HORIZONTE: BUENOS AIRES – UM PORTO DE DIVERSIDADE E CONTRADIÇÕES

TEXTO ANDREA HUNKA

CO-PRODUÇÃO SOFIA HUNKA

FOTOS GABRIEL GAGGETTI

Matas fechadas, o tom que se condiz com as nuances de aquarelas verdejantes, grandes correntes de águas cristalinas, em dois feixes ligam até hoje, o litoral de espécies atlânticas gigantes a longa extensão de campanas com sua fauna rica e exuberante. Desde a época quinhentista, os Querandis, os Charruas, povos nativos e bravios, exímios caçadores e coletores são as mais remotas denominações existente dessas bandas, povos de espírito libertário cercados por pampas, uma riqueza inestimável, nas que nunca estiveram a salvo, pois, seja pelos rios, ou pelos mares, as esquadras castelhanas, impulsionadas pelas corridas de expansão das coroas ibero-europeias e da santa Madre Igreja avançavam, e com seus ritos religiosos e doutrinários empobreceram em parte a cultura terrena. Sobre o pretexto da invocação da Senõra Santa Maria Del Bueno Ayre, santa protetora dos navegantes espanhóis, em San Telmo se assentaram, depois de longos massacres a essas terras de Plata nobreza.

Não obstante, é salutar dizer que mesmo com essa história de devastadora concepção, seu povo legítimo ainda finca território, ainda de alguma forma meio que miscigenados e espalhados, emanam sua densa identidade, sua cultura errante que nos fazem lembrar de serem um povo errante que se originaram de caçadores de jacarés, emas e veados que, livres, andantes, com seus culto de respeito à natureza e aos seus anciões. Isso, além de serem hábeis com o manejo do gado e de cavalos trazidos pelos colonizadores, se impulsionaram como o povo de espírito Argentum, os das mãos de prata, o povo que marcha a suas lutas sociais, intrépidos plantando sua história nos recantos da cidade da Trindade.

Porém esse povo também tem em sua essência a vigorosa flâmula flamenga, sua fala hispana americano (espanhol rioplatense) que foi desenvolvida por adaptações e regionalismos, além de traços linguísticos dos imigrantes italianos, outro grupo importante por esses lados. Entre mais um exemplo de sua mista condensação, o tango, dança dos hermanos, seu maior âmago, dança essa derivada da fusão de outros ritmos como a polca europeia, a milonga espanhola, o candombe uruguaio e a havaneira cubana, o quem mostra toda essa pluralidade que, em Buenos se encontra. Tenho, que ainda assim afirmar, os seus traços étnicos estão à vista, a mistura plena da diversidade imputada e permitida, além da legitimidade afirmada pela população afeita a diálogos, prosas e muitos trocas literárias regadas a um bom e honesto café, uma população que a primeira vista é dura, reta, transparente, sem meias palavras, mas calorosa em suas amizades, ternas em seus tratos amorosos, nada mais hispânico que esse contexto.

Entre outros aspectos, não podemos esquecer dos detalhes identitários dos portenhos, seus costumes e tradições, como o mate, tomado com regras e protocolos, tipo ‘não sagure a bombilla para beber, mas de praxe, cuspa o primeiro gole, se estiver amargo demais’! E no verão, se tomar gelado, não fale mate, e sim, tererê. Outros usos, tomar chá da marca Cachamai, o velho hábito de colocar queijo em tudo, comer picada Argentina, uma mistura de queijos e embutidos, e por fim, lambuzar-se com o doce de leite e o alfajor Havanna. Sim, todos esses itens fazem dessa região um recinto de afetivos prazeres. Porém, não poderia deixar de mencionar algo que é extremante arraigado na cultura portenha, os quadrinhos – HQ, que vão além da icônica Mafalda de Quino, a menina que se preocupava com a situação da humanidade e a paz mundial já pelas décadas de 60 a 70, em plena ditadura. Os HQs nessa região são de uma diversidades infinita, entre formatos, estilos, contextos. Mas, vale ressalvar, têm algumas características pertinentes, são em sua maioria bem norteados com os contextos políticos locais e do mundo. Além dos textos e enredos, na maioria dos casos serem longos, mas pode ter certeza, são lógicos, tem para todas as idades e gostos. Os quadrinhos são uma paixão nacional.

Buenos Aires, cidade autônoma, é um misto de todas essas histórias e tantas outras que estão salvaguardadas nos recantos e labirintos que a entrecortam. Sede do governo, pleito de comércio incessantes, porto que escoa divisas, região de duas datas de fundação, a cidade de melhor qualidade de vida na América do Sul, cidade cultural, portuária, mas que, dentre sua biografia tem uma história de um passado que se une com o presente, piratas. Assim, restrições comerciais, revoluções, governos inconstantes, ditaduras, crescimento acelerado e desordenado, moeda desvalorizada, analfabetismo, migrações, e ainda o surgimentos dos bolsões de pobreza, como a villa miseria – a Villa Desocupación, a mais emblemática.

