Falar de Rodrigo França é falar de cultura e arte. Para quem ainda não conhece nosso homem da capa, ele de tão antenado e ligado nos 220 volts tem mil funções. De professor a articulador cultural, Rodrigo é autor de livros infanto-juvenil, atualmente dirige a peça Jorge Sempre Verão e no streaming estreou o programa Humor Negro (Globoplay). O garoto disléxico da infância, péssimo em matemática, foi ao longo de sua jornada seus talentos e com essa consciência seguiu batalhando seu lugar ao sol. E não só isso, com a busca de sua ancestralidade Rodrigo foi se descobrindo, descobrindo seus potenciais e como isso poderia despertar outras pessoas em condições parecidas às suas. A eterna luta contra o racismo vem através de sua arte e conhecimento, como uma prova de valorizar o indivíduo independente de sua raça. Rodrigo é pura inspiração para novas e velhas gerações.
Diretor, ator, dramaturgo, filósofo, professor, articulador cultural, produtor, escritor e artista plástico. Ou seja, seu negócio é arte! Como foi despertando para isso? A arte foi a forma que encontrei para me comunicar com o mundo. Eu comecei muito cedo. Há registros de desenhos e pinturas figurativas que eu fazia quando tinha sete anos. Tudo da cabecinha de um menino tímido, porque era silenciado por uma escola privada, religiosa e com pouquíssimos alunos negros. Sou disléxico, diagnosticado quando já estava na pós-graduação. Então, era péssimo em matemática, mas muito potente nas artes e na redação. Em uma estrutura que acreditava que ser inteligente era exclusivamente ser ótimo nos cálculos. A sorte foi ter tido uma família que pôde abraçar as minhas possibilidades de criar, investindo na minha educação artística.
O que lhe encanta e te desafia mais nisso tudo? Fazer o melhor, buscar o melhor. E, principalmente, traduzir o meu trabalho naquilo que eu acredito para a sociedade. Tenho compromisso com quem está na plateia do teatro, vendo um filme ou lendo um livro meu. Isso é o que me move e desafia.
Ao longo de sua trajetória até aqui, como definiria a arte? Tenho a Nina Simone como reflexão do pensar arte. Devemos, como artista, refletir o nosso tempo. A arte não dá conta de mudar uma estrutura social, mas faz a gente pensar. Sem arte, seria insuportável viver.
Escritor de livros infantis, como surgiu a ideia para O Pequeno Príncipe Preto? Como é escrever para o público infantil? Veio da falta de protagonismo negro no teatro, principalmente no infantojuvenil. Escrevo para a família, tudo aquilo que aprendi de melhor da minha mãe, pai e avó. O meu mote sempre é potencializar quem me lê, trazendo um olhar decolonizador e descolonizador. Precisamos avançar nas narrativas que estão deturpando culturas, olhares e posições sociais.
Como professor de direitos humanos fundamentais e pesquisador, qual a importância da valorização da ancestralidade? Sou um homem do axé, não dá para pensar no presente e vislumbrar o futuro sem olhar para o passado. A doutora em filosofia africana Katiúscia Ribeiro nos ensina que o futuro é ancestral. A minha ancestralidade é que me move. Por isso, é importante sabermos da história dos nossos mais velhos e sermos gratos.
Isso lhe levou até suas raízes, na África Ocidental. Acredita que só reconhecendo de onde você vem, suas bases, é que você (qualquer pessoa) vai entender o que deseja traçar para si? Para mim é fundamental, mas sei que para algumas pessoas não é fácil. Nos negaram, historicamente, todas as informações potentes do continente africano, onde induziram uma história única – a escravização e o colonizador como o herói. Como se tem orgulho de si a partir dessa deplorável narrativa? É necessário buscar o conhecimento através de pensadores negros e negras que subvertem esta lógica. O processo de descolonização é fundamental para uma pessoa negra brasileira se amar plenamente. É necessário olhar para si e se reconhecer como integrante de uma população que veio para cá, mesmo sequestrada, e construiu e constrói este país. As invenções mais importantes foram criadas por pessoas negras. O meu orgulho vem daí.
