Azeviche tem algum tipo de fetiche por crânios, materializando-se em pleno ar com as garras estendidas em direção ao rosto assombrado do infeliz mais próximo, quase sempre eu. Dia desses, esqueci da fixação que gatos têm por fios de qualquer tipo e cometi a temeridade de tentar colar o cabo da internet na parede do apartamento. O gato, claramente seguindo os desígnios de seu mestre satanás, aproximou-se com propósitos sombrios. Alarmado, travei um dos diálogos mais tensos da minha vida.
– Azeviche, o que você…o que é que…pare! Não se aproxime!
– …
– Azeviche, é sério! Essa cola é altamente tóxica! E seca em segundos! Fica aí!
– …
– Isso…isso foi um sorriso?! Pare de me olhar assim! Já pedi pra nunca mais me olhar assim!
– …
– Por favor! Você fica na cama e eu no sofá a semana inteira! Azeviche, eu tô de joelhos aqui!
– …
– Não! Não pula! Por tudo o que é sagrado, não pulaAAAAAAAAAAAAAAARRRRRRRRRRRRRRRGH!
Quem poderia imaginar que os planos de saúde não cobrem ataques de felinos domésticos? Ao menos o médico do posto de saúde me garantiu que em um mês ou dois, meus dedos iam descolar e eu ia voltar a ter a sensação de tato do cotovelo para baixo. O mais complicado foi arrancar os fios grudados pelo corpo todo com um mínimo de perda de pele. Tudo bem, só dói enquanto estou consciente. Azeviche nunca se desculpou, mas também nem precisa. O que é uma briguinha entre amigos? Porque se a relação com um cão é de dependência afetiva, com um gato é de camaradagem masculina em sua essência mais pura. Ele não vem quando eu chamo, me ignora quando preciso dele, me sacaneia sempre que pode e peida descaradamente quando minha namorada me visita. Azeviche e eu não precisamos um do outro, nós gostamos um do outro. O que é mais do que se pode dizer de muitos casais por aí.
Eu não o adotei, decidimos morar juntos, coisa de amigo mesmo. Bromance. Só espero que ele jamais descubra o quanto eu preciso dele.
Aí sim, que ele ia ficar insuportável mesmo.
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