CAPA: ÂNGELO RODRIGUES – TALENTO ALÉM MAR

O público brasileiro pode não conhecer tanto sobre Ângelo Rodrigues, mas certamente o público português o conhece dos diversos trabalhos que ele fez em sua terra natal. Porém graças a sua participação na série Olhar Indiscreto, da Netflix, pudemos conhecer um pouco mais do trabalho e por consequência a sua trajetória. E graças a essa entrevista pudemos conhecer um pouco mais de Ângelo além do artista. Pudemos conhecer o cara engajado em causas importantes, o cara que se dedica tanto a ensinar teatro no Complexo Penitenciário de Bangu como lutar pela preservação dos elefantes no Camboja. O cara que vai muito além do papel de galã se mostra um homem preocupado com causas mais sérias e que suas redes sociais para muito além de pura exposição.

Ângelo, você fez sua estreia na TV em 2006. Daí em diante você não parou mais. Mas como foi no início? Quando despertou para o fato que queria trabalhar como ator? Comecei na TV em 2006, mas minha estreia profissional foi no Teatro quatro anos antes com um espetáculo chamado A Lamentação da Mula. A minha tia também é atriz e devo a ela o primeiro contato que tive com o teatro e com as artes cênicas, no geral. Lembro de ir visitá-la em Lisboa, com seis anos de idade, e de ficar fascinado com o trabalho dos homens-estátua que via na rua. Com aquela idade, considerava a habilidade de ficar muito tempo imobilizado um ato heróico. Um dia, pedi à minha tia para comprar tintas e fui fazer o mesmo pelas ruas de Lisboa. Na época não o sabia, mas era visível um nível de entusiasmo diferente de outras atividades que fazia. Talvez, tenha sido aí que tudo começou.

Depois de diversos trabalhos na TV, teatro e cinema em sua terra natal, você resolveu ganhar o mundo. E com a série Olhar Indiscreto (Netflix), isso tem se tornado uma realidade. Como surgiu o convite e qual a importância de ultrapassar as fronteiras brasileiras e ter um trabalho seu sendo elogiado em outros países? Esse carinho tem sido enternecedor. O convite para a minissérie surgiu após fazer uma selftape em Lisboa. Basicamente, tinha 48 horas para gravar e enviar quatro cenas. Havia apenas um senão – na época, me recuperava de uma cirurgia e não estava conseguindo andar. Na verdade, tinha chegado do hospital no dia em que recebi a ligação de meu empresário. Para não saberem o que tinha acontecido comigo, coloquei a câmera em posições estratégicas no quarto e gravei as cenas. No dia seguinte, para minha grande surpresa, recebi a notícia de que tinha ficado com o papel. Quanto ao fato de Olhar Indiscreto ter sido tão bem recebido internacionalmente, tem sido uma comoção. Nada prepara uma pessoa para receber feedback de um dia para o outro de lugares inusitados – da Serra Leoa ao Bangladesh. É insólito. Então, prefiro levar essa fase com muita leveza e humor.

Como foi filmar no Brasil e contracenar com atores brasileiros? Foi sua primeira experiência? O namoro com o Brasil começou em 2014, quando fiz intercâmbio na UNIRIO (Rio de Janeiro). Me formei em Teatro lá. Isso possibilitou que participasse de alguns projetos pontuais na televisão, mas nada com grande projeção. Desde aí, venho deambulando entre os dois países a fim de conhecer melhor um mercado que, até então, era uma novidade para mim. A grande oportunidade veio anos mais tarde, com o convite endereçado pela Netflix. Mais do que a oportunidade de trabalhar com um elenco brasileiro, fiquei entusiasmado com a ideia de estar num projeto predominante feminino, concebido e materializado apenas por mulheres, onde podíamos refletir sobre a libertação sexual feminina, com a garantia de que tudo seria transposto para o ecrã com bom gosto e delicadeza. Foi um mergulho intenso no universo das personagens e eu não poderia ter ficado em melhores mãos.                                       

Ficou um gosto de quero mais, de fazer outros trabalhos no Brasil? Algum plano? Tenho interesse no mercado brasileiro, mas só o trabalho árduo determinará o meu destino. Ator é como o surfista que aguarda no mar pela melhor onda. Por vezes surfa ondas pequenas, de vez em quando surfa umas maiores, e pelo meio ele aguarda em cima da prancha. De certa forma, considero que sou um surfista, esperando minha próxima onda. É que na profissão do “faz de conta” tudo é uma incógnita. É como nadar num oceano de incertezas. Não faço ideia do que poderá acontecer, do que o futuro trará, mas a beleza é essa mesmo, abraçar o desconhecido.

