CARREIRA: GUSTAVO PERINO – O NOME POR TRÁS DA AUTENTICIDADE NA ARTE

Gustavo Perino é hoje um dos principais nomes da perícia de obras de arte na América Latina. Argentino radicado no Brasil, ele tem sido responsável por transformar a atividade em uma disciplina científica, multidisciplinar e pautada pela ética e rigor investigativo. Entrevistamos Perino, titular do escritório Givoa Art Consulting, com atuação nas Américas e na Europa e a confiança dos mais importantes Institutos de Arte no mercado internacional.

Você é reconhecido como um dos principais peritos acadêmicos da América Latina. Como sua formação moldou sua visão sobre a perícia de obras de arte e quais valores você considera inegociáveis nessa prática? Aprendi em casa que integridade é inegociável e que a verdade não depende de conveniência. Esses princípios me formaram antes mesmo da universidade. Mais tarde, durante minha formação universitária em perícia de obras de arte, tive a sorte de aprender com grandes mestres que reforçaram essa base: a perícia, antes de tudo, é um compromisso com a verdade.

O que diferencia a atuação de um perito verdadeiramente qualificado da abordagem mais empírica e amadora ainda comum no mercado? O conhecedor, muitas vezes com longa vivência no mercado ou sensibilidade estética refinada, teve um papel importante na história da arte. Seu olhar treinado pode ser valioso, especialmente quando associado a um conhecimento aprofundado sobre determinados artistas ou movimentos. No entanto, o que diferencia a atuação de um perito academicamente qualificado é a capacidade de transformar essa percepção em um parecer técnico fundamentado — com provas materiais, documentação comparativa, análise interdisciplinar e responsabilidade metodológica. A perícia moderna exige mais do que opinião: requer evidências verificáveis, cadeia de custódia das informações e um processo que possa ser auditado e reproduzido.

Você criou a primeira pós-graduação no Brasil dedicada exclusivamente à perícia de obras de arte. O que motivou essa iniciativa pioneira e como ela tem impactado o setor? Foi em 2017 que a professora Josy Morais, da Universidade Santa Úrsula, me procurou com uma proposta desafiadora: criar a primeira pós-graduação em perícia de obras de arte no Brasil. Embora houvesse demanda, ainda não existia no país uma formação regulamentada e específica nessa área. Ao longo daquele ano, desenvolvemos juntos o projeto que resultou no primeiro curso reconhecido pelo MEC voltado exclusivamente à perícia de arte. Desde então, mais de 40 alunos já se formaram, e muitos deles iniciaram sua atuação profissional com base em uma formação sólida.

A motivação foi clara: precisamos formar uma massa crítica de profissionais qualificados para elevar o padrão da prática pericial no Brasil. Com base na minha própria formação de quatro anos em bacharelado em perícia, decidi estruturar o curso com foco em metodologia rigorosa, concentrando o escopo nas áreas de pintura, gravura e escultura. Os formados do curso representam uma nova geração de especialistas que entendem a arte não apenas como objeto estético ou mercadológico, mas como bem cultural que merece investigação, proteção e verdade.

Em sua trajetória, quais foram os casos ou experiências que mais desafiaram seus conhecimentos técnicos e éticos como perito? Nos últimos 15 anos, conduzi mais de 250 perícias de obras de artistas como, por exemplo, Aleijadinho, Tarsila do Amaral, Antonio Berni, Modigliani e Dalí. Cada caso impõe desafios técnicos distintos, já que cada artista usa materiais e linguagens de forma única. Por isso, atuo sempre com equipes interdisciplinares. Um dos casos mais extensos foi a confirmação de autoria de uma escultura do Aleijadinho, pelo valor histórico, pela provenance atípica e pela sua materialidade. No campo ético, acredito que a imparcialidade, a ausência de conflitos de interesse e o compromisso com a verdade são inegociáveis — mesmo diante de pressões externas. É por isso que o perito não deve estar envolvido na comercialização das obras de arte. 

Na sua opinião, qual é o papel do perito na proteção do patrimônio cultural frente à crescente circulação de falsificações no mercado? O papel do perito na proteção do patrimônio cultural é fundamental e transversal. Todo investimento em conservação, restauração, seguros ou custódia só faz sentido se a obra for, de fato, autêntica — independentemente de estar em uma coleção pública ou privada. O perito atua como um redutor de riscos no mercado, contribuindo diretamente para impedir a circulação de falsificações. Além disso, estudos acadêmicos indicam que uma obra devidamente periciada pode ter seu valor de mercado elevado em até 40%. O perito de arte é, portanto, não apenas um redutor de riscos em transações, mas um verdadeiro guardião do patrimônio cultural e da integridade do ecossistema da arte. 

Como você vê a integração entre ciência forense, tecnologia e história da arte na construção de uma perícia moderna e confiável? Ao longo da minha trajetória, aprendi que uma perícia confiável só é possível quando há integração real entre análise técnica, investigação científica e leitura histórica da obra. Nenhum desses elementos, sozinho, é suficiente. O olhar estético, por mais experiente que seja, precisa de dados; da mesma forma, um laudo científico isolado não prova a autenticidade de uma obra se estiver desconectado do contexto artístico e documental. O valor de uma perícia está justamente nesse cruzamento: é ali que as dúvidas se transformam em evidência. Na Givoa, esse princípio orienta todo o nosso trabalho — seguimos os critérios da Due Diligence internacional com o rigor que cada caso exige, guiados por responsabilidade técnica e solidez metodológica.

