O que faz de um ator um artista? E que tipo de arte traz a interpretação de um grande ator? São questões muito subjetivas e variantes que nos fazem refletir sobre o que é ser ator e artista. Pensando em tudo isso fomos conversar com o ator Vandré Silveiro, mineiro de 37 anos, que à pesar da sua longa trajetória como ator, revela seu talento na TV agora com seu primeiro personagem em novela, o Lázaro em “Jesus”, da Record. “O ator precisa frequentar um lugar de auto-exposição impiedosa, o que não é fácil, pois coloca o espectador como testemunha de uma vivência, e não de uma representação”, conclui Vandré. À nós resta contemplar o trabalho desse premiado ator e conhece-lo um pouco mais nessa ótima entrevista.
Vandré, o que faz de um ator um artista completo? O que ele precisa ter e ser? O ator é suporte de outras subjetividades que se expressam através do seu corpo e da sua emoção. Dentro do meu entendimento, o caminho do ofício do ator está relacionado com uma entrega absoluta, sem julgamentos ou auto-crítica. Para que haja plenitude na comunicação entre o artista e o público é preciso que o ator seja afetado por aquilo que se propõe a realizar, assim o espectador é atravessado pela obra ou atuação. O ator precisa frequentar um lugar de auto-exposição impiedosa, o que não é fácil, pois coloca o espectador como testemunha de uma vivência, e não de uma representação.
Grande parte da sua experiência vem do teatro e cinema. Tendo ganho alguns prêmios inclusive. O que te move como ator? O que você procura passar com seu ofício? Acredito no poder de transformação da Arte. A cultura é um aspecto fundamental de qualquer povo ou nação. E seu respeito diz muito sobre o grau de evolução desses povos. Tomemos como exemplo, os povos originários com uma cultura riquíssima e que foi massacrada pela dita civilização. Em muitos aspectos e especialmente no respeito à própria cultura, esses povos estavam mais evoluídos que nós. Cultura é alimento para a alma e questão essencial ao humano porque constrói memória e identidade. Como ator, o que me mobiliza são personagens e obras que me atravessam, porque me deslocam da minha zona de conforto e me fazem encarar outras realidades. Todas as vezes que presenciamos algum ato genuíno, isso prende a nossa atenção. Com o ator não é diferente. Se ele se propuser um mergulho vertical, verdadeiro, honesto, o espectador será capturado. Procuro buscar essa genuinidade no meu trabalho.
Ser ator e ser artista é algo bem diferente. Como você definiria isso? Talvez essa distinção entre ator e artista aconteça por uma distorção do próprio entendimento do ofício do ator. Arte tem a ver com o ato da criação. E nesse aspecto se aproxima do divino. Um ator disponibiliza todo seu aparato físico, psíquico, emocional e espiritual, à favor de um personagem para que através de situações e vivências deste personagem, aconteça a composição, a criação.
O que é arte para você? Na minha opinião, a arte é a materialização de uma interioridade, de uma subjetividade, com escolhas conscientes e também inconscientes que colaboram para uma construção expressiva, capaz de dialogar com outras subjetividades, de variadas formas, para além do racional.
Como foi que você se descobriu ator? Quando pensou que queria isso para a vida? Desde criança eu admirava os artistas pela postura libertária e ousadia. Sempre fui muito tímido. E no fim de adolescência, a ideia de me tornar ator começou a se fortalecer. Decidi fazer um curso livre de Teatro e me apaixonei. Posteriormente, me formei como ator no Curso Profissionalizante de Teatro do CEFAR (Centro de Formação Artística, da Fundação Clóvis Salgado- Palácio das Artes- MG) e me encontrei. Experimentei a possibilidade de exprimir minha subjetividade de forma criativa e artística. Tive a certeza de que este era o meu caminho. Já são 17 anos de carreira, entre espetáculos de Teatro, filmes e várias participações em novelas e seriados.
Entre teatro, cinema e TV, a televisão é um ambiente menos explorado por você? O que difere para você nesses 3 meios? O trabalho do ator é um só. O de se disponibilizar para o personagem com total entrega. Talvez a grande diferença diga mais respeito ao funcionamento prático de cada Linguagem. O Teatro é por excelência um lugar de artesania, de maior possibilidade de experimentação. O Cinema se aproxima disso com suas próprias especificidades. A TV tem um ritmo mais acelerado e como as novelas são obras abertas, muito do trabalho do ator vai sendo construído junto com a dramaturgia. O que é um desafio maravilhoso.
Você entrou para a novela “Jesus”, na Record, que acaba de estrear. Como foi a preparação e o que podemos esperar desse novo trabalho? Li vários artigos e textos sobre Lázaro, além de filmes sobre a história de Jesus. Tivemos uma importante contextualização histórica e político-social feita por Miguel Peres, além de uma preparação de elenco com uma equipe maravilhosa (Fernanda Guimarães, Leandro Baumgratz, Ronaldo Nogueira e Vera Freitas). O Edgar Miranda, diretor geral da novela, junto com a direção da Record estão apostando numa leitura mais humanizada para aproximar e desmistificar o caráter áurico. Jesus era um homem que ensinou e praticou o amor e a compaixão, sem julgamentos ou distinções, principalmente pelos mais necessitados e rejeitados pela sociedade. Essa capacidade empática de se colocar no lugar do outro. Ensinamento passado há mais de 2000 anos e infelizmente tão pouco assimilado. A novela, de autoria de Paula Richard com uma competente equipe de colaboradores, está muito bem escrita. Há um grande investimento da emissora nesta produção, além de um comprometimento geral de todos os profissionais envolvidos, algo raro de se ver. Tudo isso se reflete na qualidade da obra no ar.
