CAPA: DESCONSTRUINDO ALEXANDRE NERO

Primeiro, ele apareceu de fininho como um verdureiro apaixonado. Foi se tornando apaixonante em outros papéis que nos deixaram ao alcance de todo o seu talento. Amamos e odiamos muitos deles. De Baltazar ao comendador José Alfredo, Alexandre Nero ganhou as telas, os aplausos e a admiração. Seja por sua arte, sua coragem, sua verdade, ou tudo junto.

Em seu trabalho mais recente na TV como Tonico Pereira, em Nos Tempos do Imperador, ele nos brinda com mais uma capa, a quarta pra ser mais exata. Uma parceria de nos encher de orgulho e conteúdo relevante e significativo para nossos leitores e leitoras. Uma conversa entre amigos, velhos conhecidos de longa data regada a temas como família, política, arte, os males e beneficies das redes sociais e claro, as transformações ao longo da vida e da carreira desde sua primeira capa, em 2012. Com vocês, Alexandre Nero.

“Fiz minha primeira capa nacional com vocês, essa é a segunda, e espero que possamos fazer muitas ainda” – frase final de matéria publicada em 2015 – sua terceira capa com a gente – Cumpriu-se a profecia. Parece que nos gostamos muito, né? (risos) Pois é…Parece que mais do que gostar, as coisas têm dado certo para nós. E o que é dar certo? Penso eu que num país como o Brasil, do jeito que as coisas andam, dar certo é ter o olhar para o futuro, planejar as coisas e colocá-las em prática, que é exatamente o que nos mantém vivos. E estar vivo, é o fato central de estarmos aqui.

De 2012 (nossa primeira vez juntos) a 2021, muita coisa mudou, até inverteu-se, no Brasil, no mundo e na casa vizinha ao lado. E quanto a você, quais foram suas transformações? Poxa, são dez anos. É muita coisa vivida, fica difícil enumerar. Mudei definitivamente para o Rio de Janeiro, me tornei um artista conhecido de grande parte do público, separei, casei novamente, tive dois filhos… Acho que aqui está minha grande transformação – os filhos. Eles fizeram a minha vida virar no avesso e me transformaram, têm me transformado diariamente em outra pessoa. Deixei muita coisa que me fazia mal, adquiri novos hábitos que me fazem bem, mas também passei a ter medos de que eu não tinha e a descobrir uma coragem que desconhecia…Enfim, acho que é como estar na escola como professor e aluno, ao mesmo tempo. 

Há mais mistérios entre o 8 e o 80 que possa supor nossa vã filosofia. Como enxerga nosso momento político e social atual, dito polarizado? Sou dos que acreditam que esse cenário polarizado só favorece o pensamento radical, que entendo ser aterrorizante para todos os caminhos e lados. Temos enxergado e transitado cada vez menos pelas áreas acinzentadas. É nessas áreas que me interessa mais estar e debater. Não acredito que na vida nada seja tão preto ou tão branco que não se possa dar lugar a outras cores, ou tons. E isso não é se isentar do debate, como algumas pessoas, que insistem em deixar tudo raso e superficial, tentam colar nas narrativas das redes. Sempre fui explícito no meu posicionamento de esquerda, mas tenho críticas ferozes para com ela, e nem por isso eu ou minha família fomos ameaçados de violência ou morte. Já não posso dizer a mesma coisa sobre os militantes que apoiam esse governo, que defendem armas para o “cidadão de bem”. Todos já entendemos quem eles consideram “de bem”. É esse ambiente de radicalismo, onde não há mais espaço para dúvidas, e somente certezas absolutas, que deixa esse tipo de gente confortável e vai aos poucos normatizando atos assim.

Na máxima de que o print é eterno, em relação às redes sociais online, podemos refletir sobre a possibilidade e o direito de mudarmos de opinião, sobre o cuidado do que é dito em público e sobre a mentira ter perna curta, ou não. Como lida com esse universo? Tenho lidado cada dia com mais cuidado, como tudo que pode sair do controle, mas me esforçado para não ficar ausente ou distante das redes. É assim que tenho visto a vida online, um lugar ainda muito útil e fértil, mas que tem se tornado, aos poucos, bastante perigoso não só para o indivíduo, como para a sociedade como um todo. Nesse momento de falsas narrativas, no qual o território das redes sociais vem sendo cada dia mais tomado por milícias digitais e discursos de ódio, racistas, machistas, anticiência, e por aí vai. Acho que é preciso ocuparmos espaços. Se não todos, pelo menos o bastante.

