Desde quando apareceu na TV pela primeira vez, Letícia Sabatella arrebatou o coração do público com aquela voz doce, o sorriso encantador e o talento em ser várias personagens com tamanha maestria. Ao longo de sua trajetória, Letícia dá um mergulho na concepção das personagens e o resultado sempre é arrebatador. Seja no teatro, na TV, atuando ou cantando. A arte está no sangue e na alma dessa grande mulher. Atualmente interpretando a Imperatriz Teresa Cristina em “Nos Tempos do Imperador”, Letícia mais uma vez dá show. Algo comparado a essa matéria de belas fotos e palavras. Letícia é pura poesia.
Letícia, olhando de fora, você parece ter a delicadeza de uma flor e a força de um tufão. É isso mesmo? Como se definiria? Eu acho que esses dois contrastes fazem parte mesmo, esse Yin e Yang né? É a sensibilidade e força, é muito razão e sensibilidade. Eu acho que todas as vezes que eu fazia uma avaliação cognitiva-comportamental, eu sempre me achava intuitiva, muito sensível. Mas tem um lado meu que é muito racional, muito resiliente também. E também tem um lado criativo de pulsão, de compulsão, alguma obsessão em alguns momentos (risos). Eu acho que tem essa força também. E isso na minha profissão é muito estimulado, bem aproveitado, bem canalizado. Faz parte do fazer artístico, do ser atriz. Lidar com essa energia que vem do inconsciente, transforma-la em uma obra de arte. Seja na música, no teatro, seja na dança. Isso é algo que nos compõe né?
Seja atuando ou cantando, você faz tudo com muita intensidade e entrega. Cada personagem sua não passa despercebida na trama e cada música cantada é de arrepiar. Como você chegou a esse apuro técnico? Você vê tudo isso dessa forma que nós vemos? Ai eu fico feliz… Eu me misturo com a massa criativa que transpassa na verdade né?! Então eu fico muito envolvida, é…o feedback, o olhar de quem vê, me reconhece várias vezes paralelamente ou até me ajuda a elaborar ainda mais aquilo que eu deixo transpassar na hora do fazer artístico. Na hora de um personagem acontecer, percebo que a gente lapida e trabalha com algo muito técnico também, objetivo, mas também tem uma dimensão do inconsciente que é feita com uma necessidade, com uma alma coletiva. Então, cada personagem, cada trabalho é forjado também por quem o deseja, por quem o demanda, pelo público. E eu percebo que eu sou a ponta de um iceberg na construção, na manifestação desse arquétipo que é a persona, que a arte, que a obra de arte se permite. Se mostra realizada. Eu sou parte, mas é feita por um consciente coletivo também, sabe? Então, acho que isso é ser um artista. Também é você ser esse cavalo, esse canal, esse momento quando algo que precisa se manifestar é manifesto. E assim, eu também estou aqui, ouvindo e atenta, escutando a manifestação desse arquétipo. Eu gosto do que eu aprendo com cada trabalho que eu faço também.
De onde veio a vocação para as artes, em especial atuar e cantar? Veio de uma geração de muitas mulheres, muitos artistas do âmbito doméstico, da vida familiar – minha avó, minha mãe, minhas tias, a gerações anteriores a elas eram de exímias mulheres que cantavam ao trabalhar, faziam de tudo. E trabalhavam no pesado, no delicado, no sofisticado, no cotidiano. O que elas estavam fazendo tinha sempre o cantar, tinha sempre uma busca pelo belo, tinha sempre um colorir na hora de fazer a comida, por exemplo. Tinha sempre uma elaboração, uma arte em cada detalhe na construção de festas, de tudo que era feito. E depois, tive uma formação, graças a uma posição de minha família, de poder frequentar muito frequentemente, o Teatro Guaíra. A família de Minas era de festas, de terreiros de Mias, de blocos de Carnaval de rua. A minha família do Paraná, de Curitiba, era o Teatro Guaíra, orquestra sinfônica do Paraná, depois os grupos de música… então, sempre tive muitos estímulos nesse sentido.