Quando soube que a série tinha um tom mais sensual e traria diversas cenas de nudez, teve algum receio? Como lida com a nudez? Quando soube que a minissérie teria cenas de nudez, fiquei reticente pelas mazelas que a cirurgia tinha deixado no meu corpo. Fiquei com uma cicatriz extensa na perna e o meu receio era que a caracterização não conseguisse disfarçá-la. Para além disso, nunca tinha feito cenas desse tipo na frente de uma assistência exclusivamente feminina. Felizmente, foram criadas condições para trabalharmos num ambiente seguro e receptivo ao diálogo. Contamos com o auxílio de uma coordenadora de intimidade, a Barbara Harrington, que foi fundamental para que todo o elenco se sentisse à vontade para entregar o que os personagens precisavam. É libertador podermos falar abertamente de nossos limites. Com a Barbara, pudemos fazê-lo sem medo e sem julgamento. Foi um enorme aprendizado.

As novelas brasileiras sempre revelaram grandes talentos portugueses como Ricardo Pereira e Paulo Rocha, que terminaram ficando por aqui. Faz parte de seus planos passar uma temporada no Brasil? A qualidade das produções nacionais tem aumentado exponencialmente e, neste momento, não ficam atrás de nenhum produto norte-americano. Considero o Brasil uma segunda casa, mas o chamamento que encontro aqui ultrapassa as minhas aspirações profissionais. Não querendo ser mal-entendido, sinto que, de alguma forma, pertenço a este país. Tenho antepassados que atravessaram o Atlântico e por aqui ficaram, famílias que nunca conheci e que gostaria de saber um pouco mais sobre elas. A permanência no Brasil, espero, ajudar-me-á a escavar um pouco mais sobre o meu passado.

Para você existe diferença em filmar no Brasil e filmar em Portugal? Que diferenças e afinidades destacaria? Diria que a maior diferença se prende a questões orçamentais. Não somos um país abastado. Então, a produção audiovisual, infelizmente, não pode ser muito ambiciosa. Não podemos fazer produções milionárias. Para se ter uma ideia, Portugal tem o tamanho de Santa Catarina e habitantes que equivalem à população total de Pernambuco. Com verbas reduzidas, o tempo para os ensaios também é encolhido. Mas em Olhar Indiscreto foi diferente. Fizemos um laboratório de um mês que nos preparou para a jornada que tínhamos pela frente. Quanto a afinidades, destaco a óbvia – o idioma.

Onde se sente mais desafiado? O que te desafia mais? Onde estiver um personagem que me tire o sono. A geografia, no caso, é um detalhe. O que mais me estimula é ser atirado para um ambiente que não controlo, com pessoas que não conheço, num lugar que nunca visitei. Isso é realmente desafiante para mim.

Há três anos você teve um problema grave de saúde quando ficou em coma e passou por 12 cirurgias. De onde tirou forças para superar tudo isso? Existe um novo Ângelo depois disso tudo? Quero acreditar que sim. Foi-me dada uma segunda oportunidade para viver e agora não faço tenções de desperdiçá-la. Confúcio dizia que temos duas vidas e que a segunda começa quando percebemos que só temos uma. Considerando que já desperdicei uma vida, posso determinar a qualidade da jornada que quero viver. O acidente ajudou a colocar as coisas no devido lugar, a entender a verdadeira importância das conexões reais, a perceber que não estamos aqui para sempre. Me ajudou na lembrança de que todos somos mortais e de que, um dia, todos deixaremos de respirar. Ao vislumbrar que tudo tem um prazo de validade, me torno automaticamente numa pessoa mais presente. E em tempos líquidos, onde nada é feito para durar, voltar do mundo dos mortos com alguma clarividência é um superpoder. Foi preciso que me tirassem a vida uma vez para viver a segunda com outro olhar. Só que desta vez, com um olhar diferente – um ‘olhar indiscreto’, talvez.

Muita gente não sabe, mas em suas passagens pelo Brasil você já deu aulas de Teatro no Complexo Penitenciário de Bangu, Zona Oeste do Rio. De onde veio a iniciativa e o que representou pra você? Eu estava emprestado pela Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa à UNIRIO, através de um programa de Mobilidade Internacional, uma espécie de parceria transatlântica que me levou a continuar os estudos na Cidade Maravilhosa. O trabalho que desenvolvi é uma experiência pedagógica que atua nos presídios do Rio de Janeiro até hoje. A finalidade era tão nobre quanto ambiciosa: levar o Teatro aos detentos do Complexo Penitenciário de Bangu. O intuito era formar pessoas capazes de segurar as rédeas de suas vidas, por intermédio de uma metodologia que ganhou reverberação mundial, o “Teatro do Oprimido”. É uma técnica criada por Augusto Boal que problematiza a cidadania com exercícios que espelham o universo das relações humanas. O método de Natália Fiche, a minha orientadora, segue as linhas da pesquisa desenvolvida pelo dramaturgo. Através de exercícios, o trabalho que desenvolvi ajuda na conscientização de jovens outrora rendidos à arte do banditismo.

