CAPA: BRUNO FAGUNDES E REYNALDO GIANECCHINI EM CENA

Não é para qualquer artista o desafio de encarar uma peça com cinco horas e meia de duração, encenada em dois dias diferentes, falando de um tema delicado como a AIDS. Mas os atores Bruno Fagundes e Reynaldo Gianecchini encararam esse projeto e o resultado tem sido surpreendente. Após a estreia da peça A Herança no início do ano, em São Paulo, onde foi assistida por mais de 25 mil espectadores, chegou a vez do público carioca viver essa experiência fantástica. A peça, dividida em duas partes, está prestes a estrear no Teatro Clara Nunes, no Shopping da Gávea, a partir da próxima quinta-feira (14). Nessa jornada, Bruno e Gianecchini se unem a outros dez atores para viajar por gerações, desde os anos 1980, durante a epidemia do HIV, até os dias de hoje. Com texto incrível do autor americano Matthew López, a peça proporciona um mergulho profundo no universo LGBTQIA+. E antes de começar essa maratona de espetáculos, a MENSCH conversou com os atores. E o resultado não poderia ter sido mais recompensador.

Quando surgiu essa parceria entre vocês e a ideia da peça?

Bruno: O nome do Giane foi uma das escolhas unânimes entre eu e o Zé Henrique de Paula (meu sócio-idealizador/produtor nessa empreitada). Assim que o Zé terminou a tradução, já enviei o texto para que o Giane pudesse ler. Ele  foi, literalmente, a primeira pessoa a ser consultada e fomos moldando o projeto de acordo com a agenda e disponibilidade dele. Que bom que ele topou de cara!

Gianecchini: O Bruno me mandou o texto e eu fiquei completamente apaixonado, achei que era o texto de teatro mais lindo que eu li na minha vida e, logo em seguida liguei pra ele e a gente ficou horas falando. E eu disse “cara, eu quero muito ser seu parceiro nessa peça e montar, quero te ajudar a contar essa história, acho ela incrível”. E aí ele tocou a produção com o Zé Henrique (de Paula), nosso diretor, que também é outro cara com quem eu estava com muita vontade de trabalhar. Tudo se desenrolou muito rápido, eu achei espaço na minha agenda e deu tudo certo pra gente fazer uma belíssima temporada nesse semestre passado, e, agora, estendendo para o Rio de Janeiro. 

Herança, que aborda a epidemia de AIDS dos anos 1980. Um tema delicado, mas necessário. Como foi o processo de construção dos personagens?

Bruno: A Herança não aborda só isso. Esse é apenas um dos assuntos da peça que mergulha no universo de um recorte da comunidade LGBTQIAPN+, especificamente, no universo de homens gays americanos. Mas, ao fazer isso – investigando suas dores, lutas, mazelas, amores – a peça aborda, em suma, assuntos extremamente universais e humanos, como saudade, amizade, perda, pertencimento e questões geracionais. É aí que a epidemia de HIV/AIDS nos anos 80 entra em discussão. Entrar em contato com essa história é um aviso importante sobre como devemos honrar o passado para transformar o futuro. Nos alimentamos muito de todo tipo de material que se relacionasse com esses assuntos, desde filmes, séries, documentários, livros etc. Mas, a principal fonte de construção dos personagens é o magnífico texto do Matthew López.

Gianecchini: Tivemos pouco tempo para construir tudo, mas foi muito intenso porque nos jogamos muito, tava todo mundo muito a fim de contar essa história, todo mundo fez um mergulho muito vertical. Eu, particularmente, fui pesquisar muito sobre o surgimento da AIDS nos anos 80, como foi terrível tudo, porque meu personagem viveu naquela época e teve ali um trauma, vendo as pessoas mais queridas morrendo pela AIDS. Eu tive que dar uma pesquisada para entender que dor foi essa. Claro, eu já entendia mais ou menos como tinha sido difícil, mas ainda não tinha a real dimensão do quão terrível foi. Temos muitos documentários e filmes que mostram o absurdo que foi, o governo negacionista, e toda a segregação com os gays, foi um período muito triste de nossa história. Eu tive que entrar em contato com isso, essa foi a minha grande preparação para adentrar no mundo do meu personagem.

O que foi mais difícil e mais recompensador ao longo desse processo?

Bruno: É a peça mais desafiadora da minha carreira. Porém, qualquer iniciativa que envolva o fazer teatral no nosso país carrega em si mil números de fatores e variáveis que deixa tudo absolutamente desafiador e difícil. Mas, A Herança (principalmente em termos de produção) é, por natureza, uma peça de risco, pelo tamanho do elenco, duração, formato etc. Tudo foi difícil. Eu e Zé estávamos há 5 anos tentando estrear a peça no Brasil. E ainda trabalhamos incessantemente para manter nossa produção de pé e conseguir levar essa estrutura para outro estado – é um ato de resiliência quase heroico. Mas, estamos vivendo a recompensa. Somamos seis meses de temporada com mais de 25 mil espectadores emocionados, gratos, absolutamente tocados com nossa história, que no seu último dia de apresentação em SP, ganhou 6 ininterruptos minutos de aplauso no final. Tem recompensa maior do que essa? O público faz tudo valer a pena.

