O Brasil é hoje o terceiro maior produtor de musicais do mundo. Por um lado, com a grande quantidade de produções, tornou-se comum ler ou ouvir por aí a frase “a Broadway é aqui”. Por outro, algumas pessoas ainda acreditam que exista uma longa trajetória a ser seguida para que cheguemos ao nível alcançado lá fora. Entre certos, errados e extremistas, eis que se abrem as cortinas para a história e a realidade do teatro musical feito no Brasil.
Provavelmente dada a nossa raiz de “país colônia”, uma semente estrangeira precisava ser apresentada, plantada em terras brasileiras para que, mais tarde, depois de desenvolvida e cultivada pelo cenário social, político, econômico e cultural do nosso país, essa mesma semente pudesse se tornar um jardim nacional. Assim tem sido com o Teatro Musical Brasileiro. É impossível negar que grande parte dessa história tenha sido construída a partir de influências externas. Ainda assim, ao analisar de perto essa mesma trajetória, torna-se claro que a exportação se tornou e se torna sempre um aprendizado, e que o Brasil ruma ao cultivo de uma produção com jeitinho brasileiro.
1°ATO
A primeira semente veio em meados do século XIX: As Operetas, um tipo de Ópera mais curta e de temas mais leves e divertidos, uma espécie de teatro musicado no qual se alternava canto e fala. O gênero, importado da Europa (principalmente da Itália e da França), tinha suas obras originais adaptadas por autores brasileiros que traduziam e adaptavam o texto (libreto), enquanto mantinham a estrutura musical (partitura), até que, com a experiência, apareceram nossos próprios compositores, bem como as primeiras operetas nacionais. Acompanhando esse desenvolvimento, ainda no século XIX, o público brasileiro recebeu uma segunda influência: O Teatro de Revista. De origem Francesa, derivado do Vaudeville (ou Teatro de Variedades), e trazido por imigrantes portugueses. O Teatro de Revista despontou com esquetes e números musicais, críticas sociais e políticas, o uso do cômico, da sensualidade feminina, e de um apelo bastante popular.
Cheio de atrativos para o grande público, o gênero, que mais tarde colocou Carmen Miranda em evidência, passou por três fases distintas. Na primeira, a cada ano eram apresentadas Revistas (como ficaram conhecidas as peças) comentando de forma crítica e caricata os principais fatos do ano anterior, dando destaque para o texto, e com uma orquestra de cordas que acompanhava o coro. Já na segunda fase, que aconteceu durante as décadas de 20 e 30, as peças passaram a se utilizar ainda mais da sensualidade, chegando a explorar a nudez feminina, e a orquestra deu lugar a uma banda de jazz, com influências de ritmos americanos. Ainda assim, foi nessa mesma fase que o samba ganhou espaço nos palcos do Teatro de Revista, e atores e atrizes começaram a se destacar por suas vozes e interpretações. Existia um maior equilíbrio entre a importância dada ao texto e a forma de encená-lo, equilíbrio entre os números musicais e fantasiosos, entre a comédia e a crítica política. Por fim, quase em meados do século XX, as apresentações tornaram-se verdadeiros espetáculos, carregados de elementos fantásticos, grandes coreografias, cenários e figurinos inspirados nos grandes musicais da Broadway e nos shows dos cassinos de Las Vegas. Mas foi também nessa ultima fase que as Revistas se tornaram mais apelativas, perderam público para a televisão, grande novidade da época, esbarraram em proibições feitas pela censura, e acabaram caindo em decadência.
Era um ciclo que se fechava, enquanto um novo se abria, pois não tardou muito para que os próprios musicais da Broadway de fato chegassem aqui. Em 1962, foi a vez de “Minha Querida Lady” (do original My Fair Lady). O musical havia sido um grande sucesso na Broadway e já estava em cartaz há anos. Mesma direção, figurinos e cenários originais, que já haviam viajado para diversos países, naquele ano desembarcavam no Rio de Janeiro. Era a famosa produção ‘enlatada’ (quando tudo é igual a produção estrangeira), com uma pequena grande diferença: letras versionadas para o português e um elenco de atores brasileiros, que contava com ninguém menos que Bibi Ferreira e Paulo Autran. A montagem brasileira seguiu a tradição de sucesso da peça, foi feita a gravação de um LP com as canções versionadas, e uma segunda temporada seguiu para São Paulo, após 400 apresentações em território carioca. Como consequência, não tardou para a chegada das próximas montagens. Em 1966, Bibi protagonizou o espetáculo “Alô Dolly” (Hello Dolly!). Em 1969, Sônia Braga, Antonio Fagundes, Ney Latorraca, dentre outros se despiam em Hair. E em 1972, foi a vez de “O Homem de La Mancha” (Man of La Mancha), novamente com Bibi e Paulo Autran, cujas versões foram feitas por Ruy Guerra e Chico Buarque de Holanda.
