HORIZONTE: ACAUÃS – MELODIAS E PERCALÇOS DO SERTÃO

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Por Andrea Hunka / Produção e fotografia Sofia Hunka / Fotografia Bruno Jungmann

O asfalto queimado cumpre sua saga de consertos incertos e buracos sem fim. O  cheiro de piche alude um novo caminho, com ranhuras entrecortam a danificada estrada, a rodagem sucede os anos levando e trazendo destinos. À frente os filetes dos caminhões, pintados com esmero por artistas hoje já escassos, feitos com ajuda de uma máquina chamada de Beugler. Estilos tão diversos, são eles ibitinga, monte alto, a arte popular herdada…Identidades e estilos dos caminhoneiros, mandam mensagens de fé e mantras de esperança tão comuns por essas bandas. A corda solta na carroceria nos mostra que a dureza pode ser encarada com um certo tom de leveza, as Toyotas pensas passam a nossa vista cheias de mantimentos, suprimentos e gente que vagam dentro delas a sonhar em seus pensamentos. As árvores ressequidas, as casas à beira da rodagem com suas portas e janelas derrubadas, assombradas pelas vidas desvalidas que um dia habitaram ali. O  tempo paira e passa em outra toada.

A incerteza, os obstáculos das paragens, as ribeiras que crescem desordenadas, ante à velocidade do “progresso”, os tons verdes acinzentados. O som do sofrê, pássaro majestoso, encanta nossa audição, preto e laranja voa a buscar um refúgio. O asa branca, espécie dessas beiras, cruzam com sua plumagem branca e em seus gruídos avisam sobre as coisas do sertão em mais um tom triste e de lamúria. Os faróis se cruzam na estrada e em sinais dão condições a passagem, sigamos.

Uma saudade invade a alma – é o destino nos levando nesse momento e como um aboio nos chamando no compasso das cabaças ao vento. Era só o início de mais um percurso, onde o sol tenta atravessar a névoa que insiste em permanecer absoluta na terra, enquanto os olhos buscam melhor visualizar ao longe, a imensidão. À espreita da visão, avistamos cabras soltas como dionísios, brincando entre o pasto seco e o asfalto que sem medo, desafiam a vida e mantém-se vivas.

DAS CAVALGADAS E VAQUEJADAS

Não sabemos bem ao certo, mas se temos alguma certeza nesse instante, é que o sertão é um estado de alma, um sentimento, uma sensação que só se sente quando o adentramos e, nesse cavalgar de permissões, vamos deixando os primeiros raios solares aquecidos e inebriantes invadirem nossos pensamentos. Na  marcha lenta dos quarto de milhas, raça equina dócil, ágil e inteligente que nos levam numa procissão e em profusão caminhando em bandos pelas leivas. Uma  multidão de rostos segue sua missão, gente sertaneja de todas as partes, que em cima dos animais são identidades travadas nas tradições mais profundas desses lados, das cavalgadas e das vaquejadas. Ali, ao nosso olhar, vemos seus semblantes guarnecidos de histórias e lendas de um passado vivido.

Nessa pisada, avistamos tantos com suas testas calejadas em comunhão mítica. São famílias, amigos, pai levando filhos, famosos, conhecidos, abastados, desvalidos que vão na fé em sua religião, em seu torrão. Carregam suas bandeiras agradecidos por suas vidas e dos seus – são vaqueiros que vivem da pega de boi nessas veredas, com suas peles marcadas. Vestem-se de proteção com suas armaduras de couro, seus gibões e utensílios majestosos trançados e bordados em desenhos forjados nas batidas do martelos, nos rabiscos feitos por mãos hábeis na ponta de um lápis produzido na madeira de cedro, na faquinha e esmeril, polidos e criados nas memórias afetivas e em cima da máquina “Singer” por seres raros. Alguns, até míticos, como os parentes do mestre José Aprígio, grande amigo de Luiz Gonzaga. Tudo isso são marcas de uma cultura, uma tradição herdada de longe, lá do islã ibérico.

