ENTREVISTA: ROBSON TORINI: DOS ACOUGUES DE GARANHUNS PARA OS PALCOS DO MUNDO

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Por Bruno Albertim / Fotos Lucio Luna

Aos 15 anos, o mais novo dos quatro filhos do comerciante de carnes José Clarindo e da professora Josefa Monteiro participava de montagens de Chapeuzinho Vermelho no colégio Diocesano, no Agreste de Pernambuco. “Todo mundo, de alguma forma, começa com Chapeuzinho Vermelho”, ri o pernambucano de Garanhuns que, muitos anos depois, encara outros lobos. Aos 37 anos, Robson Torinni é um dos mais respeitados atores da cena teatral do Rio de Janeiro. Até chegar aqui, contudo, outras feras tiveram que ser abatidas.

Aos 18 anos, a beleza do rapaz patrocinava sua mudança para São Paulo. Inscrito por um irmão num concurso importante da época, ganhou como prêmio a transferência para viver a vida de modelo iniciante na capital paulistana. Era o começo de uma espiral a seu primeiro inferno particular: Robson Torinni passou a dividir um apartamento minúsculo como república com outros modelos. Não foram tempos exatamente fáceis.

Robson Ficou meses sem trabalho. Semanas “comendo salsicha em lata”. Driblando situações em que teve que soprar pra longe assédios e ofertas de cocaína – droga à época muito usada pelos colegas de ofício para manter a magreza e encarar expedientes em turnos seguidos. Pensou em largar tudo e voltar pra Garanhuns. Por orgulho, jamais pediu ajuda à família. Insistiu e ficou. “Não queria largar meus sonhos, nem dar trabalho a eles”. Não foi fácil. Mas o “Filho de Zé Carne”, finalmente, chegou lá. “Sou um careta convicto”, ele diz.

Atualmente também visto como um vilão na novela das sete da Rede Globo de Televisão (Família é tudo), Robson Torinni virou verbete obrigatório da cena teatral carioca por dois dos grandes sucessos da última temporada. Textos do franco-uruguaio Sérgio Blanco com direção de Victor Garcia Peralta, “Tráfico” e “Tebas Land” expõem as vísceras de personagens radicalmente marginais.

Na primeira, Torinni dá corpo a um jovem garoto de programa com fascínio pela violência contra seus parceiros; No segundo texto, divide a cena com o veterano Otto Jr. Vive um jovem parricida que encontra um dramaturgo interessado em escrever sua história. Entre os mais de 15 prêmios colecionados, Otto ganhou um Shell por “Tebas Land” e Torinni, um prêmio de Melhor Ator pelo Botequim Cultural, mesma chancela que concedeu os prêmios de Melhor Direção e Melhor Espetáculo para “Tebas”, além de uma indicação de Melhor Ator ao Cesgranrio.

Depois de ser selecionado como o único brasileiro entre os mais de 1,7 mil espetáculos do último Festival de Avignon, realizado em julho, na França, com várias boas críticas e sessões lotadas, Tebas Land começa a circular pelo Brasil. Durante sua passagem entre os dias 31 de agosto e 1 de setembro, com um Teatro do Parque, praticamente lotado no Recife, Torinni conversou com a reportagem da MENSCH.

“Fazia mais de 16 anos em que estive num palco do Recife. Atuar num grande festival do mundo, é maravilhoso, mas nada se compara à sensação de atuar em casa”, diz o filho de Zé da Carne  que, nesta entrevista a Bruno Albertim, resume um pouco da trajetória em que, além de fome e outras armadilhas, teve que, de alguma forma, driblar a própria beleza para chegar aonde quer estar. Neste momento, ele também articula a itinerância nacional do monólogo Tráfico. “Meu sonho é poder comprar um teatro, para poder ficar o tempo necessário em cartaz com os projetos em que acreditamos e que precisam de mais tempo em cartaz”, ele diz.