Aqui aparece um nome bastante interessante dessa história. Paralelamente ao sucesso dos musicais estrangeiros, o mesmo Chico Buarque encabeçava uma vertente de produções autorais e 100% nacionais. Chico escreveu quatro peças musicais, entre 1967 e 1978: Roda Viva, Calabar, Gota D’Água e Ópera do Malandro. Em meio a Ditadura Militar brasileira, sua obra tinha um forte questionamento social, enredo brasileiro, cutucava as escolhas políticas da época, criticava a abertura do país para o estrangeiro, e enfrentava os olhos atentos da censura. Quase que oposto aos musicais da Broadway que estrearam no Brasil até então, o foco principal não era o de embalar a plateia, mas sim refletir e questionar o momento do país, algo que apenas uma montagem nacional poderia fazer. Outro fato curioso é que Bibi Ferreira foi a estrela de Gota D’Água, aparecendo em cena como uma moradora da comunidade, sem maquiagem e despojada, causando um grande impacto na plateia, tão acostumada a vê-la bem produzida nos musicais.
Seguindo as duas vertentes que se desenvolviam, em 1983, do lado das produções musicais nacionais, Bibi Ferreira voltava aos palcos com Piaf – A Vida de uma Estrela, arrebatando espectadores e críticos com sua brilhante interpretação da cantora francesa. Do lado das importações, estreava em São Paulo a montagem de A Chorus Line, que lançou o nome de Claudia Raia (na época com 16 anos). Sobre A Chorus Line, vale destacar um comentário do coreógrafo americano Roy Smith. Responsável por ensinar aos atores brasileiros as coreografias do espetáculo, ele disse que os brasileiros não tinham a técnica dos dançarinos americanos e europeus, mas eram dotados de uma enorme vontade de aprender o que, segundo ele, era a única coisa necessária para se fazer um grande espetáculo. Verdade seja dita, a vontade e a energia dos atores brasileiros era algo que até hoje surpreende os diretores ‘gringos’, mas por muito tempo pecamos pela falta de estrutura e profissionalização. A história musical foi sendo escrita um pouco no embalo de tudo que vinha acontecendo no Brasil, com fases que pipocavam e se desenvolviam de acordo com os limites e embates existentes. Existia a falta de teatros com infraestrutura para comportar grandes espetáculos, um local apropriado para a orquestra, não existiam leis de incentivo que ajudassem a financiar projetos de grande porte, sempre muito caros, além da falta de profissionais realmente preparados ou familiarizados com esse mercado. Nada disso impediu que o Teatro Musical acontecesse por aqui, nas suas mais diversas formas, como foi visto. Porém esse entrave também não permitia que se fosse muito além. Espetáculos continuaram sendo montados. Musicais baseados em personalidades consagradas da musica brasileira, algumas adaptações da Broadway,… Mas foi em 2001 que o cenário realmente começou a se reaquecer e mudar.
Com a reforma do antigo Teatro Cine-Paramount, que custou 12 milhões de reais, abriu-se em São Paulo o primeiro local realmente apto a receber produções mais modernas e com o porte dos espetáculos da Broadway, o então chamado Teatro Abril. O musical estreante foi ‘Les Miserábles’, com investimento inicial de 3,5 milhões, produção no padrão ‘enlatado’, e uma equipe de mais ou menos 150 pessoas, composta por atores, técnicos, camareiras, peruqueiras, equipe de iluminação, de som, dentre outros. Todos os números envolvidos com a produção eram inéditos no Brasil, colocando-a em outro patamar, inclusive salarial, o que atraiu a atenção do público e de profissionais da área. Como resultado: 11 meses em cartaz e mais de 350 mil espectadores. O sucesso da empreitada foi suficiente para que a roda não parasse mais de rodar, e assim vieram novas montagens, novos produtores, novos teatros e assim continua até hoje. O cenário brasileiro que a antes contava com apenas uma grande produção a cada alguns anos, evoluiu a ponto de hoje termos capacidade para quatro ou cinco grandes produções simultâneas apenas em São Paulo, e outras quatro no Rio de Janeiro, cidades que, até hoje, concentram os grandes musicais, que se tornaram um atrativo turístico para pessoas de outros lugares do país.