A FÉ E O VAQUEIRO

O cume desse primeiro destino é a missa, onde num pátio, outrora sítio Lages, uma solene manada se aglomera, ante seus parceiros e distintos vaqueiros de mãos ao alto, olhos velados lamentam e choram, junto às suas famílias, a morte do vaqueiro de outrora, Raimundo Jacó, em 1954 – homem valente e destemido. Adornados pela lembrança da emboscada, da morte covarde nas bandas dessas terras, os sertanejos lembram-se de sua própria vida e em prece e oração conduzem, nesse momento, uma comunhão de sentimentos. Ali, num ato único travam seus recados sobre sua lida, sua opulenta tradição e, num ato simbólico, ofertam suas melhores memórias, dividindo, em um ritual ancestral, a partilha de comer a rapadura e o queijo cortados no chão sobre o gibão.

Tudo nesse ato memoriza suas sinas, na solta e pega do boi na vereda, no aboio sofrido e cadenciado, na voz que os fazem lembrar-se de padre João Câncio, que levantou junto a Luiz Gonzaga um modo de sufragar a alma do finado há mais de cinquenta anos, através na Missa do Vaqueiro. Esse ato, é mais que uma profusão de fé religiosa, é um pedido de justiça pelo não esquecimento dessa parte de nossa região do Brasil, de seu povo e seus costumes.

Por esses lados de cá, tudo soa – é musical. O tilintar dos acordes começam já no alvorecer. As toadas dessas ribeiras, são de fato chamados. O ranger das carroças, o mugir dos bois dão sinal que já se encaminham para o campo a se alimentar do pasto fechado. O som do acauã pronunciando a seca. O agudo e sibilante zunido das cabras dragando tudo pela frente, os cavalos em trotes no cumprimento das capturas e os galos de campina a cantar demarcando seu território, é o sinal do cortejo a seguir. Lá na frente, as veraneios com seus alto falantes passam devagar anunciando a nova propaganda e promoção atraente. A voz do locutor alude, nos intervalos, recados apaixonados de seus fregueses e num piscar, mais adiante, na saída do posto de combustível, os caminhões flamulam os barulhos dos motores cansados. O diesel ali colocado produz o rastro de fumaça e o picado de seus eixos sem lubrificação vão dando o adeus de mais um homem que deixou um coração partido, indo embora sorrateiro depois de uma noite de amor. Ao longe se escuta vozes, como ladainhas ritmadas – são versos fonéticos. A produção, a articulação e a variação desse timbre daqui que nos permite invadir os aspectos acústicos e fisiológicos afetivos e, assim, entendemos porque nessa região do sertão há uma quantidade de músicos e tocadores diferenciada – são Januários, Gonzagas, Dedés Monteiro, Pedros Tenório de Lima, Leonardos Bastião, com suas dicotomias poéticas. São músicos, poetas, analfabetos e letrados, são afinadores de instrumentos moldados desde seus nascimentos. De fato, são lapidados e guarnecidos pela possibilidade de se ouvir tanto quanto zunidos, toadas, barulhos, rumores, tinidos e ruídos que, na construção dessas melodias, já nascem inspirados.

NO RITMO CERTO

Aqui, nessas cercanias, a condição para se viver é seguir a marcha, a cadência de um ritmo onde o dia começa cedinho. Levantar da cama e tirar o quebrando do corpo que, no nosso caso, é se contorcer para que cada osso estale e, depois, com tudo no lugar, despejar uma água no rosto, fazer bochecho higiênico, e partir para um café coado bem quentinho, com um pão francês amassado, ovos mexidos, uma profusão de carnes cozidas com um grosso molho, tapioca e cuscuz – tem ainda um gole de suco de maracujá-açú, fruto danado de bom, coisas destas terras. Assim, os sabores daqui vão nos recepcionando, e isso é apenas o começo do dia que já vai convidando a uma prosa com o Sr. José Prachete dos Santos, na frente de sua casa, sentado e na posse de seus noventa e dois anos. Ele nos saúda garboso, acompanhado de amigos e parentes que passam a manhã a contar, cheio de emoção, lembranças e as aventuras de terem conhecido o Rei do Baião. Seu Prachete foi amigo, um “chegado” e vaqueiro, dito por ele mesmo, de seu Luiz, o Velho Lua para os íntimos, o tão somente Luiz Gonzaga. A conversa fica boa. São  tantas recordações que ele se anima, cantarola, e vemos seus olhos  marearem –  era,, tão somente, sua mente trazendo o sentimento mais profundo da saudade do amigo e o reconhecimento do amor ali existente. Lindo de ver.