Nos Tempos do Imperador foi uma novela de época que trouxe em seu enredo temas até hoje discutidos e não resolvidos, como racismo, machismo e até fake news, aliás espalhadas pelo seu personagem Tonico. Como estão nossos passos evolutivos, empacados ou caminhando com muito esforço? É claro que em comparação com aquela época não podemos negar que evoluímos muito, mas sabemos que há muito o que se fazer para chegarmos perto de um ideal para todos, especialmente para os que mais sofrem com a injustiça social. Sou dos que acham que estávamos caminhando, a passos de formiga, mas estávamos indo para frente. De dois anos pra cá, demos meia-volta e pegamos o retorno. Hoje, me parece que estamos rumo à Idade Média, à barbárie novamente.

Tonico é um vilão clássico, do tipo ruim por ruim, ou ainda podemos enxergar nuances mais complexas de sua personalidade que expliquem sobre seu comportamento e atitudes? Não existe personagem totalmente ruim ou bom, porque não existe pessoa assim. Nós atores. Somos o espelho de uma sociedade e temos que representá-la, mesmo que eventualmente com maiores ou menores nuances ou tons de tinta mais fortes do que a realidade pura e simples, o público tem que se enxergar ali. Tonico foi criado para ser um vilão de novela das 6, que fala para uma gama infinita de telespectadores de todas as idades, crenças e classes sociais.  Precisamos entretê-los, emocioná-los e, se for possível, ainda passar algum conteúdo para o exercício civilizatório. Ele é mau, fala coisas absurdas e chocantes, mas tem carisma. Quero que as pessoas o queiram ver na TV. De que me adianta ter um personagem tão mal a ponto das pessoas desligarem a TV ou mudarem de canal? Quero que riam do Tonico, mas o pulo do gato é, não por ser engraçado, mas por ser patético. Construí o Tonico num tom “caricato”, quase “irreal”, tem momentos em que ele parece que saiu de uma peça de teatro infantil, para que as pessoas possam se divertir e se apegar a ele, mas logo depois eu possa dar-lhes uma rasteira e lhes mostrar como é nocivo e aterrorizante um homem desses dentro na vida íntima ou na vida pública, cuidando do dinheiro ou da saúde de um povo. Seria uma atrocidade para uma cidade, um estado ou um país. E aí lembramos que somos um celeiro de Tonicos Rocha. É a nossa pequena tentativa de lembrar as pessoas da importância de prestar atenção na hora de votar.

Ficar sem gravar, gravar em meio a uma pandemia com diversos protocolos de segurança, parar tudo, recomeçar, ir ao ar. Como foi passar por essa experiência? Tenho a sorte de estar numa empresa que zela e respeita seus funcionários. Tudo foi muito cuidadoso e por isso mesmo, muito lento. Foi uma grande novidade para nós gravarmos uma novela com tamanha diferença, no arco dramático. Fazíamos no mesmo dia uma cena do capítulo 80 e outra do 140, por exemplo. Para os que não são do meio entenderem melhor, um filme tem praticamente apenas 3 capítulos de novela. Percebe a loucura? Se fosse uma série, seria como se fizéssemos uma cena da primeira temporada e outra da décima, no mesmo dia. Isso não existe em lugar nenhum do mundo. Chegou um momento em que eu já não sabia mais o que estava gravando. De onde vinha ou para onde ia. Foi bastante assustador. Por sorte, tínhamos uma equipe competente que nos ajudava bastante, mas ainda assim eu fiquei bastante espantado. Gosto de ter controle total de todo o processo do personagem.

Falando em pandemia, conta pra gente a rotina em casa com crianças e os hábitos impostos por ela. O lado bom da pandemia foi esse – ficamos muito mais próximos das crianças. O que talvez tenha sido o lado ruim, pra eles (risos).  Isso fez com que eu começasse a questionar os meus erros e falhas como pai. Qual pai ou mãe que nunca, né? (risos). Tive que me reinventar.  Aprendi novos jogos e brincadeiras. Fui atrás, literalmente, de autoajuda em livros, na TV e na Internet. E comecei a dar ainda mais valor aos educadores, professores, monitores e animadores para crianças.

