CAPA: BUKASSA KABEGELE EMBALADO PELA ARTE

Bukassa Kabengele é um africano da República Democrática do Congo nascido em Bruxelas (Bélgica). Veio da África para o Brasil em 1980 aos 10 anos de idade, tornando-se brasileiro por naturalização. No ramo artístico apresenta uma carreira profissional de 30 anos, entre Artes Cênicas (ator) e Música (cantor, guitarrista e compositor). Em sua trajetória musical tocou do Samba, Soul, Pop, Jazz à música Cubana, maturação que resultou em seu atual trabalho autoral de música africana com sotaque brasileiro e influências vivas da África moderna. Bukassa estreou profissionalmente no teatro em 1998 com a Opera Rock “Cazas de Cazuza” e em 2001 fez seu primeiro longa, no elenco principal de “Sonhos Tropicais”. Atualmente interpreta o Promotor Sílvio Pacheco na novela Amor Perfeito. E no streaming ele acaba de estrear “Um Ano Inesquecível – Outono”, dirigido por Lázaro Ramos.

Indo para o início… Você nasceu em Bruxelas e na infância morou até os 10 anos no Congo. Que referências e influências você traz dessas duas cidades? É inevitável não carregar marcas de onde se nasce, mesmo que uma rápida vivência. Deixei a Bélgica aos 2 anos de idade, mas a minha primeira língua a ser falada foi o francês. Algo que carrego em mim até hoje. Na República Democrática do Congo me reconectei com minhas origens africanas, lá estava toda a família, primos, tios, avós, pai, mãe e irmãos. Lá vivi até meus 10 anos de idade, ou seja toda minha primeira infância, alfabetização, sonhos e medos começaram em termos conscientes começaram a se manifestar, acredito que também o amor pela arte. Carrego memórias, histórias e meu jeito de ser até hoje em muitos aspectos, desse período. A minha criança interna é congolesa até hoje. Meu corpo é africano, meu espírito também. Mas a minha consciência se miscigenou culturalmente e hoje tenho um teor brasileiro muito forte que se soma à minha essência, Africana. Mesmo nunca tendo sido belga, e vivido como congolês até me naturalizar brasileiro, ainda hoje para atualizar a minha certidão de nascimento preciso pedi-la à Bélgica.

Filho de pai antropólogo, isso te influenciou de alguma forma a se dedicar mais aos estudos? Eu diria que é mais profundo que a dedicação aos estudos, algo que desde de novo entendi ser primordial para vencer numa sociedade competitiva e estruturalmente racista. O aprendizado mais valoroso com meu pai em anos de vida é a consciência negra, a dignidade de ser quem eu sou, o respeito e orgulho de minhas origens. Valores me ensinados com afeto e dedicação. Em casa sempre tive a referência de um pai protetor que também me fez ser independente para buscar meus sonhos, a mim e meus irmãos. No meio dessa educação, nunca faltaram valores africanos. Por tanto os anseios e lutas dele como acadêmico e grande intelectual, estão em mim, e pelas minhas buscas e desafios continuam ecoando no mundo.

Naturalizado brasileiro, como você enxerga a questão da imigração no Brasil hoje em dia? O que falta e como administrar? Após anos no Brasil como estrangeiro permanente, me naturalizei, porque a vida de um de estrangeiro não é fácil, em termos jurídicos e de cidadania, ainda mais africano. Por exemplo, desde novo na música, ao trabalhar com a cantora Marisa Monte fazíamos turnês internacionais com o meu passaporte zairense na época, não podia entrar em um país europeu sem visto, diferente dos brasileiros, o que me dava muito trabalho e me atrapalhava profundamente. Tive que tomar a decisão já que pelo tempo de permanência eu tinha direito a naturalização. Como brasileiro naturalizado tenho todos os deveres e direitos civis como o brasileiro nativo. Mas por exemplo, para renovar a identidade eu preciso mostrar meu certificado de naturalização, diferente dos brasileiros natos. A única coisa que sou proibido por lei é me candidatar a presidente da república, ou seja, sou juridicamente brasileiro e espiritualmente, congolês.