Nos despedimos cheias de emoção, saudamos todos e nossa vista tiniu na direção de um corcel 1 GT azul, 1970, numa dessas oficinas mecânicas, símbolo do serviço feito quase todo a mão. Ali, vislumbrarmos tantas quinquilharias, pôsters antigos de anúncios e graxas que a parede trazia em um charme à parte. Mas, o nosso foco era o corcel e aquele senhor sentado na cadeira de balanço. Muito  simpático, e que nos chama para entrar e bater dois dedos de prosa. Aí, foi a cereja do bolo. Seu  Antônio Adriano, o distinto senhor, nos conta da vida e de suas andanças, das muitas viagens e fatos sobre seus anos com Luiz, porque, aqui nessas terras, sempre alguém é parente, conheceu, trabalhou com mestre “Lua”, e seu Antônio foi motorista, chofer do mesmo e, sendo assim, sentamos. Mas, ao ouvi-lo, sua primeira menção, foi de seu potente carro. Ele, todo reluzente, conta que visitou o Rio de Janeiro e que aquele carro incrível na oficina, era de seu pai, mas que estava assim porque foi ele premiado com o Lata Velha, programa global de Luciano Huck. Então, tínhamos ali mais histórias, e ficamos – pois evidente que queríamos ouvir essas aventuras . E, de fato, escutamos. Rimos das artimanhas da vida juntos, aplaudimos todos os feitos desse único cidadão. Ele, emocionado, falou do amor e carinho por Sr. Luiz e Luciano, e das viagens no corcel às terras de Maria Bonita, a do Gangaço, para Santa Brigida, Bahia. Era uma manhã ensolarada e o céu estava estonteante, mas tínhamos que continuar nosso rumo. Então, o adeus foi fatídico e, assim, cumprimos as despedidas.

Entre recepções e despedidas, como cutias, roedores dessas bandas estávamos querendo cumprir caminho e espalhar nossas pegadas que já se alastravam nessa região. E, aí, vai um aviso, para quem ver o fim das coisas – é necessário saber pelo menos, o início que se é possível de se ter delas. Então, no conto de tantas histórias e causos, fomos em mais um dia pegar esses rumos e fazer pó na estrada, em busca do princípio da história dessas bandas. Seguimos  uma trilha de barro e seixos, ladeadas por cercados, que aqui é coisa séria e artística. Arte muito antiga e cheia de profundidade, as cercas nesses lados se distinguem pelo material (paus, pedras, espinhos, ramos, garranchos, tocos). Há cercas vivas de aveloz, macambira, gravatá-açú, alastrado, palmatória brava (quipá). Cercas mistas (de arame farpado e aveloz e paus grossos coroados com ramos e garranchos). Cercas com proteção e amuletos. Cercas de estacas e pedras, de pedras e tocos. Na maneira deles de construção, estas podem ser de pau-a-pique, faxina, espera, trançado, dormente-em-pé, tesoura, forquilha, coivara, declinada, cama-no-chão, meia-cama, meia-faxina, caiçara, encosto, travessão, meia-cerca, ramada, pedra dobrada, rodapé, arame com rodapé, suspensa, deitada, camada, de lance, esbirro e de valado. Como disse, é coisa muito única. Até é usada em ditados populares para ensinar os desavisados, como este aqui “Cego é quem não enxerga por uma cerca de varas”.

E nessa cercanias de pau e avisos, a fazenda Caiçara é uma lição que nos alcançou – terras e casas da infância de dois vultos, Bárbara de Alencar, presa política do Brasil, e considerada uma heroína da Revolução Pernambucana e da Confederação do Equador e de Luiz Gonzaga, rei do baião que por essas terras fincaram raízes, traçaram histórias, lutaram por seu povo. Por conta de suas ideologias e consciências, amaram sua cultura, deixaram legados, fizeram tradições, emanaram em suas ações lembranças e heranças afetivas. Nesse torrão, até os que não cantaram como ofício, eram musicais em suas vidas, soavam as vibrações mais inatingíveis. Suas falas alçaram e levantaram voos tão altos que atingiram até aonde a vista não alcança. Aqui, esse povo sertanejo dissemina um profundo marco, o de ser tão sonoro. São mestres, compositores, cantores, instrumentistas, afinadores. São gentes anônimas, famosas, são gente brasileira, das profundas ribeiras que nunca deixam de o receber com um café quentinho, um sorriso no rosto e as marcas eminentes da esperança rica dessas terras de cá, pois o sertão é, tantas coisas. O sertão é uma infinidade de possibilidades que, ao alvorecer ao som do sabiá, principia e o convida a lutar. Segue a sina.