Voltando a falar sobre Tonico Rocha, quanto dele você buscou dentro de si e quanto fora, a partir da observação de outras pessoas? Eu sempre busco em mim todos os personagens que faço. Temos tudo, somos de tudo um pouco – a profundidade e as referências essenciais das personagens, só entendo na busca interna. E ele, para ter um bom alicerce, deve vir de dentro pra fora. Claro que externamente, busco e observo o mundo. Sou desses que fica catatônico olhando os outros. Todos são um grande personagem em potencial. Tonico Rocha tem muito de Odorico Paraguaçu, novela de Dias Gomes, eternizado pelo Paulo Gracindo e do Justo Veríssimo, o político pilantra criado pelo imortal Chico Anísio. Bebi na vasta gama de personagens do Lima Duarte e claro, no mais patético político real que existe e já existiu nesse país – Jair Bolsonaro.

Em 2012 falamos do seu CD Vendo Amor. Pegando o mote, acha que temos mercado para venda de amor, doação, permuta até ou é um item obsoleto? Essa moeda tem ficado fraca, mas acho que é um mercado que ainda vai se reerguer.

Você recentemente declarou que estava blogueirinho. Navega pelas redes sociais? O que te interessa, que tipo de perfis você segue? Ironicamente eu sempre fui um ”blogueirinho”. Tinha blog antes de ser moda (risos). Sou do tempo da Internet discada, me respeite. Eu cheguei aqui era mato (risos). Fui muito ativo nas redes sociais, há uns cinco anos atrás. Como respondi acima, essa foi uma das mudanças que o nascimento dos meus filhos me proporcionou. Comecei a selecionar mais as minhas lutas, o meu tempo.

Seguir, sigo de um tudo. Sou mais seletivo mesmo é com as coisas que posto. Entendo que o meu alcance não é mais tão pequeno quanto era antes e que eu devo ter mais responsabilidade sobre o que posto.

O que “já foi tarde” e o pessoal conservador tenta a ferro e fogo trazer de volta que você repudia? “Essa gente” é o que já foi tarde e voltou. Esse tipo de político caricato, da pior estirpe, que faz conchavo, que não trabalha, que só quer pros seus filhos e pros seus amigos, que quer a volta da ditadura, dos militares, a favor da tortura…Isso que tá aí, eu pensei que não voltaria jamais.

É importante não confundir o conservador de ideias ou mesmo o conservador do ponto de vista econômico, com isso que está aí no governo. Um está no plano do cinza, como falei antes, onde podemos e devemos sentar para conversar e negociar. São espaços de todos e todos nós devemos ter deveres e direitos. Não é só o que quero e não é só o que eles querem. Isso é política. Uma boa e saudável conversa.

Já o que se instalou nesse governo não é um pensamento conservador. Eles não querem preservar nada, querem apenas destruir. Não querem conversar, querem apenas exterminar. Soltam notas bombásticas e falas absurdas como método para desviar a atenção e assim “passar a boiada” e destruir um país, pois alguém está ganhando muito com tudo isso. São bandidos mesmo. Torço fortemente para que “essa gente” saia da vida pública através do voto. Que o povo perceba quem eles são.

No seu lugar de homem, o que entende por feminismo e machismo? Que não são complementares, como já vi muita gente tentando defender/confundir.  São antagônicos, como devem ser mesmo. Feminismo é o movimento que luta pelos direitos das mulheres e o machismo é justamente o contrário a isso. Machismo é o movimento que quer que o homem continue comandando a tudo e a todos, e que a mulher tenha cada vez menos espaço no poder e na tomada de decisões. Faço parte de um senso comum, também. Negar o machismo que existe em mim, pelo modo como fui criado, seria ignorância ou hipocrisia de minha parte, mas a minha diferença é que eu trabalho diariamente nessa transformação, para alinhar meu pensamento a novos olhares, novos prismas e perspectivas. Não é por mim. Tenho dois filhos homens e mesmo assim gosto de ver as mulheres no comando. Faço isso pela memória e pelas histórias das minhas avós, da minha mãe, das minhas irmãs e, claro, por meu senso de humanidade. Desejo que meus filhos sejam homens melhores do que eu. Melhores do que meu avô foi para minha avó, do que meu pai para minha mãe e eu para minha esposa. E mais importante, serem melhores homens para eles mesmos. O machismo também faz um mal terrível para o homem, e deveríamos falar mais sobre isso.