Você percebe o audiovisual mais democrático? Não só com o protagonismo negro, mas dando espaço para todo tipo de pessoa. Negar o avanço é negar uma luta histórica. Mas se pensarmos que, no Brasil, a população negra é composta por 56% dos indivíduos, e essa parcela está longe de ser encontrada nos setores de poder no audiovisual, falta muito para ser democrático. Minha mestra, dona Chica Xavier, viveu questionando isso e deixou este legado para nós das próximas gerações.
Acredita numa mudança de mentalidade real por parte de quem produz e também por parte do público? Começa por quem se diz progressista não cair em contradição. Quem assina o cheque e possibilita os contratos pode modificar a estrutura perversa de poder. O público, a partir dos movimentos sociais, já cobra por mudanças há muito tempo. Não ouvir é continuar errando nas narrativas, é perder público e/ou audiência.
Você acha que em algumas situações, o mérito pode acontecer de ficar em segundo plano em detrimento de “cotas”? A meritocracia não existe no Brasil. Não há oportunidades iguais. Tenho 31 anos de carreira e vi muita gente talentosa ter que desistir do seu ofício, por falta de oportunidade. Outras sem talento terem a oportunidade de errar e acertar até ficarem razoáveis, só por uma indicação. Como se pode competir de forma igualitária, se alguns não têm o que comer e outras herdam dinheiro ou o cargo dos pais? As cotas são necessárias, porque herdamos séculos de escravização sem nenhuma compensação. O Estado não pode cruzar os braços para a desigualdade em um país que se coloca como democrático. Ratifico que, as cotas, não nivelam para baixo. Pelo contrário, é só olhar as pesquisas e verificar a excelência educacional dos alunos cotistas.
E como surgiu o “Humor Negro”? Através da jornalista e apresentadora Val Benvindo, que criou um festival em Salvador para comediantes negros. A ideia sempre foi questionar a especificidade do humor sendo feito por artistas negros que usam a comédia não para oprimir, mas para falar do cotidiano de ser preto no Brasil – nas dores e delícias. Tenho a honra de ser diretor do especial e, depois, da série. Estamos concorrendo o Produ, um dos prêmios mais importantes da televisão da América Latina
No teatro, seu projeto mais recente é a peça Jorge pra sempre Verão, sobre o artista Jorge Lafond. Como foi trazer Lafond de volta aos palcos? Uma reparação histórica. Pois, o teatro, cinema e televisão devem muito ao Jorge Laffond. Há muitos artistas negros que a história invisibilizou ou embranqueceu, que devemos trazer para novas gerações de espectadores. Foi delicioso dirigir o texto da Aline Mohamad e do Diego do Subúrbio, que trouxe o Jorge de forma digna como ele era e merece ser retratado.
E onde recarrega as baterias? O que curte para relaxar e se inspirar? Somando com anos de análise e a minha espiritualidade em dia, eu, a cada três meses, tiro micro férias de alguns dias, pois não tenho fim de semana e feriado. Amo viajar e conhecer novas culturas e pessoas. A arte me inspira. Sou um devorador de livros, filmes, exposições. O artista precisa se retroalimentar, para criar ricos repertórios e não se repetir.
Quais os projetos daqui pra frente? O que podemos esperar desse cara inquieto e criativo? Em novembro, lanço o livro infanto-juvenil O menino e a árvore, que fala sobre perda e morte a partir de uma visão Iorubá. Fugindo da lógica do pavor. Assino a autoria do texto e direção do espetáculo Angu estrelado pelos atores Alexandre Paz e Orlando Caldeira. E tem um filme e uma série para sair. E o espetáculo Capiroto em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso, SP – terças e quartas às 19h, até 08/11.
Fotógrafo Márcio Farias @marciofariasfoto
Stylist Rodrigo Barros @rg_barros
Produção de moda Kevin Borges @keviiinborges
Make Diego Nardes @diegonardes
Hair Lucas Tetteo @lucastetteo
Assessoria @marromglacecomunicacao @giselemachado80 @brunoquinho