Digamos que essa será praticamente sua 1ª novela? O que represente pra você? É meu primeiro grande personagem numa novela em canal aberto. Estou muito feliz e agradecido por essa oportunidade. Além de ser um desafio, é também uma grande responsabilidade dar vida à Lázaro. Este personagem icônico que fica morto por 4 dias e que é ressuscitado por Jesus. Outro ponto positivo nesta produção é o fato de podermos conhecer com maior profundidade todos os personagens. A maioria das pessoas associam Lázaro apenas com o milagre da ressurreição. Para além da importância do ato, como prova de fé e também pelo efeito catalisador no processo de crucificação de Jesus, vamos conhecer a história de Lázaro, seu cotidiano, sua relação com as irmãs Marta (Dani Moreno) e Maria de Betânia (Jéssika Alves), sua proximidade e amizade com Jesus, questões pouco abordadas em outras obras. Este é um dos grandes diferenciais desta novela que já foi vendida antes mesmo da sua estreia para vários países.
Pelo que já percebemos em seus trabalhos você usa o corpo como objeto de sua arte. É isso mesmo? Existe limite? O Ocidente tem a tendência de separar a expressividade em corpo e voz. Para além da minha formação artística multidisciplinar, em 2005, fiz um curso com a diretora Celina Sodré, futura parceira de trabalho que dirigiu meu monólogo “Farnese de Saudade”, sobre o artista plástico mineiro Farnese de Andrade. O curso ministrado por Celina na CAL (Centro de Artes das Laranjeiras) tinha como princípio o método das ações físicas, elaborado por Constantin Stanislavski [ator, diretor, pedagogo e escritor russo de grande destaque entre os séculos XIX e XX, 1863-1938] e desenvolvido por Jerzy Grotowski [diretor de teatro polaco e figura central no teatro do século XX, principalmente no teatro experimental ou de vanguarda, 1933 – 1999]. Foi um divisor no meu entendimento como ator sobre a ação para além de um movimento plástico e sim uma ação com finalidade concreta que no momento da sua execução se converte em ação psicofísica. O que quero dizer é que a expressividade é um conjunto de elementos indissociáveis e o corpo é ferramenta fundamental no trabalho do ator, na materialização e construção de sentidos.
Você já posou nu para o Projeto Ophelia. A nudez em cena já foi algum tabu? Como lida com isso? Como disse anteriormente, o corpo é instrumento de expressividade. A nudez como tabu está vinculada a erotização que fazemos da nudez, especialmente o brasileiro. Relembremos a equivocada interpretação e repercussão de um vídeo que atacava a performance de um artista nu tendo seu corpo manipulado, em referência à obra de Lygia Clark. Num país onde cultura e educação não são prioridade, a consequência é uma limitação da percepção e do entendimento da complexidade do humano.
A que você atribui o sucesso do espetáculo “Casa Apodrecida”? “Casa Apodrecida” é um espetáculo livremente inspirado em “O Primo Basílio”, de Eça de Queirós [considerado por muitos o melhor romance realista português do século XIX, 1845-1900], dirigido por Leonardo Bertholini. O maior desafio deste trabalho foi o fato de que não utilizamos o texto verbal. Contamos a história de envolvimento de Luísa com seu primo Basílio a partir do corpo, das ações físicas, em um trabalho que dialoga com as linguagens da dança, da performance, das artes visuais e do teatro.
Qual sua maior vaidade como ator? E como homem? Como ator busco não ter vaidade. No meu entendimento, a vaidade não condiz com o trabalho do ator. A entrega no trabalho do ator tem relação com uma auto exposição, o que não é fácil e nem confortável, porque significa deixar aflorar sentimentos e emoções nem sempre altruístas, mas humanas, o que cria uma relação de identificação com o espectador. Somos feitos de contradições. Agora, como homem…(risos), confesso que sou bem vaidoso. Gosto de me cuidar, faço musculação, yoga e também pratico corrida. Em tempos de redes sociais, onde o que vale é mostrar, mais do que ser, acho importante ficarmos atentos com essa tendência narcísica, para não nos tornarmos escravos da aprovação do outro.
O que te inspira artisticamente? Atualmente, estou bem impressionado com a obra de Bill Viola. Seus trabalhos em vídeoarte que misturam instalações, performances e vídeo tem uma potência simbólica e metafísica. Também admiro muito o encenador grego Dimitris Papaioannou com uma obra muito visual e plástica, carregada de significados. Aliás, ele foi uma fonte de inspiração para a construção de Basílio, em “Casa Apodrecida”.
Nas horas de folga o que te distrai? Moro no Rio há 12 anos. Sou mineiro de Belo Horizonte e sempre tive uma ligação forte com o mar. Sempre que posso vou à praia, tomar um banho de mar para recarregar as energias. Também gosto de ir ao Cinema e ao Teatro. Atualmente estou vendo a 5 temporada de Bates Motel. Achei uma sacada maravilhosa contarem a evolução da patologia de Norman, como reflexo dos traumas vividos na infância, da relação edipiana com a mãe, até chegarmos ao personagem tão conhecido do filme Psicose (de Alfred Hitchcock).
O quanto um ator deve e pode se envolver em questões sociais e políticas? O ator é um agente de transformação. No meu entendimento, o trabalho do ator é sua maior ferramenta, no sentido de expandir as consciências rumo a melhores escolhas no campo social e político. Somos apaixonados pelo humano, com toda sua complexidade e contradição. Mas precisamos enxergar o coletivo. Realizar ações em prol do bem comum, da necessidade urgente de mudarmos nossos hábitos em relação à natureza e aos animais.
Como se definiria? Acho difícil me definir, porque significaria ter uma ideia fechada de quem sou. Procuro estar atento às minhas limitações, consciente do meu lugar e da importância do coletivo, de se abrir para o outro. “Prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.”