Antes de janeiro, minha única experiência com artes marciais tinha sido boxe na adolescência. Uma tentativa, na época, de tentar a sorte em algum esporte que não envolvesse uma bola e me ajudasse a perder alguns quilos. Já a minha esposa, Anaisa, tinha alguns anos de balé e um curso básico de Yôga. Foi assim que chegamos a um retiro de Kung Fu de um mês nas montanhas do Norte da Tailândia. Nossa intenção era fazer um detox, colocar nossos corpos para trabalhar e deixar nossas mentes descansar.
Chegamos a cidade de Pai em um teco-teco de 10 passageiros vindos de Chiang Mai. Apesar do Kung Fu Shaolin ter suas origens nos templos da China, mestre Iain Armstrong escolheu Pai para montar uma filial do clube do Kung Fu Nam Yang, que tem sede em Cingapura. Pai fica no final da cadeia dos Himalaias e por isso recebe o ar puro vindo das montanhas, que é a base da energia do Kung Fu. A proposta do retiro é receber alunos de todos os níveis que queiram passar por um treinamento intensivo de Kung Fu e conhecer a filosofia de vida que sustenta tal arte marcial. Diferente de outras artes marciais que tem suas regras adaptadas ao esporte, o Kung Fu no formato tradicional é usado somente como último recurso.
Logo pela manhã nosso dia começava com o Chi Kung, uma técnica chinesa milenar para recarregar o corpo com a energia universal conhecida como Chi. Misto de alongamento com meditação, o Chi Kung era feito diariamente ao nascer do sol, com uma vista espetacular das montanhas. Na sequência, treinávamos as rotinas do Shuang Yang, semelhante ao Tai Chi Chuan, que tem o objetivo de ajudar os alunos a incorporar os movimentos básicos do Kung Fu de forma relaxada e em flow. No intervalo da manhã tomávamos chá com o mestre e entrávamos a fundo na filosofia do Kung Fu. À tarde o treino ia se intensificando para técnicas de combate com armas e treinos físicos acompanhados de muito alongamento. Nas refeições, comíamos uma dieta balanceada de alimentos orgânicos com ervas medicinais chinesas.
Como um bom amador, cheguei ansioso para aprender a chutar, já que achava que nos chutes e socos eu já conseguia me virar com a minha base do boxe. Logo descobri que antes de chegar nos chutes eu teria que reaprender a andar, respirar e, principalmente, relaxar. Os anos de musculação e tensão no trabalho tinham me deixado com os ombros duros, e no Kung Fu a flexibilidade e relaxamento total da musculatura são essenciais para se defender e atacar com rapidez e força. A primeira e grande lição que tivemos sobre Kung Fu é que sem relaxar não conseguimos lutar. No ocidente temos a crença de que estarmos sempre super ocupados faz parte da rotina de trabalho e o estresse pode ser aliviado em nossos horários livres. Na realidade, assim como no Kung Fu, o estresse bloqueia nossa capacidade de atacar nossos problemas com rapidez e criatividade. Acho que ouvi a palavra “relax” centenas de vezes dos instrutores sempre que eu me atrapalhava em alguma rotina.
Outro desafio foi entrar no flow do Kung Fu. Diferente da minha experiência com boxe e da forma como apreendemos no ocidente, não existe uma receita precisa a ser seguida de como se defender ou atacar no Kung Fu. O lutador eficiente entra na luta com a mente aberta e consegue responder aos golpes usando a força do oponente contra ele próprio. No Kung Fu, a força dos músculos não é importante e pode atrapalhar a flexibilidade de ligamentos e tendões usados de forma rápida e precisa para iniciar sequências de golpes que dependem exclusivamente de como se movimenta o adversário. O lutador que planeja sua sequência de golpes não consegue se defender com rapidez e eficiência. Toda a filosofia do Kung Fu deriva dos princípios do Tao de que não conseguimos controlar o ambiente e temos que nos adaptar à ordem natural das coisas, reagindo aos desafios que encontramos no caminho. O objetivo é entender o flow e usá-lo a nosso favor.
Após a primeira semana de dores musculares, fomos nos adaptando ao treino e evoluindo com uma rapidez impressionante. Ajuda muito a filosofia do Kung Fu de não competição entre membros do clube. A ideia é que cada aluno se concentre em ser melhor hoje do que era ontem, canalizando a competição para um processo de evolução própria, respeitando o tempo de cada um. No Kung Fu não há faixa preta e objetivo final a ser alcançado. O que se espera do aluno é que ele comece e não desista. A evolução virá ao longo de toda a vida. Desde de criança aprendemos a competir com os outros e o resultado muitas vezes é frustrante. Queremos ser melhores que nossos colegas e um dia tão bons quanto o mestre. No Kung Fu aprendemos a desenvolver nosso próprio estilo, melhorando a cada dia.
Partimos de Pai após um mês de Kung Fu com alguns quilos a menos e nos sentindo renovados pelos treinos e lições de vida. Decidimos tornar o Kung Fu parte da nossa rotina e incorporar o que aprendemos além da arte marcial. Mesmo com tantos países na lista de destinos a visitar, o plano é voltar para a Tailândia no ano que vem, quem sabe da próxima vez mais relaxado.