Dessa troca de vida, entre as raízes da flora de algumas espécies – carvalhos, aveleiras, faias, eucaliptos e castanheiras – a terra, o sol e a chuva, os fungos, resultam nessa possibilidade de escambo e permissões de nutrientes. A Trufa, essa pelota de camadas de tecidos com esporos e capa protetora, segue ao longo dos anos se formulando. E algumas espécies se impregnam de perfumes e essências atrativos à humanidade e ao reino animal. Das terras úmidas, dos solos aerados, cobertos por folhosos das matas encorpadas de extremos mundiais, esse fungo entranha-se há mais de 80 milhões de anos na terra, na busca de proteção e sobrevivência, oferecendo, através dessa luta, um sabor único a quem o degusta.
Desde os primórdios da humanidade, faraós, beduínos, reis, monarcas, camponeses e alguns animais, têm a trufa como fonte essencial de sua existência, como os ratos do mato da Califórnia, os potorous, marsupiais de patas longas da Austrália, e vários outros, como os famosos porcos e cães trufeiros. E nessa mítica e composição, o homem, a flora e o reino animal se condensam, numa troca imprescindível para esse diamante culinário. E isso é tão marcante que até o processo de encontrá-lo permeia bouquet e sensibilidade olfativa. Em algumas regiões da França, a procura pelas trufas é ainda feita pela observação de uma espécie de mosca – a mosca trufeira (suillia fuscicornis ou gigantea) -, que no período da maturação costuma pousar sobre os locais de ocorrência, indicando aos camponeses onde escavar.
Essa iguaria tem como o seu mais primoroso encanto a forma de encontrá-la e permitir aos que a buscam uma vivência única, cheia de histórias e lendas, e desse ato, torna-se um joia preciosa, tanto em questões gustativas, quanto em valores mercadológicos, que, de acordo com a variedade e o sabor, podem atingir milhares de dólares por quilo nos leilões especializados. As trufas são tradicionais na culinária francesa, italiana, eslovena, croata e fazem parte do imaginário gustativo do mundo inteiro.
É nessa viagem que chegamos ao vilarejo de Motovun, na região da Ístria, na Croácia. Lugar reconhecido pela sua riqueza dessa iguaria, onde foi encontrada e registrada pelo Guinness Records a maior trufa Alba (branca), em termos de peso (mais de um quilo). Ao lado do vilarejo, com suas lindas construções medievais, encontra-se a floresta e avista-se o belo Rio Mirna. A cada recanto, um retorno singular ao mundo só encontrado nos contos, nos anseios pueris de nossa adolescência e nos romances povoados por príncipes, castelos e cavaleiros.
É na ânsia de nossa andarilha que deixo que suas palavras tomem a sensação dessa vivência, desse HORIZONTE, onde mesmo não o tendo vivido, posso sentir cada gota de orvalho em minha pele, uma sensação visceral e latente de uma possibilidade única: viver uma caça como há milênios…
À CAÇA DAS TRUFAS BRANCAS NA CROÁCIA
Mal o sol desponta no horizonte, colorindo o céu de outono de delicados tons rosados, Vlado e Sandra, pai e filha embrenham-se na floresta de Motovun com seus cães labradores à procura das trufas brancas selvagens. Se para forasteiros a floresta é um verdadeiro labirinto, Vlado conhece os seus caminhos como a palma da sua mão. Há mais de quarenta anos na região, é o proprietário da fazenda Marušić, que se espraia pelas encostas de uma colina não muito distante. Para a coleta das trufas selvagens, instalou uma casa rústica e um canil na borda da floresta. A família – Vlado, sua esposa e a filha Sandra – vive da coleta de trufas brancas, da colheita de azeitonas e da produção de uma linha artesanal de azeites, cuja estrela é o azeite trufado, com um perfume inebriante. Tudo é comercializado em uma lojinha na cidade de Grosnjan.
Vlado gosta de fazer-se acompanhar na floresta por Cesar, um labrador creme de 7 anos, muito experiente, que assume a liderança da matilha. Depois de treinados por Vlado, são os próprios cães que auxiliam no adestramento dos mais jovens. Sandra, nesse dia, leva as fêmeas Alpha, de 6 anos, e Maili, de 4. Maili é a mais inquieta e resistente, capaz de caminhar na floresta por mais de quatro horas a fio. Com as chuvas de outono, o solo é escorregadio e encharcado, além de muito acidentado. A caminhada é extenuante, e o resultado do trabalho, incerto. Em alguns dias, mesmo após uma longa procura, nenhuma trufa é encontrada. A coleta depende de experiência, conhecimento, cães bem adestrados e uma boa dose de sorte. Ao farejarem a trufa, os cães logo começam a escavar e é quando devem ser contidos. Se a abocanharem ou danificarem, o valor da iguaria despenca no mercado, razão pela qual os porcos há mais de quinze anos deixaram de ser utilizados nessa atividade. Vorazes e menos disciplinados do que os cães, não podem ser facilmente controlados.
Ao longo de duas horas de caminhada, apenas duas pequenas trufas são encontradas. O leito encharcado do rio que corta a floresta já foi mais pródigo. Nos últimos anos, a trufa branca ali faz-se mais rara, talvez porque a floresta venha sendo pisoteada de forma desordenada por coletores novatos e inexperientes, atraídos pelos preços altíssimos que o produto alcança nos leilões gastronômicos, e pelos turistas, que começam a descobrir essa parte da Croácia. Sob uma chuva fininha, Vlado e Sandra regressam à casa para preparar pratos simples e saborosos à base de trufas brancas para visitantes eventuais. A trufa branca nunca deve ser cozida. Na fazenda, é ralada crua em lascas generosas sobre as pastas preparadas pela própria dona da casa ou bruschettas de pão campesino. Longe dos restaurantes de alta gastronomia, onde a trufa branca é degustada em pratos sofisticados, as fazendas de Motovun ainda conservam um estilo de vida despojado, em que o homem vive em estreita simbiose com os cães trufeiros e em comunhão profunda com a floresta, fonte de vida e de sustento.
Diante dessa interação, dessa caminhada entre mais encontros que cansaço, o tempo paira e o ensinamento que nos traz é de que os costumes passados ainda valem como verdade plena, seja na Croácia (Motovun), na França (Provence), ou na Itália (Piemonte, Toscana – San Miniato, Marzuolo), com suas variedades de trufas que vão das brancas/marfins às rosadas e negras. Ali se contemplam vida, tradição, estrutura familiar, simplicidade no manejo, muitas cifras espantosas para os atravessadores, mas, mais que isso, um grande aprendizado: o respeito pelo ciclo da vida e a necessidade humana de interagir com outros viventes, tendo cada um seu dever e direito, nessa missão de trazer à luz esse organismo vivo e apreciadíssimo por todos. Apesar de hoje a trufa já ser cultivada no novo e velho mundos e que grande parte de sua comercialização venha dessa condição, não há modo mais delicado, generoso e afetivo do que a coleta tradicional, onde o homem se lança ao ato mais primário e nobre, o de buscar, com suas próprias mãos, o sustento, onde ele abdica da tecnologia e se move, como seus antepassados, pelo simples instinto da caça, ele e o animal e seus impulsos mais primários, seus sentimentos e sensações mais familiares, processo passado anos a fio de geração a geração. Essa é a forma mais sublime, mais genial, de encontrar as melhores gemas/trufas. Salve as tradições e seus encantamentos!
OBS: Katia Gilaberte colaborou com a narrativa de suas aventuras na floresta de Motovun, Croácia.