Sua estreia na TV foi na Ilha Rá-Tim-Bum e na sequência veio A Casa das Sete Mulheres. Dois trabalhos bem distintos que deram pontapé na sua carreira. Que lembrança guarda desses dois trabalhos? As melhores heranças possíveis, eu era muito novo ainda sem a esperteza para jogar livremente na arte de atuar. No caso de Ilha Ra-Tim-Bum, como eu adorava desenhos animados, desde criança, inclusive achava que seria desenhista, pois, desde os 10 aos 18 anos de idade eu desenhava em média 4 horas por dia. Adorava desenhos da Disney, Marvel e também os personagens de Maurício de Souza, mas eu  criava meus próprios personagens e histórias em quadrinhos. Então, dar vida a voz do “Bum” foi incrível e natural para mim. Na série “A Casa das Sete Mulheres” da TV Globo eu aprendi muito com meus colegas. Lá conheci Thiago Lacerda, Mariana Ximenes, Camila Morgado, Carmo Dalla Vecchia, José de Abreu, Mauricio Gonsalves, Antônio Pompeu entre outros, pessoas que amo e respeito. Meu personagem tinha poucas falas, mas era extremamente carismático, o Zé Pedra. Tirei lições de como me portar numa grande produção e aprendi o máximo que pude com Jayme Monjardin nosso diretor. Eu estava muito concentrado. Mas fui convidado para fazer parte dessa série por conta do meu primeiro longa metragem na vida “Sonhos Tropicais” de André Sturm, eu fazia um personagem forte com bastante importância na trama. De lá para cá evoluí bastante. Sou grato a essas oportunidades de trabalho. São grandes produções, nelas me achei e fiz meu caminho como ator.

Ao longo da sua trajetória vieram personagens fortes, brutos e reais.  Você acha que você traz essa dramaticidade natural que atrai esse tipo de personagem? Como percebe isso? Dizem que a vida imita a arte e vice versa. Não sei explicar o porquê disso, mas é como foi acontecendo. De fato, fiz personagens de liderança, dramáticos e fortes. Sempre imponentes. Na verdade, posso fazer vários tipos de personagens que fogem dessa caixa… É uma questão de oportunidade. Já fiz isso no teatro. Atuar não é fácil independente do gênero. Em novos projetos eu pude mostrar diferentes formatos como por exemplo em “Um Ano Inesquecível Outono” dirigido por Lázaro Ramos, pude fazer um personagem carismático longe de ser líder, e como nesse tive a chance fazer isso em outros recentes projetos, no cinema e no streaming.

Atualmente você está interpretando o Promotor Silvio Pacheco em Amor Perfeito. Que desafios o personagem tem te trazido?  Alguma referência na vida real?  O promotor Sílvio é diferente de mim… A sua relação com a esposa Wanda (Juliana Alves) me faz entender lugares e realidades dos privilégios dos homens em sociedades patriarcais e machistas. Questões que devem ser debatidas diariamente, em lutas a favor da igualdade de direitos sócio-político e econômicos para as mulheres. É um desafio para mim fazer o Silvio, preciso respirar fundo e muitas vezes na hora de entrar em cena dar vida a atitudes que não que não me representam, e achar formas de humanizar esse personagem. Entender como ele vê o mundo dentro de sua ótica e contexto social. Faz parte de nosso ofício abraçar os personagens para que a história seja contada. A novela traz questões que precisam ser discutidas, e o lugar que as mulheres ocupam na sociedade faz parte desse quadro.

