Quem está conhecendo Késia pela primeira vez graças a sua personagem Tais na novela Elas Por Elas não imagina o tanto de coisa que ela já fez. E nem imagina a potência musical de nossa estrela. Ela é uma artista cujo trabalho exala amor e dedicação, seja pela música e pela atuação – a arte está em tudo o que faz. De uma família de músicos, a paixão pela profissão vem de berço. Neta de maestro, Késia transita por diferentes estilos musicais, deles absorve o que tem mais conexão com sua música a qual define como Pop, Soul, R&B. Sua veia artística para a dramaticidade veio com o grupo Nós do Morro, do Vidigal (RJ), onde a paixão pelo tablado a motivou a participar de grandes musicais como Beth Carvalho, O Musical, Soul Roberto e da peça infantil A Menina Edith e a Velha Sentada, com texto e direção de Lázaro Ramos, em 2014. Participou ainda dos musicais Garota de Ipanema, o amor é bossa, Bossa Em concerto, Rio mais Brasil e do musical Elza, como uma das protagonistas, celebrando a figura e trajetória da cantora Elza Soares, em 2018. No meio disso tudo ainda veio a participação em 2012, da primeira edição do programa The Voice Brasil, ficando entre as finalistas, o que foi um divisor de águas em sua carreira. Atualmente, Késia encara uma das protagonistas de Elas por Elas, novela das seis da Globo, sua estreia em novelas, e também no filme biográfico Mussum, O Filmis, o vencedor do grande prêmio do Festival de Gramado. Na semana da Consciência Negra, uma estrela à altura do poder e potência negra no Brasil. Se encantem com nossa querida Késia!
Késia, voltando no tempo, percebemos que a música sempre fez parte de sua vida – do avô maestro aos musicais. Como e quando a música lhe tocou? Qual sua primeira lembrança musical? Eu não tenho muita noção de quando e como a música me tocou porque ela começou pra mim muito cedo, mesmo sem a visão de que poderia ser profissional, era com prazer. Convivi com meus tios dando aula de violão, com meus pais e minha avó cantando no coral da igreja. A música me toca desde sempre, vivo música 24 horas por dia. É a minha arma, meu escudo, meu motivo de existir. Até o teatro veio, por causa da música. Então, não tenho claro esse momento. Humildemente falando, eu e a música temos um lugar para além de fama, sucesso. É meu alimento diário.
No seu repertório muito pop, soul e R&B. Esses três estilos, eram o que você costumava ouvir quando mais nova? Como despertou para esses ritmos? Acho que o soul e o R&B vieram por causa do gospel, porque a igreja bebe muito dessa fonte, da música gospel americana, não é nosso, não temos o R&B daqui. O pop acaba abrangendo muita coisa, o que é o pop do Brasil de fato? É o funk, pode ter o elemento de MPB, então acho que foi um despertamento natural, eram os lugares onde eu via mais cantores, com mais melodia, com mais nuances sonoras, extensões vocais, desafios e aberturas de vozes. Isso também fazia parte do meu cotidiano e naturalmente fui para isso. É a história de quase todos que passaram pela igreja ou que de alguma forma consomem a igreja como música, que tiveram a oportunidade de se beneficiar musicalmente através da igreja. Mas como cantora, consumo praticamente tudo porque preciso conhecer, ouvir, estudar e de alguma forma essas coisas também me influenciam e vão me evoluindo sem me fazer perder a identidade. A minha maior identidade é o meu timbre, que é diferenciado, os caminhos que eu uso para escrever, para compor. Está no meu DNA, como tudo que é batuque, tudo que é grave, o rap, funk, samba, acho que tudo isso tem em comum a pretitude, a música preta.
Acredita que é de novinho que se molda o gosto musical de uma pessoa? O quanto a influência externa pode contribuir para isso? Acredito que desde novo temos influência do que consumimos em casa, dos lugares que frequentamos. Mas a influência externa também é importante. Eu, por exemplo, tinha restrições por ser evangélica, quase perdi a oportunidade de conhecer coisas que inclusive contribuíram para que a música gospel existisse, porque música é música. É claro que tem um som direcionado para algo religioso, para adoração, para o louvor, para o culto, em qualquer religião, mas tudo é música – a sirene é música, o ar condicionado é música. O externo só contribui, acho que quanto mais você aprende e conhece, mais você também conhece a história da música, do mundo. Porque as músicas falam muito com os artistas sobre sua cultura, de onde vêm, métricas, sinais, signos e isso só colabora, só contribui. Para quem gosta do que faz, é um prato cheio, um parque de diversões.
