AVENTURA: CRUZANDO UMA POÇA CHAMADA ATLÂNTICO COM MAX

Por Max Fercondini

Cruzar um oceano em um veleiro pode parecer um objetivo sem sentido para quem apenas deseja chegar ao outro lado. Velejar, normalmente, é lento. Muitas vezes, desconfortável, e pode parecer glamoroso – mas, definitivamente, não o é. Quando se está lá, no meio do nada e ao mesmo tempo tão preenchido por tudo, sentindo na pele o poder da natureza, o homem se dá conta de que a definição de sentido é algo que não importa para mais ninguém, além de si mesmo. Foi, com esse espírito de liberdade, que eu realizei a minha primeira travessia do Atlântico. E o relato dessa experiência eu compartilho no texto que se segue.

Acenávamos para as pessoas que estavam no píer norte da marina de Las Palmas enquanto a Atena se deslocava lentamente. Não havia rosto familiar ali, ninguém em especial que pudesse estar nos acenando. Entretanto,  retribuímos o carinho com os braços balançando no ar. Assim que saímos da marina, desligamos o motor e abrimos as velas para aproveitar os ventos de popa que sopravam do Norte. O Atlântico também se abria para nós e as rajadas superavam o que a previsão sugeria para o dia. Contudo, o início da navegação foi bastante confortável. Muitos barcos à nossa volta e outros mais no horizonte, pareciam disputar um espaço à frente, como se cada um desses segundos a mais fosse garantir uma posição melhor no rally, cuja linha de chegada estava no Caribe. O que esperar de um momento tão emotivo como esse? Avançávamos a cada milha, mas nossos olhos ainda estavam voltados para a ilha que aos poucos deixávamos para trás. Inevitável não perceber o abismo colossal que teríamos de encarar nos próximos dias. Mas, abismo mesmo, seria não partir.

Seguimos navegando pela costa leste da Grã-Canária. Essa pequena ilha no Atlântico era a última porção de terra que veríamos pelas próximas três semanas. Quando anoiteceu, a lua resplandecia na água como prata, com ventos leves e ar quente. Assumi o leme, pela primeira vez, na troca de turno com Beto. Me concentrei em navegar no rumo 180 graus em busca dos Trade Winds, ou Alísios, que historicamente foram usados pelos navegadores e comerciantes do passado para viajar para as terras do Oeste.

Nas primeiras horas de navegação, escrevi no meu diário:

Precisei ajustar as velas para bombordo, pois o vento mudou a direção e baixou uns 4-5 nós. Terminei minha jornada somente às quatro e meia da madrugada e fui descansar. Pretendo dormir por seis horas com a expectativa de que Sofia possa ajudar Beto durante a manhã.

Após quinze horas de navegação, não víamos mais a ilha de Grã-Canária. Sofia estava enjoada desde que perdemos a referência do horizonte, quando o sol se pôs. Ela tinha menos experiência que nós e, antes da travessia, só havia navegado em águas mais tranquilas nos lagos da Holanda. E, na manhã seguinte, Beto também passou mal após ajustar uma adriça (cabo que sobe as velas) no topo do mastro. Fazia frio e o mar estava cinzento devido ao céu nublado que contrastava com o primeiro dia de navegação.

O fato de Sofia enjoar com o balanço do barco se mostrou uma dificuldade maior para a tripulação. Os turnos de navegação tiveram que ser adaptados à sua disposição física. Combinamos então que ela faria somente as jornadas diurnas. Beto e eu passamos a nos dedicar às intermináveis noites solitárias no cockpit. Durante a vigília, o silêncio a bordo era total. Quem discursava era o mar. As ondas pareciam vocalizar repertórios humanos, tal qual o bufar de insatisfação de um senhor. Parecia que estávamos sendo testados pelo mar, logo no início da travessia.

Como Beto não era adepto às panelas e Sofia passava a maior parte do tempo se esforçando para não enjoar, fui eleito o cozinheiro “chefe” da travessia. Para mim, essa era uma boa distração ao longo do dia. Havíamos abastecido muito bem a Atena antes de partir e, por isso, tínhamos sempre algo saboroso e nutritivo para comer. Os produtos perecíveis eram consumidos antecipadamente para que não estragassem. As frutas e os vegetais mais sensíveis ao tempo foram priorizados nos primeiros dias no mar. Com nossa geladeira elétrica pequena, não pudemos estocar muita proteína animal e derivados de leite. Contudo, isso não foi um problema, uma vez que tínhamos todo o Atlântico para pescar.