Vivemos um momento de protagonismo negro na TV, em especial nas principais produções atuais. Percebe realmente uma mudança (mesmo que tardia) de mentalidade de forma geral? Muito recentemente, tivemos aumento em termos de protagonismo negro nas novelas e já anteriormente no streaming dentro das produções brasileiras. Acredito que seja a soma de vários fatores. É uma questão complexa. As lutas vêm de muito longe em anos com os movimentos negros. O mercado precisa abraçar a diversidade. Estamos deixando de ser pessoas isoladas nas telas. Mas precisamos de tempo para entendermos se realmente é o que está ocorrendo de fato. Até por que ainda temos poucos autores e diretores negros e negras ocupando as cadeiras de poder e decisão nas partes criativas e executivas das produções em geral, o que para além da questão quantitativa em termo elenco, mudaria a forma dos conteúdos e narrativas. Acredito que autores brancos, homens e mulheres ainda não alcançam a excelência da escrita saudável sobre histórias da negritude. Não foram educados para isso. Por tanto a representatividade, revertida em protagonismo com os elencos negros é muito importante para a visibilidade, mas a meu ver, ela por si só, se não somada a outros pilares antirracistas, como debates públicos, políticas afirmativas, cotas raciais, educação antirracistas, para todos e principalmente brancos, consciência negra e mobilidade social para as camadas pobres das quais 70% são compostas de pretos e pardos, ou seja: Sem essas práticas não estaremos destruindo de forma real e definitiva o racismo e suas estruturas na sociedade.

Como você enfrenta o racismo hoje em dia? Isso já te afetou diretamente de alguma forma? Desde criança ao chegar ao Brasil enfrento o racismo com imposição, luta, consciência e exigindo respeito. Aliás, essa é uma pergunta delicada, não sei o que significa. Se vivo numa sociedade estruturalmente racista eu o enfrento diariamente. O fato de ser negro e estar vivo é por si uma resistência… O racismo me afeta não somente a mim, mas a todos. Acredito que os brancos se perguntam “Se o racismo afeta de alguma forma”, por que vivem o privilégio de não sofrê-lo.

Acha que uma boa “arma” para combater o preconceito (seja ele de que tipo for) é a arte, a cultura? No combate a preconceitos embora sejam muitos e precisam ser especificados, para mim de forma geral, precisamos ter em primeiro plano: Consciência da realidade, e ter o entendimento de que as diferenças fazem parte da existência humana e portanto precisam ser respeitadas. Por isso a diversidade tem que ser cultivada na sociedade. Todas as partes precisam ser ouvidas, democraticamente. Arte e cultura são inerentes a todos os povos, em qualquer sociedade do mundo, por tanto, se cuidadas com responsabilidade nesses aspectos, podem ser boas “armas” de combate a preconceitos.

E falando em arte, você é um cara totalmente envolvido com ela. Além de atuar, você canta e dança. Chegando a participar de algumas bandas e ganhar prêmios. Como a música e a dança entraram na sua vida? Comecei a dançar ainda no Congo quando criança. Dança e música são inseparáveis. Fui fisgado pelos dois gêneros. Fazia isso por amor. Eu já tive grupo de dança na escola no Brasil e também tocava violão com amigos no pátio nos intervalos entre colegas. Um dia fui chamado para fazer coro num grupo dos anos 90 chamado Skowa e a Máfia, exatamente porque dançava e cantava, eu tinha 16 anos de idade. Fazíamos shows em casas noturnas até chegarmos a gravar dois discos em uma grande gravadora e começarmos a fazer programas de televisão como, Xuxa, Angélica, Faustão entre outros. Na época era o Fantástico na TV Globo que lançava os videoclipes e fizemos dois que ficaram conhecidos no Brasil todo e assim entrei no mundo das grandes mídias. 

