CRÔNICAS & INDAGAÇÕES: “Quem se define se limita” – uma experiência antropológica no Tinder

Esta foi a frase que mais li nas falas dos homens que pesquisei no Tinder durante quatro meses em 2015. Após ter defendido a tese de doutorado e viver a síndrome do ninho vazio fui estimulada por um ex-aluno a pesquisar o aplicativo de encontros Tinder. Eu nunca tinha ouvido falar nesse aplicativo e ao ver as fotos das meninas no Tinder, me interessei imediatamente. Assim, esse aluno me auxiliou na confecção do perfil, escolha das melhores fotos tiradas do Facebook e comecei a estipular certos parâmetros para que a pesquisa fosse o mais científica possível. Eram homens de 35 a 45 anos, localizados a 20km de minha casa (ponto final). Desde o primeiro contato com o Tinder, o que mais me chamou atenção foi a importância das fotos no jogo da sedução, e sua cuidadosa curadoria para compor um painel imagético de expressão pessoal.

Como referência lembrei de um artigo do sociólogo Colin Campbell. Como parte de seu processo de entendimento do fenômeno do consumo como parte da sociedade contemporânea, o autor chamou atenção para como as pessoas se descreviam nos antigos classificados pessoais de jornais e revistas, onde as pessoas se apresentavam e trocavam cartas. Sim, estou me atrevendo a dizer que os aplicativos de encontros, no caso, o Tinder, é um classificado pessoal revisitado, moderno e digital. No entanto, ao invés de textos descritivos, revelando sobre como se vêem ou gostariam de serem vistos, hoje utilizamos as fotos.

Na minha pesquisa depois de mais de 2 mil perfis analisados, e mais de 500 prints de perfis somados a algumas entrevistas presenciais e online, percebi como os usuários se autodefinem e expressam suas identidades através das coisas e dos seus estilos de vida. Ou seja, se deixarmos de lado itens básicos como gênero, idade, nome, todos os participantes – quase sempre, constroem sua identidade pública essencial a partir de suas preferências e gostos individuais. Temos aqui os desejos e preferências (de consumo) definindo “reais” identidades ou expressões de como queremos ser percebidos, avaliados e classificados. São molduras de quem consideramos ser.

As fotos revelam muito mais que corpos ou status, através de nossas relações com produtos e marcas, traduzem mensagens, emoções, personalidades. Dessa forma, somos um repertório de escolhas que traduzem quem somos para o mundo, e ao serem analisadas pelo público-alvo incitamos uma categorização classificatória e nos colocamos em uma vitrine para sermos avaliados: quem é aquele sujeito da foto? Essas escolhas de consumo definem nossa identidade e fazem parte da construção de nós mesmos ao longo do tempo, pois as escolhas são apreendidas em um repertório que traduz nosso estilo de vida.

No Tinder percebi homens que gostam de viajar, muitas vezes se dava para notar que a foto poderia ter sido tirada pela ex-mulher. Afinal de contas, quem iria sozinho para Paris e faria pose poética com a Torre Eiffel ao fundo num entardecer rosáceo? Outras fotos bem comuns estavam relacionadas a carros, motos e bikes, havia tribos de amantes de carros (feira de automóveis), adeptos a comunidades de motociclismo e também as tribos bikers urbamos. Os times de futebol dizem muita coisa, além da paixão pelo clube fica a mensagem ao público feminino que o tema é inegociável. A sunga é um assunto à parte, sempre vermelha ou branca, nunca preta! Perguntei a muitos informantes a razão e todos responderam sem titubear “pra valorizar o produto oras, pra dar volume”. Temos a categoria das fotos que usam filhos e animais de estimação de pequeno porte (cachorrinhos e gatos) para mostrarem sua sensibilidade e amor paternal (“estou no Tinder e sou bom pai”). Há os que querem revelar diversão e lá vamos nós observar fotos em baladas, shows, iates, praias, piscinas, todos os pesquisados sempre seguravam “drinks de macho” como whisky (nada muito colorido) ou cervejas artesanais e importadas. Nunca vi um homem segurando uma Itaipava!

Em São Paulo, especificamente, percebi muitas fotos tiradas no carro e no trabalho.  Essas referências laborais, são importantes para o público feminino paulistanos que não quer um homem falido e sim bem sucedido. Portanto, gravatas e ternos eram sempre muito bem-vindos. Tem a turma mais cool, os skaters, grafiters e as tatuagens cumprem esse papel. Fotos que expressam manobras, mostram detalhes de desenhos eram bem comuns. Outro gatilho bem interessante é o da comida, restaurantes, vinho, champanherias importadas e elementos afins que traduziam refinamento. Poucas vezes vi selfies de homens sem óculos escuros, sem um cenário por trás, estático, tipo foto 3×4.

Ali, naquele cardápio da sedução o que vale é a foto do bom prato, da melhor representação de si, e a curadoria se mostra fundamental para isso. Neste mergulho percebi que hoje, ao baixar novamente o app muita coisa mudou. A legenda, por exemplo, com textos descritivos já não está tão aparente como em 2015 e a foto ganhou mais destaque. É como uma verdadeira balada, primeiro se olha, se dá o like (ou o super like) e depois, parte-se para a conversa, a investigação de quem é o outro por detrás daquelas imagens. Tinder tá ai pra diversas usabilidades, mas o que é mais comum a todos, independentemente das intenções é a ludicidade da escolha, do álbum de figurinhas e da possibilidade da fantasia, seja ela qual for, de se concretizar.