Gianecchini: O mais desafiador foi conseguir dar a dimensão que todos esses personagens têm – são muito cheios de camadas, tem muita coisa por trás de cada personagem. Conseguir entender isso e passar para o público em tão pouco tempo de ensaio, com dois meses, uma peça de seis horas, muito pouco tempo. Para levantar a peça já é difícil, imagina para preenchê-la com todas as camadas que existem, né? Então, isso foi o mais desafiador. E o mais recompensador é você ver a comunicação com a plateia. Você está preparando e oferecendo, e quando entra a plateia, a gente entende que todo nosso esforço valeu muito a pena. O público, geralmente, tem reações muito incríveis. A gente toca, a gente faz rir, faz todo mundo se emocionar, discutir coisas, ampliar horizontes. Então, é lindo demais, eu acho que esse é o verdadeiro tesão do artista, conseguir chegar no público.

Reynaldo, você vivenciou mesmo que de longe essa pandemia. Como ela lhe tocou na época?

A pandemia me tocou muito, claro. Eu não vivi exatamente, não tive amigos morrendo de AIDS, eu sou uma geração depois. Mas fui extremamente afetado, claro. Quando a minha geração começou a transar, não existia a possibilidade de ser sem camisinha. Eu sou daquela geração que foi aterrorizadíssima pela AIDS. Quando comecei a ter vida sexual, muita gente já tinha morrido, já tinha se passado uma situação muito difícil. Então, é claro que a gente aprendeu a se cuidar muito. E ficar quase neurótico com o cuidado com a saúde, com relação às doenças sexualmente transmissíveis, principalmente a AIDS.

Bruno, você já é de uma geração posterior que já enxerga a AIDS de outra forma. Algo menos traumático, digamos assim, do que foi para quem acompanhou tudo mais de perto. Como isso lhe toca?

Minha geração não viveu o auge da epidemia, mas foi extremamente impactada com campanhas ‘AIDS MATA’ no início dos anos 90. Então, perpetuou-se essa afirmação que foi tão fortemente difundida, cheia de estigmas e desinformação. E é exatamente nesse ponto que a peça toca – como lidar com essa herança amarga que inevitavelmente constituiu o afeto, desejo e noções tão básicas sobre saúde e sobrevivência da geração posterior? A herança de dores e delícias dessa comunidade que, de forma meio sôfrega, encontrou luz onde havia sombra, mas que até hoje sobrevive sob diversas ameaças. A peça é uma oportunidade de revisitar essas existências e encontrar amor em todas as frestas e isso me toca profundamente. Esse é o tipo de teatro que eu acredito, o que carrega em si um potencial de transformação da sociedade.

Herança retrata bem as diferentes gerações da comunidade gay americana. Como foi a adaptação para a realidade brasileira?

Bruno: O texto é tão bem escrito que não precisou de adaptações. Um bom texto de teatro deve, primeiro, entreter. E, se ele faz isso de forma universal, pode ter certeza de que esse texto é um achado. Não tivemos nenhuma dificuldade de entendimento ou barreira cultural e o público também não.

Gianecchini: Adaptação foi, eu acho, fácil. Muito boa, muito precisa. Foi o Zé Henrique de Paula quem fez a tradução, e a adaptação para o Brasil não foi difícil porque correu muito em paralelo com a história dos Estados Unidos, num contexto político absolutamente igual. A questão dos Democratas e dos Republicanos, aqui no Brasil é bem parecida com a Direita e a Esquerda. E de toda a comunidade. Não teve uma grande diferença, não.

Como vocês percebem a conscientização das pessoas hoje em dia para um problema de saúde tão sério? Acham que existe hoje em dia uma certa banalização?

Bruno: É meio inerente ao ser humano colocar algumas questões ‘embaixo do tapete’, principalmente, se elas incomodam ou geram dúvida, ou são tabu. Eu acredito que deveria ser uma iniciativa de Estado manter assuntos de saúde pública vigentes. Só existe banalização, se falta informação. Eu sempre procuro trazer alguma contribuição como artista – eu acredito na função social do meu trabalho. Alguma parte sinto que estou fazendo.