Ao longo dos dias, percebemos que os peixes tinham um horário específico para se alimentar. Apesar de jogarmos a isca sempre ao nascer do sol, os pescados vinham por volta das onze horas da manhã.

Geralmente, após o jantar, deixávamos o barco todo às escuras. Apenas as luzes de navegação ficavam acesas para que pudéssemos ser vistos por outras embarcações no caminho. Para me guiar, eu escolhia uma estrela qualquer, a qual eu colocava em perspectiva com a ponta da retranca como referência. Cheguei a escrever no meu diário de bordo:

Eu não sabia que astro era aquele. Não tinha como eu saber, pois ele não fazia parte de nenhuma constelação que eu conhecesse. Me lembro de O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, que, quando voltou para a sua casa celeste, não indicou ao piloto qual seria o seu lar. Assim, todas as estrelas poderiam ser a sua morada. E, sempre que o aviador acidentado no deserto olhasse para qualquer uma delas, o principezinho poderia estar lá. Dessa maneira, o céu todo estaria sorrindo para ele.

Eu me pegava sorrindo à noite, contando as inúmeras estrelas cadentes que via no manto escuro sobre minha cabeça. Em uma das vigílias, pude observar dois meteoritos caindo simultaneamente e em paralelo. Em outro momento, vi uma estrella fugaz, como se diz em castelhano, deixar um enorme rastro em tom esverdeado e, depois de dois longos segundos, literalmente explodir no firmamento. O clarão desse fenômeno chegou a iluminar o meu rosto e as nuvens escuras no céu. Apesar de ter observado tantas estrelas cadentes, não desejei pedir nada, apenas agradeci. Me sentia completo por estar ali e pelo privilégio de fazer da minha vida uma grande aventura.

Todavia, apesar do encanto do céu noturno, as noites eram muito exaustivas. Logo no segundo dia de viagem, notamos que o piloto automático apresentava problemas. Isso fez com que tivéssemos de estar sempre a postos na roda de leme, em um esforço que eu classifiquei como “desumano”. Essa árdua tarefa era ainda pior em noites nubladas ou como no fatídico dia em que fomos acometidos por uma névoa de poeira do deserto do Saara suspensa no meio do mar. Navegávamos a 700 milhas náuticas da costa da África, ao norte de Cabo Verde, quando o céu se encheu desses pequenos grãos de areia e me fizeram perder a referência celestial. Descrevi no diário a sensação dessa forma:

Baseava-me pela bússola, mas como ela tinha um atraso na leitura, acabei por desviar o curso da rota. Conforme os ventos sopravam, faziam com que o barco orçasse cada vez mais. As rajadas eram de 29 nós e a média de vento era de 23 nós. Sequer havia outro veleiro próximo de nós no horizonte para servir de ponto fixo. Então olhei bem para o alto, onde pude ver o cinturão de Orion e outras estrelas também nítidas. Era quase impossível me basear em um ponto fixo tão a pino. A cada nova onda que me pegava pela popa, eu perdia novamente o rumo e o barco desestabilizava. Em alguns momentos, vi a ponta da retranca quase tocar a água com o veleiro adernando. Quando me virei e mirei o horizonte, exatamente no rumo oposto ao qual seguíamos, vi o brilho da lua nascendo entre a poeira do deserto. Que alívio ter aquele lindo objeto celeste para me orientar!

Se no céu as estrelas brilhavam, no mar era o plâncton fluorescente que dava um show à parte. Esses pequenos organismos vivos se manifestavam com luminescência quando agitados a tocar o casco da Atena. Em conjunto, eles formavam uma esteira luminosa na espuma atrás do barco. Tivemos a companhia desses “vaga-lumes marinhos” por quase toda a travessia.

Após a primeira semana de navegação, começamos a nos sentir mais adaptados ao ambiente marinho. Sofia enjoava menos e também estava mais confiante para conduzir a Atena. Completávamos, assim, o primeiro terço da travessia. E, para cada marco da viagem como este, abríamos uma garrafa de vinho.