Algumas pessoas não sabem, ou podem não lembrar, mas você foi um dos grandes destaques do The Voice Brasil de 2012. Musicalmente falando, foi um divisor de águas como cantora? 2012 é onde tudo começa pra mim musicalmente. Foi quando entendi que poderia ser independente na minha arte e acreditar que eu poderia viver disso, entre trancos e barrancos, mesmo sabendo que não é fácil. O The Voice foi o que me impulsionou, foi o que me mostrou, me revelou para fora da minha comunidade, do meu grupo, do meu meio. Foi o que me possibilitou me ver no palco, porque eu não tinha uma experiência de cantora. Fiz back vocal de banda de pagode, cantava no coral da igreja, mas a Késia existe a partir dali. O Lulu falou “nasce uma estrela”. Sem a pretensão de ser a estrela, mas eu comecei a brilhar pra mim mesma ali. Então, de fato, é um divisor de águas – um dos mais importantes da minha carreira. Antes disso, era tudo fruto da minha imaginação. A partir dali, começo a concretizar, a viver e trabalhar e até hoje sigo nisso. Cada vez mais conquistando, dentro do que eu posso dentro do que consigo, do que é gostoso, honesto, com muita luta, muita batalha. Mas o The Voice, de fato, foi o início de um ciclo.
É dessa época que veio o apelido de diva do padrinho Lulu Santos? O que de mais precioso ele lhe ensinou na época, e que você levou pra vida? Eu não tenho memória de alguém me chamar e me enxergar como diva antes do Lulu, inclusive não me via nesse lugar. O Lulu me ensinou e ainda me ensina, mesmo eu não caminhando com ele. Ele me olhava como igual, ele me respeita como cantora, intérprete, musicista – me olha como companheira da arte. E é muito importante pra gente que veio depois, ver esses mestres, esses pilares da música popular brasileira te reconhecendo. Faz uma diferença na caminhada. Eu fiz uma participação no disco dele Lulu canta & toca Roberto e Erasmo, em uma faixa. É só uma participação, mas me fez fazer parte da discografia de um dos maiores hitmakers do pop rock nacional e pra mim, é como uma prova de que eu deveria mesmo seguir a minha intuição, os meus sonhos. Acreditar que eu estava falando a mesma língua das pessoas que eu admirava e que tinha potencial para chegar lá.
Da música para os musicais foi só um pulinho. Como foi atrelar a música à dramaticidade? Eu nunca tive tanto espaço nos teatros musicais, não peguei grandes personagens. Sempre fiquei no coro. Acho que as pessoas foram se acostumando com a minha imagem em algumas peças e fui entrando nesse espaço, mas nunca me senti inserida nele. O musical Elza foi o último em que participei e foi o que mais se aproximou de mim como cantora. Foi onde mais tive espaço para usar meu corpo, minha voz, meu canto não podado, não condicionado a uma estética específica. Eu pude ser a intérprete que eu sou. Foi um musical que me iluminou para um lugar do teatro. Tenho um carinho especial. Foi um processo difícil, árduo, por várias questões, principalmente por falarmos da vida de uma mulher negra que passou por tantas coisas, que atravessou gerações e venceu. Então, a gente lidava com alguns gatilhos de vida pessoal, mas pra mim é como se eu tivesse feito todos os musicais para chegar no Elza e de fato me sentir um pouco dentro desse espaço. Foi uma honra falar da Elza, sempre vai ser, foi um presente.