Gianecchini: Eu penso que essa geração atual, mais jovem, não sabe, por exemplo, o que foi a AIDS nos anos 80. Eles não estão atentos, não foram aterrorizados por isso. Portanto,  não estão tão ligados, não tem muito essa questão da camisinha. Então, isso serve sempre de alerta pra gente dizer que a doença continua contagiando as pessoas. O que é legal – e que essa geração já tem – é que hoje já existem outros mecanismos – o PREP, o PEP, hoje a ciência já disponibiliza algumas drogas que protegem mais. Essa é a boa notícia. Hoje em dia, eu acho que ainda existe o estigma – ter AIDS ainda é uma coisa que estigmatiza as pessoas. Por outro lado, não é tão apavorante como foi no passado. Mas esse estigma ainda existe, não é uma coisa suave ser positivo pro HIV.

Além de entreter, vocês estão prestando um serviço à sociedade trazendo temas como esses. Como o público tem recebido isso? E como isso reflete em vocês?

Bruno: Na reação do público. Nosso público tem sido nosso maior presente. Não consigo contar a quantidade de relatos que recebemos de pessoas dizendo que A Herança  foi a melhor peça de suas vidas. O público entendeu completamente a proposta da peça, desde o formato, até todo seu potencial de comunicação. E isso só pode me fazer sentir vitorioso! Eu, continuamente, me esforço para conseguir me comunicar e tocar o maior número possível de pessoas, seja através de uma novela ou uma peça de teatro. Essa é minha vida e minha busca.

Gianecchini: O texto é perfeito. Ele entretém, diverte, emociona, causa reflexões, tem uma importância social porque faz um retrospecto, fala de questões geracionais, questões de saúde, ele tem tudo. O reflexo na plateia, como isso toca a plateia, como ele se sensibilizam. Em São Paulo, fizemos muito bate-papo no final com a plateia, e ouvimos depoimentos lindos. Isso demonstra que estamos no caminho certo sim, de escolha artística, quando pensamos na comunicação com o público. Ou seja, conseguimos atingir essa comunicação. E óbvio que isso reflete na gente. Primeiro, eu me sinto muito grato de poder oferecer essa peça para o público, de poder participar – de todo dia poder estar no palco e também viver esse processo dentro de mim, para poder contar essa história. Eu fico feliz – feliz como artista, porque essa é a meta da gente, se comunicar, e como ser humano também, por estar ali aprendendo junto com uma turma tão incrível.

A peça estreou em São Paulo no início do semestre passado e agora chega ao Rio de Janeiro. Qual a expectativa para essa estreia? É como se fosse a primeira vez?

Bruno: Sim! Com certeza! Estamos mudando de estado. Tivemos que, praticamente, começar do zero, relançar a peça, renovar toda nossa comunicação, divulgação, estratégia, tudo. A única diferença é que, dessa vez, temos a segurança de que o público vai gostar, baseado no sucesso em SP. Mas essa é minha primeira vez fazendo temporada autônoma no Rio.

Gianecchini: Estreia sempre traz esse gostinho de primeira vez e de expectativa, uma ansiedade de como vai ser recebida, porque cada público é de um jeito. O público do Rio, eu sinto, é diferente do de São Paulo e, geralmente, as temporadas também são diferentes em São Paulo e no Rio. A gente está muito na expectativa para saber como o carioca vai receber, mas também muito confiante, porque a gente acredita no poder desse texto, da universalidade dele. E no poder de comunicação.

O que o teatro faz por vocês que não existe em outro formato? O quanto é desafiador?

Bruno: Eu acredito que o teatro é o último reduto de humanidade – de troca. Aquele momento ali, em comunhão, é um momento único. Em tempos como o nosso, de Inteligência Artificial a multi-telas, onde mais teríamos a oportunidade de reunir aquele número de pessoas (potencialmente, 400, 500 pessoas de uma só vez) que ficam seis horas EM COMUNHÃO, trocando noções sobre a vida, o amor, saudade, perda, amizade, preferencialmente, sem celular, se ouvindo, se emocionando juntos. Onde mais? O desafio, claro, é manter vivo o interesse dessa troca. Nós somos o veículo dessa possibilidade, isso exige muito rigor e responsabilidade. Mas é uma troca orgânica, viva, efêmera –  uma conversa. Nenhum outro veículo de comunicação consegue isso. 

Gianecchini: O teatro é arte onde o ator está no comando. Ele precisa estar inteiro, e ocupar aquele palco de uma forma grande, com toda sua expressão, com uma voz potente, com o corpo potente, contar a história com o corpo inteiro. Não tem edição nenhuma. Então, você tem que estar realmente presente. E tem esse contato incrível com o público, a gente se alimenta deles e eles da gente. Uma troca de energia incrível  cada di é diferente. A cada dia, o público está diferente e a cada dia, nossa energia também está diferente. É muito gostoso. E o fato de repetir – a repetição, faz com que a gente cresça muito, cada vez mais. É uma grande escola. O teatro é onde você pode ir aprimorando, aprofundando. Todo dia eu vou para o palco com a vontade de melhorar, de entender mais, de fazer melhor, descobrir mais coisas sobre o personagem. Isso é muito desafiador e muito gostoso também. A nossa grande escola, eu acho.