Você coordena eventos internacionais e dialoga com instituições acadêmicas e jurídicas. Que avanços ainda precisam ser feitos para consolidar a perícia como campo científico na América Latina? Desde 2016, tenho a honra de liderar o ICAE — International Conference Artwork Expertise, um congresso internacional único voltado à perícia de obras de arte e à integração com tecnologia. A última edição, realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo, marcou um avanço importante ao incorporar o tema Art Law e promover o diálogo entre representantes do mercado secundário (AGAB), do mercado primário (ABACT), peritos internacionais e empresas de tecnologia aplicadas à arte.

A América Latina já dispõe da mesma tecnologia empregada nos Estados Unidos e na Europa — o desafio está na acessibilidade, nos custos operacionais e, sobretudo, na ausência de um sistema estruturado e padronizado de emissão de laudos. Ainda falta articulação entre a expertise acadêmica, especialmente no campo da análise material e científica da arte, e as demandas do setor privado e institucional. Um exemplo notável de integração bem-sucedida é a colaboração com o Instituto Nacional de Tecnologia Industrial (INTI), na Argentina. Em parceria com eles, temos desenvolvido casos de grande relevância técnica e metodológica. Consolidar a perícia como campo científico na América Latina exige exatamente isso: pontes consistentes entre universidades, profissionais especializados e as realidades práticas do mercado e da justiça.

A sua atuação vai além dos laudos: você também é uma voz ativa sobre ética, responsabilidade e educação no meio artístico. Que temas você considera urgentes no debate atual? Desde 2012, temos desenvolvido, junto à nossa equipe, mais de 40 cursos presenciais e a distância, oferecidos tanto internamente quanto em parceria com outras instituições. Já formamos mais de 2.500 alunos de 21 países. Mantemos relações institucionais com universidades e especialistas internacionais, o que nos permite estar na vanguarda das discussões e multiplicar esse conhecimento de forma qualificada.

Entre os temas mais urgentes no debate atual, está a necessidade de romper com o silêncio em torno da autenticidade das obras em circulação. Sabemos que uma parte expressiva do mercado convive com peças problemáticas — em certos artistas, esse número ultrapassa 50%. É fundamental que instituições, famílias de artistas e comitês de autenticação busquem assessoramento técnico especializado, que se apoiem em pericias independentes com embasamento técnico, prática que até da certa proteção jurídica a essas instituições.  Não podemos continuar sustentando um modelo baseado apenas na boa-fé dos intermediários. Nenhum outro mercado de alto valor opera dessa maneira — e os riscos já estão bem documentados. 

Qual a sua visão sobre o futuro da perícia de arte nos próximos 10 anos? Quais ferramentas, metodologias ou formações serão indispensáveis? A discussão sobre o impacto da inteligência artificial já está presente em quase todos os setores — e, na perícia de arte, esse debate não é novo. A IA, assim como outras tecnologias laboratoriais de análise material, pode ser uma aliada poderosa, mas jamais poderá substituir o discernimento crítico e a sensibilidade intelectual do perito. Um algoritmo pode indicar divergências ou compatibilidades com base em padrões aprendidos, mas até mesmo uma coincidência total entre duas obras pode ser um alerta: falsários sofisticados são capazes de produzir réplicas praticamente idênticas.

O futuro da perícia de arte, especialmente no Brasil, tende a se alinhar aos mercados mais avançados, onde a demanda por autenticação profissional é crescente. A ampliação do acesso a tecnologias — como IA e blockchain — permitirá reduzir custos e prazos, tornando as investigações mais ágeis. Mas, acima de tudo, será indispensável formar profissionais com visão interdisciplinar, capazes de integrar ciência, tecnologia e história da arte com responsabilidade ética e metodológica. 

Sendo capa da MENSCH, que mensagem você gostaria de deixar para os jovens profissionais que aspiram seguir um caminho tão singular quanto o seu? A mensagem que gostaria de deixar é que a perícia de arte, quando conduzida com seriedade e trajetória consistente, é um campo rico em oportunidades. Trata-se de uma atividade que cresce ano após ano, melhora as condições de atuação profissional e, o mais interessante: não impõe barreiras de idade para quem deseja começar. Hoje, o caminho está muito mais estruturado do que há uma década. O mercado amadureceu, e já temos exemplos sólidos — no Brasil e no exterior — de equipes atuando com excelência técnica e metodológica.

Mas é fundamental reconhecer que o sucesso nessa área exige muito mais do que formação acadêmica. Requer tempo, disciplina, dedicação constante e, acima de tudo, estabilidade emocional e compromisso profissional. No meu caso, sou um empreendedor nato e precisei abrir portas — mas a boa notícia é que quem chega agora já encontra caminhos viáveis. Com ética, método e compromisso com a verdade, é possível construir uma trajetória sólida e relevante nesse universo tão singular.

Fotos: Vinícius Ziehe