Sua estreia na TV, com a personagem Taís em O Dono do Mundo (1991), que deu o que falar e daí, nunca mais você parou. Como foi essa estreia e o que você desejava nesse início de carreira? Foi uma estreia bombástica. Pega bem de surpresa, nunca tinha feito uma novela. Tinha feito um especial com Luiz Fernando Carvalho, primeiro trabalho dele como diretor geral. E foi uma experiência incrível também. E logo em seguida, fui chamada para fazer a novela das oito, com Dênis Carvalho na direção e autoria do maravilhoso Gilberto Braga, onde conheci a Malu (Mader), Betty Gofman, Maria Padilha, Daniel Dantas, Caloni, Stênio Garcia, muitas pessoas incríveis…Fagundes, Fernanda Montenegro, Jaqueline Laurence, Glória Pires. Era um elenco fascinante – Daniela Perez, Marcelo Serrado, Otávio Muller… Era uma turma que se divertia muito. E a Malu era essa líder de turma incrível, muito acolhedora. Então, a minha sorte foi essa recepção. O susto foi o quanto repercutiu e foi uma coisa muito assustadora. Sempre procurei me refugiar no estudo, ser uma atriz com gabarito, porque eu estreei com um elenco no qual eu ficava sempre aquém, sempre me sentindo “nossa como eu tenho que comer feijão aqui pra alcançar”. Mas foi uma estreia maravilhosa. De fato, me lançou pro Brasil numa proporção que até hoje me sustenta e me deu um impulso muito grande na carreira, com certeza. E depois disso, vieram muitos trabalhos, oportunidades, muito aprendizado na Rede Globo, principalmente, onde eu tenho uma escola que me ensinou, à qual devo muita gratidão e reconhecimento.
No início chegou a ser julgada pela beleza ou estereótipos criados? O tempo inteiro né? A gente tenta ser, ter algo que respeite nossa peculiaridade. O tempo inteiro tentam colocar a gente em algo que possa ser digerível – a gente com uma expectativa, mas ao mesmo tempo as pessoas querem saber quem é você, a que você veio. Então, é um misto de tentarem te definir e você trazer sua personalidade. Eu acho que isso é acontece com muita frequência na vida de todo mundo, na verdade. Eu acho que eu sempre busquei ser fiel naquilo que eu acredito. E sei quais são minhas necessidades para trazer chão, segurança, pra fortalecer minha estrutura – aprender a lidar com a minha sensibilidade. Então, nesse ponto, eu acho que trilhei um caminho de muito respeito a minha trajetória. Tive momentos em que passei dos limites, fui aprendendo… Um aprendizado eterno né? Não é só feito de acertos né? Os erros são parte do caminho, são o caminho inclusive. E aos poucos, você aprende totalmente a não ter medo de errar, porque o erro é uma forma de você se enxergar, se conhecer e aceitar seu tempo de fazer. Acho que sempre tive muita escuta, tive oportunidade de ser reconhecida também por essa profundidade de busca. E com isso, apareceram trabalhos que sempre exigiam de mim mais busca, mais profundidade – respeitando minha essência.
Você tem a voz macia e o olhar forte, seja como mocinha ou vilã você tira tudo de letra. Pra você onde está o maior desafio ao interpretar? O que você procura passar? Eu gosto de permitir que o arquétipo se manifeste. Eu estudo muito a fundo cada personagem, cada contexto, estudo a parte psicológica. Eu estudo muitas coisas para me dar essa dimensão, eu vou na vida, eu procuro ter contato com os lugares, com as pessoas, com os rincões de nosso país, do nosso povo. Eu estou sempre estudando, participando de alguma pesquisa antropológica em algum sentido sabe? Sempre vou fundo nessa pesquisa de leituras. Então, na hora de encarar uma personagem eu tento me esvaziar de mim, e tento aprender com aquele universo, entrar naquela dimensão que propõe a existência daquela personagem, e permitir que o arquétipo se manifeste, não tão somente o estereótipo, seja composto. É como eu gosto de trabalhar.
Indo para seu personagem atual, a Tereza Cristina de Nos Tempos do Imperado, parece ser uma personagem de altos e baixos e cheia de nuances. Como está sendo para você fazer esse personagem histórico e participar de uma obra tão bem acabada para a TV? A Tereza Cristina é incrível porque é uma imperatriz que é, pela própria característica, pela maneira como a nossa história é sempre contada por homens, por um viés sempre masculino – sempre são os heróis. A gente nunca enxerga as mulheres. Principalmente, não enxerga as mulheres indígenas, as mulheres negras, mas, de fato, chega a atingir até mesmo uma imperatriz. Então, foi uma pesquisa arqueológica de muita dedução, intuição, e pesquisa de fato de ver pelas coisas que ela fazia, pelo legado que ela deixou. E reconhecer e fugir de váááárias definições e descrições estereotipadas, que vieram muito a partir de um desmonte que houve da imagem dessa imperatriz como do império a partir da república que se estabeleceu, do novo regime. Então, eu tive que furar esse cerco estereotipado de “que música ela cantava?”, “o que diz a letra dessa música?”, “que livros ela lia?”, “por que ela se interessava por determinadas peças com motivações femininas”, “porque ela se interessava por arqueologia” … É até Dante, até A Divina Comédia me traduz o que era a espiritualidade da língua dessa napolitana né? É quando vou ler A Divina Comédia, quando vou entender a poesia de Dante, entender a dimensão desse céu, do inferno. Do cristianismo que ela tem dentro dela. Ao mesmo tempo, uma pessoa que conhece o mundo, conhece línguas, conhece líderes de outros países, que tem uma função diplomática, inclusive. Quem é essa mulher? E ao mesmo tempo tem uma sensibilidade, que aprende ser napolitana para falar com o povo, que é muito caridosa, que cuida pessoalmente de pessoas que estão doente, que alforria cativos de 15 em 15 dias em praça pública. Enfim, fui construindo a imperatriz a partir do que existe, o texto foi me trazendo novas coisas e eu fui fugindo mesmo do estereótipo estabelecido. E a fui vendo com meus próprios olhos. Ela era feia? Por que? Não, não era feia. Ela tinha uma beleza natural. Traços que não são harmonizados, com essa ótica que a gente tem hoje. E também fui fugindo desse olhar reducionista e deixando a alma dela transparecer. Acho que há uma identificação nesse momento do nosso país, com essa mãe. Há uma demanda por essa figura materna de cuidar do social, de cuidar de sensibilidade com o outro, de compaixão.