Hoje em dia sem a exclusividade de contratos na TV e as possibilidades do streaming ampliou o mercado para artistas, diretores e escritores. Como vocês veem isso?

Bruno: Sim, o mercado está aquecido, mas não podemos nunca baixar a guarda. O contrato de exclusividade ainda era uma das únicas oportunidades de estabilidade da carreira de ator. Cada dia mais, as empresas estão ‘uberizando’ seus serviços, isso torna o mercado muito mais voraz e, consequentemente, os artistas mais descartáveis. Vide a greve nos EUA que segue em curso. Estamos, ainda, lutando por reconhecimento e remuneração justas. Os streamings são um ótimo veículo, mas ainda estão batendo cabeça dentro do mercado brasileiro e, definitivamente, não trouxeram para nosso país a mesma grana que se investe em talentos no seu país de origem (e sabemos que nossa imagem fica lá para toda eternidade). Mais oportunidade não significa, necessariamente, mais dignidade ou qualidade. O artista autônomo não tem um dia de paz. (risos).

Gianecchini: Acho maravilhosa a época em que estamos vivendo, porque hoje temos mil possibilidades de atuação, com narrativas diferentes, propostas totalmente diferentes que o streaming traz, e com um alcance mundial, o que acho incrível. Hoje, você faz uma coisa aqui no Brasil o reverbera mundialmente – às vezes, simultaneamente. O fato de você poder contar histórias de um outro jeito, produzir de um outro jeito, mais democrático, às vezes. Todo mundo pode oferecer uma produção do seu jeito, com as suas ideias. O streaming permite ideias novas, e permite uma ousadia maior. E também tem permitido rostos e corpos novos –  protagonistas. Estou achando lindo esse momento, fértil para nossa cultura – de muita possibilidade de trabalho, e de reinventar tudo.

A chegada dos streamings trouxe uma qualidade técnica maior do que era apresentado pela maioria dos canais da TV aberta. Isso deu uma segurança de que vale investir nesses novos projetos?

Bruno: Discordo. O Brasil tem excelente matéria-prima e profissionais. Nossa novela é considerada a melhor do mundo e incansavelmente exportada para diversos países. É feita em escala industrial. Ao passo que, um streaming faz oito episódios por ano – na TV aberta, se faz 200. Isso é um feito. O que os streamings trouxeram foi um encurtamento de distâncias. É uma delícia ver seu trabalho em uma plataforma que está ao alcance de um clique, em qualquer lugar do mundo, mas os projetos brasileiros lá dentro ainda sofrem de baixíssimo orçamento e insegurança.

Falando nisso… algum projeto em andamento para vocês para TV/streaming?

Bruno: Por enquanto, só A Herança no Rio de Janeiro.

Gianecchini: Tenho muitos projetos que quero produzir e quero fazer em parceria com os streamings, nada que eu possa falar ainda. Televisão aberta, eu continuo achando muito legal – continuo achando que tem o seu valor. Eu não tenho mais muita vontade de fazer novela, que é o que eu mais fiz até hoje. Quero  me desafiar em outros campos fora da minha zona de conforto. Então, não tenho muitos planos, a princípio, na televisão aberta. Mas eu estou sempre aberto, acho que a gente está vivendo uma era de mil possibilidades. Quero, cada vez mais, ampliar a minha atuação – não só como ator, mas também discutindo roteiros, produzindo, tudo isso. Por enquanto, não posso falar nada, mas com certeza vem coisa boa por aí.

Hora de relaxar… onde recarregam as baterias?

Bruno: Não sei o que é relaxar faz tempo. Eu gravei 200 capítulos de uma novela de janeiro a dezembro de 2022 e emendei com a produção/ensaios da peça já a partir de novembro passado. Tive três dias de recesso e já iniciei meu trabalho na linha de frente de produção e como protagonista, com força total em janeiro deste ano e tive apenas uma semana de folga, em maio. Pretendo pausar depois da temporada do Rio e sumir por algum tempo.

Gianecchini: Na hora de relaxar, gosto muito de por o pé na grama, na terra, na areia, no mato. Eu gosto muito de ir para o mato, alguma praia, ou mesmo ficar na energia da minha casa, com meus cachorrinhos. É o que mais me relaxa e me reenergiza.

Fotos Marcio Farias

Video André Ivo

Styling Samantha Szczerb

Beleza Zuh Ribeiro

Assessoria JS Pontes

Agradecimentos: Doct Jeans, Noêmia Joias, Handred, Hermes Inocêncio