Você é pernambucano de Garanhuns, filho de um comerciante de carnes e de uma professora…Sua trajetória é bastante curiosa. Como foi até se estabelecer como ator no Rio de Janeiro? No Diocesano, meu colégio em Garanhuns até o final da adolescência, comecei a fazer teatro amador. Foi lá que conheci o Pedrinho Wagner, o Mário, o Everaldo, os meninos que depois fundaram o Grupo Magiluth. Toda essa gente estudou junto comigo. Me formei lá em 2003. A gente fez Chapeuzinho Vermelho juntos (risos). Todo mundo começa fazendo Chapeuzinho Vermelho (mais risos). Fizemos duas peças antes, nem lembro o nome. Eram peças para estudantes. A gente ensaiava na escola e apresentava no colégio e no Festival de Inverno de Garanhuns.

E neste momento, você acabou ganhando um concurso para modelo… Ganhei um concurso no Recife, que era um dos  mais importantes na época. Na verdade, meu irmão montou um book meu e me inscreveu. Eu tinha 18 anos, ganhei e me mudei para São Paulo. O teatro já tinha plantado uma sementinha na minha vida, mas a moda apareceu como possibilidade profissional primeiro.

E já dava para viver como modelo em São Paulo? De jeito nenhum. Fui para fazer os cursos preparatórios para entrar no mercado como modelo. De repente, tudo parou. Não conseguia trabalho de forma alguma. Fiquei um ano em São Paulo, sem trabalho quase nenhum. Meus pais me perguntavam se estava tudo bem, se eu precisava de algo. Por orgulho, eu dizia que estava sempre bem. Não queria desistir do sonho. Mas houve meses seguidos em que eu não conseguia trabalho nem para ilustrar panfleto de quitanda. Comi grama que nem um cavalo. Depois de um ano, peguei meu primeiro trabalho. Morava numa república, com vários modelos, perto da Avenida Paulista. Era um inferno. Alguns usavam drogas, tomavam remédio para não engordar e aguentar virar noites trabalhando. Era pesado para mim, que nunca bebi nem jamais usei qualquer tipo de droga. Vivia sonhando em poder ganhar dinheiro e sair dali para morar sozinho.

Até que conseguiu… Sim, aluguei uma quitinete no Largo do Arouche. Assim que comecei a ganhar um dinheirinho, fui morar só. Eu tinha 20 anos, já tinha saído de casa desde os 15. Era muito doído, a saudade de casa, da família, era muito grande. Pensei várias vezes em desistir. Ganhava pouco. Às vezes, ficava semanas inteiras comendo salsicha de lata. Mas não queria preocupar a família, nem pedir dinheiro a eles. Meu pai é dono de acougues, tem uma cadeia de fornecimento de carnes para o comércio de Garanhuns.

E você, curiosamente, é vegetariano. Sempre foi? Comia carne antes. Tem uns quatro anos que parei. O corpo não tava pedindo nada. Mas, nessa época, recebi em casa um casal de atores que veio para o Rio gravar uma novela. Eles são veganos. Não vieram com doutrinação, mas eu descobri como foi bom parar de comer carne. Meu sono melhorou, minha digestão melhorou. Com uma boa estratégia, você pode obter as proteínas de vários alimentos além da carne. Faço suplementação. Quando vou visitar a família, em Garanhuns, meu pai chega em casa com um monte de verdura. Acho bonitinho (risos). Meu pai, eu acho, é o primeiro artista da família. Tem uma sensibilidade surreal. Entende os outros. Hoje, não como nada de carne, mas quando era novo, já ajudei a matar boi (risos). Adolescente, ajudava meu pai no açougue.

E você ficou nessa vida no Largo do Arouche até quando? Eu vivi uma fase muito triste. Quase todos os dias, tinha que fugir de assaltos. Teve um dia em que vários moleques me atacaram com faca. Mandaram passar o dinheiro. Pedi pra devolverem pelo menos o passe do metrô. Eu chorava todo dia. Eu tinha pago até já um ano de aluguel, mas sabia que tinha que sair dali. Achei um apartamento perto da Paulista e me mudei.