2° ATO
Não há dúvidas de que o Teatro Musical Brasileiro está passando por uma de suas melhores fases. E acredito que essa estabilidade e o atual crescimento do gênero, estão sedimentando finalmente a especialização e a profissionalização do mesmo. Antes era muito comum encontrar elencos com cantores profissionais que também atuavam, bailarinas formadas que também eram afinadas, ou então um técnico que já havia trabalhado em outras peças, mas nunca com o sistema ou a tecnologia por trás dos grandes cenários. Era raro encontrar pessoas que haviam realmente dedicado seus estudos e formações ao Teatro Musical, o que também não seria possível, já que há não muito tempo atrás, não existiam cursos específicos dessa área.
Ao contrário dos EUA, por exemplo, em que as crianças já entram em contato com esse universo desde a escola, e aonde existe uma série de cursos superiores e pós-graduações focadas no Teatro Musical (tanto para atores, quanto para toda a parte técnica), aqui no Brasil isso ainda é muito recente. Podemos encontrar um excelente professor de canto. Uma ótima professora de dança. Uma respeitada escola de teatro. Mas ao procurar algo que unifique tudo isso, de forma realmente integrada, tornam-se escassas as opções. Mesmo assim, voltando ao comentário de Roy Smith, o que não falta ao brasileiro é vontade, o que se torna aparente a cada nova audição, em que podemos encontrar cada vez mais pessoas, e profissionais cada vez mais preparados, independente das dificuldades da área. A vida dessas pessoas não é fácil. Estamos falando da busca pelo domínio de três áreas diferentes. O canto, a dança e a atuação. E como já foi mencionado, não basta dominá-las separadamente. É preciso que seja tudo uma coisa só, fluída. O espectador precisa acreditar que é tudo natural, fácil, do contrário irá sair da fantasia e começar a se questionar: “Por que eles estão dançando?”, ou “Por que ele parou de falar e começou a cantar?”, “Ninguém faz isso na vida real!”.
Acho que esse é um dos grandes encantos do Teatro Musical. A forma como, quando bem feito, une as três formas de arte em uma coisa só, tudo em prol de uma só história, de proporcionar uma experiência única e arrebatadora àqueles que estão assistindo. Mas essa também é a grande dificuldade, pois ao colocar três áreas diferentes no palco, sem contar a parte visual, geram-se três informações e caminhos distintos de atingir o espectador, que devem estar alinhados em prol de um mesmo objetivo. Mais do que a fala, a dança, ou a música, o âmago do Teatro Musical são os sentimentos que estão por trás de tudo isso, e para que ocorra uma troca verdadeira entre o ator e você, que se sentou na cadeira, é preciso um grande domínio daquilo que se está fazendo no palco, por parte de todos os envolvidos. Não à toa, a busca por ser um artista completo, bem como a rotina dos profissionais da área, não é nada leve. As peças são ensaiadas, em média por dois meses, com ensaios de até dez horas por dia, seis vezes por semana. Após a estreia, costumasse fazer até seis sessões semanais. Uma na quinta à noite, uma na sexta, duas sábado e duas domingo. Esse número varia, podendo ser menor, mas podendo ser maior também. A duração de um grande musical costuma ser de três horas: 1h45 destinadas ao primeiro ato, um intervalo de 15 minutos, e então mais uma hora para o segundo ato. Todo dia é preciso chegar mais cedo ao teatro: possíveis ensaios, substituições, aquecimento corporal e vocal, maquiagem, colocação de figurinos, perucas, microfone. E no resto da semana é preciso se cuidar, cuidar do corpo, estudar canto. Alguns fazem outras faculdades, cursos, aulas de dança, outros trabalhos, são de outras cidades. A cada fim de temporada é preciso correr atrás de outro musical, de outra audição. Não é um trabalho para qualquer um.
Mas acredito que a história tem mostrado que é para nós. O gênero vem se firmando porque existe mercado, porque agrada ao público, interessa, diverte, emociona, e porque agrada aos artistas, que hoje têm batalhado por seu lugar. É difícil, mas existe uma grande recompensa para aqueles que fazem o que amam. Existe uma satisfação pessoal a cada conquista. Existe o reconhecimento de bons profissionais. Existe um desenvolvimento intelectual e humano. Existe um carinho daqueles que prestigiam o Teatro Musical. Ainda não chegamos à maturidade do segmento. Muito ainda está sendo exportado, copiado, modificado, melhorado. Muitos são os erros cometidos, sejam eles técnicos ou artísticos. Mas também muitos têm sido os acertos, e maior é o conhecimento. Estamos colhendo o resultado de um longo aprendizado que agora lança luz sob nosso Teatro Musical Brasileiro, independente do formato, seja ele de musicais ‘enlatados’, que ganham identidade própria com nossos artistas, seja em obras estrangeiras, com direção, concepções, ou coreografias feitas aqui, ou nas produções 100% nacionais.
É um novo capítulo sendo escrito. As sementes foram plantadas. É hora de cultivar o jardim.