Fora Tereza Cristina, você já interpretou outras personagens da vida real como Edith Piaf, no teatro. Que peso teve para você esses trabalhos e que responsabilidade te traz uma personagem real? Eu fiz Edith Piaf e foi com muita intensidade, traduziu e deu dignidade a seu submundo, ao lugar de onde ela surgiu, se origina. Das prostitutas, ao basfond, aos cantores de rua. Período de guerra de muita repressão. Foi uma sobrevivente de tantos estigmas que foram colocadas sobre ela. Uma força interior muito grande pra superar tudo isso e uma potência artística que dura até hoje. Piaf é popular. Terminando a novela ainda vou continuar fazendo, e já tem data marcada para voltar e fazer a peça de Piaf. E essas personagens históricas que você tem a responsabilidade de trazer à vida, de resgatar, fazem você pensar bastante no que é ser artista, também. Esse é o barato dessa profissão né?! É uma pesquisa constante da psicologia, da antropologia, da sociologia, da sociedade, de nosso psiquismo humano, das mentes.
Ao longo de sua trajetória, você percebe que como pessoa pública seu nome forte, você foi ficando cada vez mais engajada em causas sociais e lutas de minorias como dos índios e dos sem teto. Como isso te tocou e como encara hoje em dia? Eu nunca me considerei estar acima do bem e do mal. Fazendo parte de uma sociedade, uma polis, o ser político no que lhe é inerente, você também é ser um cidadão inerente. É nossa essência vivendo em sociedade e isso encaro como um dever de cidadania – me inteirar do lugar onde eu estou, exercer minha profissão no país onde vivo. Perceber que há uma função social nesse exercício, não é apenas por um engrandecimento pessoal somente, mas estar a serviço de uma sociedade mais justa. A arte tem sua função, tem sua função social dentro da sociedade em que está inserida. E minha pesquisa com o povo krahô (indígena) traz isso e é muito sério. Onde uma sociedade modelar existe, essa função do palhaço é tão importante quanto a do cacique, esse respeito à cultura. Como você sabe que, no Japão, um bonequeiro lá é um patrimônio nacional. Então, ser um agente cultural, ou qualquer profissão que eu exercesse, eu estaria fazendo parte da construção de uma sociedade. Então isso é inerente.
Num país com tantas desigualdades e injustiças, chega uma hora que cansa ou é algo sem volta. A luta será eterna? A luta é imprescindível. É para a vida toda.
Vivemos um momento político bem delicado, polarizado e de extremos. O que mais te assusta e como tirar lições disso tudo? A gente não pode se dividir na luta contra uma ditadura, contra um genocídio. A gente não pode aceitar essa divisão que cria essa polarização. Porque há algo muito mais hediondo – um genocídio. A gente não pode aceitar um genocídio e a falta de democracia. Então, nesse ponto, é hora de não cair nesse conto de extremos que precisam estar em lados opostos na hora em que a gente precisa lutar por uma condição de mais igualdade e por garantia de nossos direitos mais básicos. Então, a gente precisa se unir para poder se defender do que ameaça nossa democracia, do que ameaça nossa integridade, a vida dos cidadãos.
Sua luta também é pela Terra, meio-ambiente, pela natureza. Até onde você vai nessas suas lutas e o que tem tirado de aprendizado? Essa sensação de unidade com a Terra, com a natureza, com o ser. Assim como o povo Krahô tem isso muito claro. Eles não têm essa divisão. Eles choram, quando a terra chove. Então é essa unidade né? Não há como pensar o ser humano sem a natureza, e vice-versa.