De vez em quando, cruzávamos com esporádicos navios cargueiros. Distante no horizonte, eles apareciam e permaneciam no nosso campo de visão por algumas horas. Nossa velocidade era, no máximo, a metade da deles. Por isso, por mais que a preferência de navegação fosse nossa (barcos à vela tem preferência em alto mar), mantínhamos atenção para desviar a rota e evitar uma colisão. Semelhante risco para a nossa navegação seria “atropelar” uma baleia. Como elas também cruzam os mares, podia acontecer de batermos de frente com um bicho desses. Mas, felizmente (ou infelizmente), não vimos nenhuma durante nossos dias no Atlântico. Outra companhia simpática eram os golfinhos que apareciam quase todos os dias para acompanhar o deslocamento da Atena na imensidão azul.  

Na terceira e última semana, eu já estava totalmente habituado à rotina no mar. Olhava o oceano ao meu redor e me sentia vitorioso por lidar tão bem com as minhas emoções. Sentado na proa, fixava os olhos para o horizonte e imaginava avistar terra, como os antigos marinheiros faziam. A água estava mais quente e o sol chegava a castigar minha pele que, a essa altura, tinha adquirido um brilho dourado como o qual eu nunca tive. Mas foi em uma das últimas noites, que eu passei pelo maior susto da travessia. Faltavam vinte minutos para eu terminar o meu turno. Eu contemplava a Via Láctea como de costume e me deliciava com a noite quente com ares do Caribe. De repente, olhei para a frente e percebi duas luzes encarnadas na direção para a qual eu navegava. Esfreguei os olhos cansados da longa vigília e dei um salto de onde estava sentado no cockpit. Aqueles sinais vermelhos me diziam claramente que havia um tráfego no meu caminho.

Peguei o rádio e chamei no canal 16, esperando uma resposta. Ninguém respondeu. A incógnita embarcação navegava em a rota convergente com a nossa e estava a menos de duzentos metros de distância, uma separação relativamente muito pequena no oceano. Imediatamente, desviei nosso curso para boreste, a fim de evitar um acidente. Nada de resposta até que, finalmente, um homem com forte sotaque italiano, respondeu à nossa mensagem. Era um veleiro com sete pessoas a bordo, vindo de Mindelo, Cabo Verde. Quando o senhor informou suas intenções, nós já havíamos superado aquele barco e não havia mais o perigo. O bizarro foi ele não se manifestar antes de cruzar a nossa proa a uma distância tão curta.

Faltando pouco para o fim, com tantas provações e experiências vividas, cheguei à conclusão de que eu era capaz de superar qualquer desafio que me fosse imposto. Foram muitos dias no mar e na última página do meu diário de bordo, escrevi:

Avistamos terra exatamente às seis da manhã, depois de 21 dias no mar. As luzes das ilhas de Martinica, ao norte, e de Santa Lúcia, ao sul, foram os sinais mais esperados durante a noite. Redobramos a atenção, pois, na passagem entre as duas ilhas, presenciaríamos o intenso movimento de barcos. Às nove horas, descemos para começar a nos equipar para a manobra de mudança de rumo. Tiramos o preventer preso na ponta da retranca que protegia o mastro no caso de um jaibe inesperado e voltamos todos para o cockpit. O barco estava pronto para cambar.

Nessa edição da Atlantic Rally for Cruiser, centenas de pessoas tiveram o mesmo ímpeto dos navegadores do passado. Cada um de nós, que escolheu se lançar ao mar, superou um desafio, seja ele psicológico, físico ou apenas geográfico. A Atena, valente embarcação que nos conduziu nessa viagem, surpreendeu com sua segurança e serenidade ao navegar por tantos dias seguidos. Foi ela que fez a tarefa maior de singrar as 2700 milhas, incessantemente, até o Caribe. De tudo que se passou conosco, preservam-se as únicas coisas que ninguém pode nos furtar: a amizade que selamos e a experiência de desbravar um mundo de água.

No último parágrafo do diário, escrevi:

Após 21 dias, 22 horas e 17 minutos no mar, sem contato físico com qualquer outra pessoa, Sofia, Beto e eu nos sentimos realizados por cumprir a meta de um sonho. Cruzamos a linha de chegada conquistando mais do que qualquer um de nós podia esperar. As experiências que compartilhamos durante todo esse tempo no mar, com certeza permanecerão para sempre na nossa memória.

Uma vez que se tenha experimentado navegar, você caminhará por planícies e por montanhas, tomará caminhos sobre todo tipo de terreno. No entanto, sempre voltará seus olhos para o horizonte em busca daquela brisa que vem do mar, porque lá você esteve e para lá seu coração desejará retornar.