Ser atriz sempre foi um desejo seu? O quanto o Nós do Morro lhe ajudou nisso? Sempre foi, talvez, um lugar que eu olhasse com atenção e, involuntariamente, posso ter desejado, posso ter me sentido capaz – mas, acho que, muito pela música. Eu me considero uma intérprete, eu sou cantora, mas sou uma intérprete, tem uma letra, uma mensagem a ser passada, uma história a ser contada. O Nós do Morro veio porque eu também queria perder um pouco do corpo não livre num palco, eu estava acostumada com o altar da igreja. Então, não se tem a liberdade que eu gostaria de ter. Não era o que eu queria cantar. Como queria olhar para as pessoas, como queria ter a liberdade de me movimentar sem medo de ser julgada. Não era ali. Eu já não fazia parte mais da comunidade cristã. Então, eu cantava mas meu corpo não entendia aquele espaço ainda e o teatro veio especificamente para isso.
Queria fazer peças, estar no palco, mas a TV era algo muito distante. O Nós do Morro me ajudou 100% nisso – é a minha escola. Se não fossem eles, com certeza, não estaria agora fazendo essa matéria. Lá eu vivi, morei, tinha compromisso com as aulas, com o teatro, tenho gratidão por meus professores. Eu encontrei, nesses dias, a Ana Cotrim no Projac e fiquei emocionada porque ela foi a minha primeira professora de teatro. Devo ao Cico Caseira, que já não está mais entre nós, que foi o cara que olhou pra mim e disse que eu tinha que fazer comédia. Eu falava “Pelo amor de Deus, não. Já tem muita gente rindo de mim no mundo, não aguento. Quero fazer drama”. Enfim, lá criei laços, amigos, tenho gratidão pelo espaço, pelo acolhimento, não só me ajudou, mas me formou de fato.
Peças, musicais, filmes e agora novela. Se sente realizada? Ou ainda falta muito para poder dizer que chegou lá?! Eu escrevi algo que é assim: “Perseverança é uma linda virtude de quem sabe aonde quer chegar. Ainda que num vento tudo mude. Quando balança é como o mar, segue firme, segue forte, não deixa um sonho naufragar. Vai navegando como pode, esperando a maré virar”. É nisso que eu me pauto. Eu sei que querer mais, exige trabalhar mais. Exige, talvez, ter mais nãos, mas eu já sei que isso não me impede de conquistar as coisas em que eu acredito.
Falando nisso, você está nos cinemas atualmente com o filme Mussum, O Filmis, que tem sido apontado como o grande lançamento nacional deste ano. E para você, como foi participar desse longa? Participar desse filme é um presente pra minha vida. Vou contar para os meus filhos a história de um dos maiores atores, comediantes, desse país e para a qual, de alguma forma, eu contribuí. Estive ali, assim como ele esteve na minha formação, assim como ele esteve na minha memória afetiva, na minha infância, da minha família, uma memória ancestral. Ter a direção do Silvio Guindane é um luxo. Dividir personagem com a minha amiga Jeniffer Dias, Aílton Graça genial, Cacau Protásio, Dona Neusa, Yuri Marçal, meu amigo, irmão. Pra mim, é um presente e uma onda. É bom poder gastar essa onda e falar “caramba eu tô nesse projetão”, que coisa linda. Quero mais, que venham outros longas.
Paralelo ao cinema você está na TV com sua estreia em uma novela, com a personagem Taís em Elas por Elas. Como surgiu o convite e como é recriar um personagem que na primeira versão foi feito por Sandra Bréa? Eu fiz testes, passei e estamos aí. Tem uma energia da novela – o roteiro a seguir, a história a ser contada, mas as personagens são diferentes, têm nomes, corpos e raças diferentes. Tem a referência e reverência a Sandra Bréa. Pesquisei tudo sobre ela. Vi que ela era uma mulher que também cantava, com uma voz grave lindíssima, elegantérrima, era do humor. Acho que eu busquei me conectar mais com a arte dela, com a capacidade dela de entregar aquela personagem do que de fato recriar a Vanda, que pra mim, veio como Taís, negona, modelo. Então, as construções passam por lugares diferentes, mas me sinto honrada de ter sido escolhida para representar uma personagem que foi apresentada e construída por uma atriz tão maravilhosa, gigante, competente e amada. Quando meus amigos falam dela, falam com brilho no olhar e isso, pra mim, é uma honra.