Onde encontra o equilíbrio no meio disso tudo? Onde está seu eixo? Eu encontro o equilíbrio no meio do desequilíbrio mesmo porque acho que é muito dinâmico isso tudo, né? Eu me envolvo, eu me equilibro, eu tropeço muitas vezes e me reequilibro. Vou me conhecendo e testando meus limites. Muitas vezes passo de meus limites. Aí reconheço que deveria ter respeitado. A minha vida é um aprendizado “surfante”, a gente vai surfando as ondas (risos). Mas eu não me mantenho um poço de serenidade o tempo inteiro. Muitas vezes, eu preciso me retirar, preciso me compreender, compreender o entorno. Amizade me ajuda muito. Compreensão de muitas pessoas me ajuda muito. Eu conto muito com a tolerância de quem está em volta, ao mesmo tempo que eu tenho uma capacidade de compreender quem está passando pela mesma coisa. Eu acho que é no afeto, no amor mesmo que a gente se sustenta, se tolera, se compreende principalmente. Com uma forte dose de empatia. É assim que eu vou me guiando. Eu percebo a dinâmica do bem e do mal, luz e sombra dentro de mim, e de quem se aproxima de mim, quem está em volta de mim. Trabalhando, criando, vivendo. Eu compreendo essa dinâmica. E o diálogo, a análise, a terapia (lógico), mas o diálogo, ele é o melhor caminho, a coragem de dialogar. O ambiente onde você tem escuta para suas demandas, onde você consegue conversar, melhorar, crescer, ajudar o outro a crescer, é o ambiente que mais proporciona equilíbrio pra todos, pra mim, pra nós. Eu procuro me cercar dessas pessoas, e procuro ter uma relação de muita ética, de muita honestidade. Eu procuro me equilibrar através dessa conduta ética mesmo, com as pessoas.
Você já comentou que a religião não precisa ser um ópio. Tem que ser libertadora e transformadora. Como e onde já sentiu essa força? Como cultiva a religião em sua vida? Eu gosto muito de ler e gosto muito de alguns rituais. De ouvir música, gosto de mensagens, poemas e livros que tragam algum olhar mais amplo sobre o outro, compreensão sobre o outro. Tenho receio das instituições especificas porque começo a observar muito as relações de poder, então eu acho que tem uma verdade interior. Então, eu tenho mais cuidado em pertencer a alguma instituição religiosa. Mas eu gosto dos encontros e rituais, onde as pessoas se encontram e dançam juntas, e cantam juntas, e conversam. Filosofam juntas. E gosto dessa busca do silencio também – da contemplação, da meditação. Desse encontro com Deus dentro. Aplico bastante do taoísmo no dia a dia, na minha compreensão dos ciclos. Aprendi isso com os Krahô, também aprendi isso com os orientais (risos).
Referência de beleza, você tem passado pelo tempo se mantendo bela. Onde está a real beleza? Está no amar-se! E cuidar-se! E melhorar-se! (risos) É aí onde se encontra a beleza. Se olhar por dentro, ampliar os padrões de beleza também para você se gostar, não ficar se comparando. Acho que não existe ninguém que pode ser taxado de feio. A beleza pode se expressar por qualquer forma da pessoa. É uma ampliação. Tem uma filosofia que eu gosto muito, que é a Wabi Sabi, é oriental, que fala dessa beleza meio impermanente de você aceitar a impermanência, as rugas, a passagem do tempo, a ação do tempo sobre você, sobre todas as coisas. E não exigir aquela perfeição que não tem vida. Ver a beleza na vida, e a transformação que a vida traz também.
O que te inspira uma bela canção? Essa pergunta é dupla né? O que uma bela canção me inspira e o que me inspira fazer uma canção bela. Aí já é um adjetivo para canções que eu componho (risos). Mas a escuta, a capacidade de escuta, a sensibilidade, e a leveza também. Trazer mais leveza pra vida. No caso é uma cura também. A música atua totalmente transcendendo as dificuldades. E de novo a música sempre está inspirando melhores olhares para a humanidade, pro mundo. Melhora o olhar. Você escutar uma música bela. A capacidade de escuta da música, amplia a forma como a gente vê o mundo, vê o outro.
Como vai o coração? Em paz e amor!
Letícia, afinal, o que querem as mulheres? Liberdade!
Fotos Guilherme Lima
Edição de moda Ale Duprat
Beleza Lu Rech
Produção de moda Kadu Nunnes
Assist. de fotografia Letícia Lavatori
Letícia veste: Look 1: vestido Camila de Zorzi; Look 2 (capa): vestido Corporeum, loias Listh; Look 3: trench coat Buberry, joias Listh.