Você já atuou como dançarino e coreógrafo em shows das cantoras Marisa Monte, no show “Mais” em turnês pelo Brasil e exterior (Europa, Estados Unidos e Japão) e Elba Ramalho, com o show Tropicaliente, com turnês pelo Brasil, Europa e África. Conta um pouco como foram essas experiências. É muito difícil para mim nesse breve espaço, quantificar em palavras o que vivi em termos de experiências com essas artistas e todas as equipes que envolviam fazer parte dessas turnês nacionais e internacionais. Mas de imediato, digo que com esses trabalhos viajei o Brasil todo, não somente como muitos países pelo mundo. Na turnê “Mais” com a Marisa Monte realmente conheci o que é estar em uma grande produção de shows. Fazíamos temporadas de Quinta a Domingo nos melhores teatros do Brasil, em um show que envolvia roteiro, luz, som, cenário e figurino. Digno de grandes produções. Eu já tinha a experiência de coreografar junto a meu parceiro de backing vocal Che Leal, com o qual desenvolvemos essa concepção de canto e dança e trabalhamos juntos desde a banda Skowa e Máfia, Marisa Monte e por fim Elba Ramalho. Os shows eram grandiosos. Sempre tivemos destaques em matérias de jornais impressos como atrações à parte. Com a direção de Miguel Falabella no show Tropicalhente de Elba Ramalho, o roteiro deu tom e dinâmica de teatro musical para o espetáculo. Miguel criou um Pot-Pourri, em um dueto onde eu pude cantar como solista com a Elba Ramalho. Isso me deu muita vivência e experiência nos palcos. Foram anos intensos ao lado dessas Divas da música popular brasileira, dois anos ao lado de Marisa Monte e três anos com a Elba Ramalho, numa vida entre aeroportos, palcos e públicos diversos pelo Brasil e mundo. Isso me fortaleceu e me deu inclusive segurança para hoje como ator enfrentar as câmeras e os desafios de estar em sets de filmagens e gravações. Tive uma grande escola nos palcos, e foram muitos em 35 anos de carreira profissional na música.

Do samba ao pop, ao rock e ritmos caribenhos. Você já tocou de tudo um pouco. Mas qual seria o seu ritmo de trilha sonora que te representa bem? Eu gosto de música boa. Pode ser Jazz, Clássica, Pop, Samba Salsa, incluindo Funk desde que me toque o coração, ou me faça dançar. Não vou mentir para vocês, minhas trilhas sonoras favoritas tem 90% de música negra e adoro R&B norte americano, claro que os clássicos da música negra brasileira também fazem parte de meu repertório e para fechar a música Africana.

Voltando para o trabalho de ator, recentemente foi lançado seu novo filme “Um Ano Inesquecível – Outono”, dirigido por Lázaro Ramos, onde contracena com a cantora Iza. Como foi participar desse filme e ser dirigido por Lázaro? Foi mágico fazer esse filme. Eu amo trabalhar com Lázaro Ramos. Ele é genial, o que toca vira ouro. O Filme é um musical, algo raríssimo em produções nacionais e com uma singularidade de misturas muito agradáveis no repertório. Faço pai da protagonista, a personagem Ana Júlia brilhantemente vivida pela atriz Gabz… Muitas cenas nos emocionaram. O afeto de um pai que cria sozinho a filha, e quer vê-la reaproximar-se da Mãe vivida pela cantora Iza que estreia como atriz… Me emocionei ao ouvir a trilha de uma das cenas onde canto junto com a Iza um clássico da música brasileira “Coleção” e assim mantemos a memória desse gênio que foi “Cassiano” um dos seus ídolos. É muito difícil descrever uma experiência tão boa, positiva e impactante. Prefiro que as pessoas vejam o filme que está disponível no Prime Video.

Fora das telas e palcos, quem é Bukassa Kabengele? O que mais deseja? Fora das telas Bukassa é uma pessoa sonhadora, um utópico que de certa forma quer ver um mundo onde todos possam viver felizes e contemplados. Mas voltando a realidade, sou um pai coruja, um marido que ama e admira sua esposa. O filho mais velho de cinco irmãos. O tempo não para, e nessa viagem incerta que é a vida, espero dar o meu melhor para que minha família e amigos que tenhamos boas condições de vida. Cada vez mais gosto de estar em casa com a família e de compartilhar bons momentos com amigos.  Não perco tempo com coisas ou pessoas que não me agregam. A vida é curta. São muitos desafios, e sonhos ainda não realizados. Mas quando faço uma retrospectiva, vejo que sou abençoado por uma rica história de conquistas e que de alguma forma cheguei longe e sou grato por tudo que fiz como escolhas e todos os desafios que me fizeram uma pessoa melhor.

Fotos Márcio Farias @marciofariasfoto / Beleza Jefferson Azevedo @jeffe_marco / Stylist  Francisco Martins @francisco46martins / Assessoria de Imprensa DGassessoria e Comunicação @dgassessoria / Agencia Fabio Rios Agenciamento @fabioriosagenciamento / Looks Hermes Inocêncio @hermesinocencio / @novaluciusicarai / @lojajailsonmarcos.recife