Essa mescla dual, onde anos de exploração, escoamentos de riquezas, mitigação cultural em grande feito, não trouxe a esse centro o apagamento, nem muito menos a falta de vigor, pois, de muitas de suas caminhadas, entre lutas de classe, o peronismo, o populismo e sua idolatria a Eva Perón, com sua história de ascensão – que vai da cama de muitos aos salões nobres, seu amor por Perón e a sua santificação, a jornada de seu povo que jorrou seu sangue por lutas políticas e sociais, o desaparecimento de muitos pela sede de poder de poucos, os trabalhadores e suas insatisfações, fincaram, ante tudo isso, caracteres de seus ancestrais, como os do habitantes de Cabildo que não quiseram se verter aos espanhóis. Os das mães da praça de Maio, marchando silenciosas à menção de seus filhos torturados e sumidos na ditadura. Sim, a Plaza de Maio – o cerne dos gritos e lágrimas de seu povo, o espelho que reflete a luz das suas presenças, de suas personas, o lugar de seus ideais, os dos portenhos.

Nessa cidade de ares e arquitetura afrancesados, a sua maior inspiração, é de fato a alma de Eva Perón que permeia todos os lados a que se for, seja por sua luta ou pelos trabalhos desenvolvidos por sua fundação. A Buenos Aires de Eva tem suas tonalidades inspiradas nas linhas tênues das lutas sociais. Porém, trajada a rigor de um Dior, na alegria de seu povo dançante, de suas praças limpas, seguras e bem planejadas, no belo palácio Barolo com sua arquitetura esotérica americana, de seus milhares de teatros, cafeterias, múltiplas livrarias, diálogos infinitos na frente do edifício do Banco Nación. Sim, esse mesmo povo do partido feminista, do que vai às ruas, no cacerolazo, panelaço à Argentina, do povo passional que dança ao som do tango, na dramaticidade que mira suas tormentas, na paixão avassaladora de suas razões concretas, que ao litoral se balança ao vento sobrado pelo acordeon e viola numa chamamé litorânea, és o povo de Evita.

Assim é Buenos Aires que atravessa anos, séculos de razões controvérsias, mas em cada rua, cada esquina transborda beleza, enfrenta dificuldades econômicas, desajustes, hiperinflação, dolarização, mas se suplanta. Sobreviveu e sobrevive a colonizadores, governos plurais, ditadores com suas histórias e instalações que estão firmes e resilientes, que emanam tradições. Buenos Aires de devoções cristãs, que tem na Casa Rosada, a sede do poder, no Ricoleta (cemitério) o repouso de seus maiores ícnes, o Teatro Colón, palco de grandes, o Obelisco, seu eixo, o Caminto em La Boca, suas corres e costumes à vista, ou em seu solo sacro dos Querandis que lutam, ainda, por essa legitimação.

A cidade de La Madre que tem San Telmo, bairro das galerias de arte pop-up, grafites e bares noturnos, da juventude nas ruas com sua boemia, de seu mercado de Pulgas recheados de artistas e turistas. Com suas trilhas do parque Lezama, ostentando seus jacarandás gigantes, a vista do museu Nacional com ares italianos e as feiras repletas de sabores e de tango que embalam as noites e as artesanias locais, em um tom nostálgico.

Porém, existe uma Buenos Aires do Porto Madero com seus retrofits, cassinos, da puente de La Mujer, da Fragata Presidente Sarmiento, barco construído em 1897, que fez 37 viagens ao mundo que é considerada Monumento Histórico Nacional. A da reserva ecológica e do polo gastronômico elegante e diverso – a Buenos Aires cosmopolita que convive com a histórica e elementar, a cidade que se degusta bifes de Ancho, empanadas, choriço, puchero, recheado de carne e vegetais, locro, refogado preparado à base de mandioca que pode incluir carne de vaca e vísceras, parillada, medialuna, milanesa e doces.

A cidade de Nossa Senhora dos Bons Ventos, que é o recinto dos Juans, Migueis, Paolas, Magdalenas, Guadalupes, Agustíns, dos homens e mulheres famosos e anônimos, dos que lá se chegam, com o frescor das suas ruas largas, dos ventos que os portenhos apreciam os dias cálidos e se refrescam as fontes, que depois passeiam sobre à sombra de seus arranha-céus seculares e que, nos invernos secos e de temperaturas extremas, se deixa, ainda mais, parecer com ares da pequena Paris em solos americanos, com seu bairro Calle Ahollo. Com o refinamento da arte clássica a não convencional, a cidade das ferrovias, da cumbia com seus movimentos sensuais e galantes, ritmadas pela africanidade de sua origem, a contrastante e eloquente, CABA (Ciudad Autónoma de Buenos Aires).

A Buenos portuária, revolucionária, dos torcedores fervorosos e ardorosos da La Albiceleste, do amor à sua pátria, seu solo, sua diversidade, sua pujante força de renascer e se redescobrir a cada luta enfrentada, a cada novo assombro, ou dificuldade à vista, mas que em Aires vindos do Atlântico se reveste com tons de paixão, do fogo ardente de suas obstinações e a volúpia pertinente em seu povo – o povo dos Buenos Aires.