Em 2013 você inventou durante a entrevista o “provérbio chinês” autoestima, autocrítica e automóvel: É preciso manter os 3 calibrados pra se manter equilibrado. Inventa outro pra agora? Eu falei isso? Uau, como era bom frasista (risos). Foi uma fase. Depende muito do que estamos lendo, de qual fonte bebemos e onde depositamos nossa energia criativa. Eu vivia atento às escritas e aos aforismos, e com esse humor bem afiado. Hoje, voltando ao assunto transformação, não deixei o humor de lado na vida, mas tenho escrito coisas mais densas. Tenho achado que o momento está mais pra isso. Tenho me sentido assim.

O que te dá prazer na vida? Meus filhos, definitivamente. Tudo que vem deles, que faço pra eles, minha mulher, reunir amigos, familiares e, claro, meu trabalho. Eu não tenho nenhum hobby. Ou talvez meu grande hobby seja ver filmes e escutar música. Depois vou lá e faço tudo isso (risos). Entendo o meu trabalho como uma grande diversão e assim ele tem que ser – senão, não faz sentido pra mim.

Tomado pela vida de ator ainda há lugar para o músico? Não sei atuar sem ser músico. Não sei ser músico sem atuar. Lugar sempre houve e há, mas nem sempre há tempo, oportunidade ou vontade. Aconteceu em 2019, quando eu estava gravando a série Onde Nascem os Fortes, no sertão da Paraíba. Ali, depois de um tempo sem compor nada, eu pensei: “estou com vontade de escrever e cantar algo. Vou achar o tempo, e vou fazer a oportunidade.”. Plantei uma semente que floresceu lindamente em um álbum que lançarei no início ano que vem.

A arte tem um forte papel social, mas parece incomodar a ala conservadora da sociedade. Por que será? Porque a arte faz você sentir e pensar, e quem detém isso tem potência. E o poder morre de medo da potência. Poder é um revólver, você pode ter. Potência é uma onda do mar. Nem todo mundo tem. Um surfista consegue, por pouco tempo que seja, manipulá-la. Percebe? Todos querem ter potência, os que não tem vão atrás de poder. Não tô inventando nada disso, tá? Isso é Deleuze. O que é mesmo que a mãe fala para o filho quando ele “faz o que não deve”? “Tá fazendo arte, né?” Ela diz. É isso! A mãe ali é o poder e o filho está descobrindo novos mundos com toda sua potência criativa. Claro que isso é uma analogia poética. Na vida real, a mãe é aquela que cuida de uma criança que não pode responder por sua própria segurança, mas num país livre o povo pode e deve escolher o caminho que quer seguir. Não cabe ao governo querer fazer o papel de mãe e dizer o que pode e o que não. Cabe ao governo apoiar sempre. Essa ala da extrema-direita morre de medo das potência porque não conseguem controlar. Nem com revólver.

Aliás, vou fazer um parênteses. Nas redes muito se fala em “lacrar”. Provavelmente isso que eu disse agora sobre Deleuze seria recebido assim: “Nero quer lacrar”. Pelo contrário. Quem quer lacrar, quer fechar. Quer que as mentes não sejam abertas. Que as coisas não se misturem. Querem que os gays continuem trancados nos armários. Não querem negros passeando pela Casa Grande, ou que as mulheres deem palpite na política, e continuem na cozinha. Não somos nós que queremos lacrar, são eles.

Três capas atrás você era ator, músico, famoso, charmoso e por aí vai. Agora você é pai. O espaço é todo seu pra se derreter pelas suas crianças e contar sobre a paternidade. Vai faltar espaço ou palavras e nessas horas que me faltam palavras eu uso a música. Queria que aqui pudessem escutar minha maior declaração de amor aos meus filhos, e que depois de ouvir algumas vezes, acabei descobrindo que também é uma declaração aos meus pais. Somos todos uma continuidade. Já que o espaço está livre e não falei uma frase quando me pediu, vou deixar um poema todo. Parceria que fiz com o amigo João Cavalcanti. Música uma nova do disco novo (lançado hoje!). 

A partícula

Uma, em particular

Dois

Querendo ser bem mais

Do que a vida

Traz

A partícula

Uma, em particular

Dois

Querendo enganar

A morte e a vida

Quem irá negar ser Deus

Que enlaça os traços teus

Aos meus e faz de nós

Esse eterno fio rendado a partir

Da partícula

Assista vídeo com o making of:

Fotos Sérgio Santoian / Produção Executiva Marcia Dornelles / Iluminação Robson Braga / Beleza Ricardo Tavares / Styling Karen Brustolin / Video Uriel Zanyor / Locação Teatro Rival Refit / Agradecimentos: Le Dépanneur / Hotel Bossa Nova Ipanema