Mas, e o teatro? Ficou pra trás? Continuei trabalhando como modelo. Quando voltei a ganhar dinheiro, comecei a estudar teatro. Eu nunca tinha estudado, mas acho que tinha a vocação. Primeiro, estudei na filial paulistana do Globe Theatre (o instituto londrino oficial da manutenção e do ensino da obra de Shakespeare) e, depois, na Escola de Atores de Wolf Maya. Continuava trabalhando como modelo para me manter e sofria muito preconceito. Não era como hoje, com um respeito maior à diversidade. Lembro de uma situação em que eu estava na São Paulo Fashion Week e um maquiador perguntou de onde era meu sotaque. Quando falei que era de Pernambuco, ele perguntou: “E tem gente bonita nesse lugar?”. Chorei calado. Se fosse hoje, seria muito diferente, ele ia se foder.  Tive que amenizar muito meu sotaque. Hoje, faço questão de exibi-lo com orgulho. Mas, para sobreviver, tive que matar meu sotaque pernambucano e isso foi muito doído para mim.

Da moda, você passou para a TV? Quando eu estava estudando na escola de Wolf Maia, a agência de modelo me chamou para fazer um teste pra Oficina de Atores da Globo. Eu simplesmente não podia deixar a oportunidade. Era a primeira vez na minha vida em que eu iria ganhar dinheiro com o que eu mais queria na vida: atuar. Bem, eu já tinha vendido até fruta no mercado. Fui embora. E, no Rio, consegui fazer uma faculdade de teatro. Eu queria muito ter uma graduação.

Aí, finalmente, deu para parar de “comer salsicha”? (Risos). Sim, morei em vários bairros até comprar o apartamento onde vivo, na Gávea. Fazia teatro e tudo que aparecia na televisão: Malhação, pequenos papéis em novelas… Velho Chico, Boogie Woogie, A Dona do Pedaço… Em paralelo, ia para São Paulo trabalhar como modelo.

Você segue trabalhando como modelo? Sim, mas hoje sou mais seletivo, escolho melhor os trabalhos. Aliás, hoje também escolho melhor os trabalhos no geral. Montei minha produtora para poder montar os textos e projetos que realmente me interessam fazer. A gente tem que aprender a produzir

Como o texto de Tebas Land chegou até você? Eu estava em Buenos Aires, aonde sempre vou para pesquisar a nova dramaturgia, a cena off da cidade, os teatros além do circuito da Corrientes. Essa dramaturgia me interessa muito. Ai, vi uma montagem do Tebas, trouxe o texto e o (diretor) Vitor Garcia Peralta amou. Não conhecia ainda o Sergio Saboya, apenas sua fama como grande produtor. Nós o convidamos e ele coproduziu conosco. Hoje, ele é meu sócio. Vitor na direção e eu meu parceiro de cena, Otto Jr.

E o monólogo Tráfico veio depois? Quando o autor, Sergio Blanco, viu o ensaio de  Tebas, me ofereceu o texto. Tráfico, na verdade, veio para mim. Ele disse que estava escrevendo o monólogo para mim. Eu falei: Tá maluco? Um monólogo? Fiquei morrendo de medo de fazer. Ai, nesse tempo, teve o Tebas e começaram a falar, a ter sucesso, me enchi de coragem e disse; vou encarar. ICom o detalhe de que ele (o autor) sequer tinha visto Tebas ainda no palco. Tinha visto só o ensaio. Só viu Tebas Land finalizado há pouco, no Festival de Avignon, na França. O espetáculo Tráfico estreou o Poeirinha em outubro de 2022. Inicialmente, ia ficar apenas dois meses em cartaz. Mas foi fazendo sucesso, ingressos esgotados antes das sessões, que passamos também para o Poeira, e ficamos um ano em cartaz.