O remake de Elas por Elas, trouxe uma personagem negra. Como você enxerga essa democratização, digamos assim, do audiovisual hoje em dia? Acredita que de fato está havendo uma mudança de consciência? Acredito que está havendo uma mudança. Eu faço parte dela, mas é óbvio que tem muito a se fazer. Acho que todo mundo entendeu, está entendendo e, mesmo quem não está entendendo, precisa se movimentar porque é interessante pra eles também. O mundo está mudando e quem está realmente interessado em mudança, vai começar a ceder. Mais do que isso, também acredito que os debates estão mais ativos. As pessoas estão tendo mais oportunidades de ser afetadas com esses questionamentos e talvez se sintam na obrigação ou entendam que precisam reparar um tempo que pra gente foi custoso, que nos custou vidas, não só trabalho, mas vidas, saúde mental… Nos custou muita coisa e ainda custa. Acredito que sim, mas ainda tem muito o que trabalhar no interno, na escrita, luz, direção, nas escolhas do elenco, no geral, maquiagem, cabelo… Em todos os setores. Enquanto houver somente um negro, a gente não está falando de ter alcançado ou de ter chegado. Enquanto houver um único preto, ainda estaremos falando disso. Mas, de fato, existe sim uma caminhada acontecendo.
Por sinal, em relação ao Dia da Consciência Negra, você percebe alguma mudança de consciência de fato? Percebo sim. Posso falar por mim, por minha família, pelas conversas que eu tenho com meus irmãos. O entendimento da minha mãe, que hoje já aponta uma coisinha ou outra e fala “Isso é racismo, né filha”, ela já começa a entender que veio de uma educação colonizada. Eu tive a questão da minha mãe alisar meu cabelo desde quando eu tinha quatro anos. Só fui conhecer meu cabelo muito adulta e hoje, a gente conversa e ela entende. Você não percebe o quanto esse traço do racismo vai se enraizando, a ponto de normalizar algo que só te prejudica. Nada contra quem opta por usar química no cabelo, porque não é sobre isso. É sobre liberdade também, mas desde que se entenda que não é isso que vai te fazer ser inserido num lugar onde as pessoas são e vão continuar sendo racistas e o quanto isso pode te deixar sozinho. Às vezes até num grupo, num espaço. Mas, de fato, acho que a conscientização está um pouco mais potente, acredito sim.
Como lida com a vaidade (de mulher e artista)? Sou extremamente vaidosa. Sou dos cremes. Não sou muito da maquiagem, mas tenho o básico ali – cuido da unha, do cabelo. Como artista, sou tão vaidosa quanto, sou exigente comigo, crítica, persistente, me esgoto. Vou até o máximo do esgotamento para alcançar algo próximo da perfeição, porque perfeição já entendi que vai dar ruim se ficar insistindo. Gosto de ser elogiada, de ostentar o que acredito que fiz de bom (risos), me sinto foda naquilo que me proponho a ser foda, porque se eu acho que não vai dar eu falo “galera, isso não consigo, não é pra mim”. Consigo voltar e recalcular a rota. E faço terapia, que acho que é o mais importante.
Nos momentos de relax o que faz sua cabeça? Como recarregar as baterias? No momento não estou tendo (risos). Mas eu adoraria, se pudesse, ir para a serra, ficar num matinho, com um cachoeirinha no quintal, vinhozinho, poucos amigos. Eu ia adorar. Como não estou tendo esse tempo, vou pro estúdio de música porque, de fato, me alimenta, me acalma. Faço minhas coisas. Vou ouvir os sons, produzir com os meninos, sem desespero. É um trabalho, mas consigo relaxar. Ou fico em casa. Cato uma série boa dessas dramáticas que dão bug na cabeça, faço uma comidinha. Dou uma treinadinha, mas não sou fitness não.
Por fim… para conquistar Késia basta… Honestidade em todos os sentidos – na comunicação, no afeto, nas relações, na energia. Eu prezo muito por isso – nisso vem o amor, a amizade. O que não é honesto não dura muito e, às vezes, deixa alguns danos.
Fotos Lilo Oliveira @lilo.oliveira_
Beleza Viviane Ribas @viviribasbeauty
Roupas @zanyassessoria Assessoria @explaneassessoria