Falando em ganhar o Mundo… em suas redes sociais você destaca muito suas aventuras internacionais. O que mais lhe instiga na hora de conhecer um novo destino? O novo, o desconhecido, o inexplorado. Encontro grande prazer em lugares que aparentam nunca terem sido tocados pelo ser humano. Tenho vontade de conhecer a complexidade do ser humano e de compreender a nossa natureza. As viagens são um trampolim para saciar essa obsessão.

Que lugares destacaria como inesquecíveis e quais ainda deseja conhecer? Do que pude visitar, destaco o Alasca, Amazônia, Tibet e Moçambique. Quero muito conhecer o Japão, a Índia e a Coreia do Norte.

E como é seu envolvimento em torno do Elephant Valey Projet(EVP) no Camboja? O santuário pertence à Elephant Livelihood Initiative Environment (ELIE), uma ONG com sede em Mondulkiri que retira os elefantes de ambientes abusivos, integrando-os num projeto de ecoturismo. Esta prática possibilita que os elefantes vivam o último trimestre de suas vidas em liberdade. Mais de metade da população que vive em Mondulkri pertence a uma tribo indígena chamada Bunong, uma tribo indígena que é animista, isto é, que acredita que existem espíritos na natureza, bons e maus, que devem ser respeitados e apaziguados. Segundo as crenças deste povo, criar elefantes em cativeiro dá azar. Eles acreditam que, essa prática perturba o espírito do animal na floresta e atrai má sorte. Os Bunong têm uma conexão profunda com os elefantes – é como se vivessem em simbiose. Tratam-nos como se fossem membros da família. Aprendi muito no terreno observando. Não falava a língua, às vezes queria fazer perguntas e não as verbalizava, mas estava tudo bem. Há coisas que não precisam de tradução. Em relação ao que fiz lá, o que encaixa melhor é isto – aprendiz de mahout (“mahout” é quem cuida de um elefante). Como não tinha habilitações para ser um, fui o assistente, o secretário, a voz amiga. Enfim, a sombra deles. Tudo o que precisassem, eu estava lá. A minha ajuda foi uma gota no oceano, mas com certeza, foi melhor que nada.

Para você, parece que não basta conhecer o local. Você precisa fazer algo por eles, inclusive ensinar inglês para monges tibetanos. O que lhe move a ações como essas? Os voluntariados surgiram da necessidade de dar outro significado às viagens que fazia, para serem menos centradas em mim e mais viradas para as necessidades do outro. Nesse sentido, os trabalhos voluntários são autênticos divisores de águas na minha vida. Eles me ensinam a viver com outra velocidade. Sinto que a cada viagem que faço, vou levantando o véu do grande mistério que é a nossa espécie. Tenho uma compreensão limitada do funcionamento do universo. Então, acredito que as viagens e os voluntariados me deixam um pouco menos ignorante. Para quê sermos observadores passivos do mundo, quando podemos ser parte ativa e ajudar a construir um melhor? A vida é curta demais para não nos ajudarmos uns aos outros. Se todos saíssemos de casa com uma vela acesa nas mãos, ao encontrarmos alguém na rua com a chama apagada, poderíamos ceder um pouco da nossa. Assim, ambos ficariam iluminados. Vela com vela dá uma chama ainda maior. Dos voluntariados que tenho feito pelo mundo, recebo a chama dos outros, empresto um pouco da minha, e assim vamos nos iluminando uns aos outros.

Você se considera um cara muito vaidoso? Do que não abre mão? Nem por isso. Apesar da exposição mediática a que a profissão nos sujeita, procuro viver a vida sem hipocondria com a minha aparência. Isso não significa necessariamente desleixo com o aprumo. Gosto de me sentir bem, de estar bem vestido e perfumado.

Quais os planos daqui pra frente? O que deseja para este ano? O sucesso de meus projetos. Vou lançar o terceiro documentário que dirigi chamado Qomolangma, que em tibetano significa “mãe sagrada do Universo” – é a história de dois irmãos que viajam até ao monte Evereste para se conhecerem como adultos. Além disso, aguardo a estreia de um filme que protagonizei chamado Cherchez La Femme, uma adaptação livre da obra A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá Carneiro. O diretor António Cunha Telles, um dos nomes mais incontornáveis do cinema português, faleceu no final das gravações. O filme, sendo uma obra póstuma, será uma homenagem ao contributo que deu ao cinema português. Tem previsão de estreia no primeiro semestre deste ano.

Fotos @sergiorbaia

Styling @aledupratoficial e @kadununnes07

Agenciamento Am Company Assessoria @natashaseinassessoria