Tanto Tebas Land como Tráfico foram além de suas previsões iniciais, estendendo temporadas, comovendo público e crítica no Rio. Esses espetáculos mudaram a percepção do mercado para teu trabalho como ator. Tebas Land ficou de fevereiro a maio deste ano em cartaz no Rio e depois foi selecionado para o Festival de Avingon. Com as apresentações no Recife nos dias 31 de agosto e 1 de setembro, no Teatro do Parque, queremos começar a circular pelo País. Sim, é verdade. Depois de Tebas e de Tráfico, pararam de me chamar para fazer o principezinho (risos) nas peças. Quando viram os tipos de projetos que eu produzo, entende? Quero que as pessoas me respeitem pelo ator que sou, um ator que sai da casca. Não estou reclamando a Deus por ser considerado bonito (risos). Obrigado, papai e mamãe, não estou reclamando. Mas quero ser mais que isso (risos)

O que te chama atenção em querer fazer esses personagens tão radicalmente longe da sua realidade, tão marginais? A complexidade desses personagens. São personagens difíceis. Não sofri nenhum abuso como eles. O submundo me interessa muito.

O ambiente da moda ainda é muito opressivo? Você nunca sofreu abuso no trabalho? Ainda há abuso, mas já mudou muito. Como ator, sofri vários. De diretor chegar para dirigir uma cena e lamber a orelha. Várias vezes, por medo de perder as oportunidades, me afastei e fiquei calado. Não denunciei. Hoje em dia, seria diferente. A cultura do abuso mudou. Antes, era horrível, a gente se sentia um bosta. Era um grande assédio moral, em que chegavam a insinuar que dependeria de você decidir se teria trabalho ou não. Ou você sentava no sofá ou não fazia o teste. Tive que ter muita força para não me deixar submeter a esse tipo de coisa. Mas eu prometi a meus pais que faria de tudo, menos perder meus princípios.

Você nunca chegou a experimentar alguma droga? A oferta deve ter sido constante, sim? Quando eu estava em São Paulo, alguns colegas de trabalho cheiravam muito, na minha frente. Eu nunca bebi, nunca fumei, nunca cheirei, não usei nenhum tipo de droga. Nunca quis. Nunca quis me vender para isso tipo de coisa. E vim muita gente se dando.

Mas esses universos inversos acabam, por contradição, te atraindo… Eu não sofri abuso em casa, do pai. Não vi a mãe ser morta pelo pai, sofrer pelo pai até chegar um ponto em que se mata esse pai, como meus personagens. Jamais vivi qualquer coisa perto disso. Minha família me dá muito apoio. Várias pessoas chegaram perto de mim para contar histórias assim, que tentaram matar pai e irmão. Entrevistei pessoas em presídios me contando que tinham sede de sangue. Um cara que me disse que tinha matado 65 pessoas porque tinha sede de sangue.

Escuto confissões bem pesadas depois do espetáculo. Tanto no Tebas como no Tráfico, esses personagens se encontram neste lugar em comum. São pessoas sem suporte familiar, que sofreram abusos no lugar em que deveriam estar mais protegidas, a própria casa. Esses universos, tão distantes da minha realidade, realmente me interessam.

E, agora, vocês começam a circular pelo Brasil a partir do Recife justamente depois de participarem do Festival de Avignon com Tebas Land, um dos maiores e mais prestigiosos do mundo, na França… Isso realmente é incrível, porque estivemos num festival de referência mundial em que não houve uma única crítica negativa. Eram mais de 1,7 mil espetáculos de teatro em cartaz, do mundo todo, e nós conseguimos lotar todas as apresentações e ainda ter uma série de críticas positivas. 1,7 mil espetáculos do mundo todo! Ninguém sabe nem direito o que vai assistir e, de repente, estamos ali, com a plateia lotada numa terra que não é a nossa.

Tebas Land começa agora a circular pelo Brasil, mas e Tráfico, o que falta? Pautas nos teatros! Vamos agora em busca. Acho que agora vou começar a trabalhar muito para comprar um teatro para poder ter os espetáculos em cartaz pelo tempo necessário (risos). Tô falando sério (risos).