O cinema e Antonio Saboia andam de braços dados sempre. Não é à toa que ele já possui 13 longas no curriculo. E esse mais recente encontro aconteceu com a chegada de “Deserto Particular”, que foi lançado esta semana durante o Festival de Veneza na mostra “Venice Days”. Fora isso Saboia pode ser visto na série “Rotas do Ódio”, pela Globoplay. Sempre trazendo à tona temas delicados e atuais, como a estrutura machista, a violência e as desigualdades sociais, como foi o caso de “Bacurau”. Entre Brasil e França (onde nasceu) por conta de seus projetos, Saboia agora está com foco no seu novo trabalho, um longa de doc-ficção americano-brasileiro, “WARDEN”, mas arrumou um tempinho para conversar com a MENSCH.
Você já tem 13 longas no seu currículo. O último, “Deserto Particular”, com direção de Aly Muritiba, está no Festival de Veneza na mostra “Venice Days”. O que você pode adiantar sobre esse filme? Pra mim, o filme questiona nossa postura em relação à questão do gênero, o que se espera de um de homem hoje em dia e a necessidade de se libertar das nossas amarras estruturais. É um filme de amor sobre o poder de superação e transformação.
Uma série de grande sucesso na sua carreira foi “Rotas do Ódio”, dirigida por Susanna Lira (Globoplay). Investigação sobre crimes de ódio, intolerância e racismo numa grande cidade como São Paulo. Como foi a preparação da sua personagem (Julio Pedrazza)? A preparação foi em 2017, encontramos com a delegada e policiais da DECRADI de São Paulo. Quando eu li o roteiro a primeira vez eu achava que essa delegacia não existia, que era tudo invenção da Susanna (Susanna Lira diretora) mas que – com certeza – precisava muito existir. Como eu já tinha feito policial antes decidi não focar muito na parte técnica do que é ser um policial e focar mais em tentar entender o humano, quem era o Pedrazza. Esse cara divorciado com dois filhos que ele mal vê, mergulhado no trabalho, flertando com o alcoolismo e sua superior e que faz tudo passar pela ironia como mecanismo de defesa. Precisava entender o que o atormentava e o fazia estar lá, defendendo essa causa todos os dias.
Tratando-se de temas tão delicados e atuais, qual a sua visão como ator e como cidadão? Como disse o Aly Muritiba em uma entrevista recente, “Cada artista é um soldado contra o fascismo” e agora mais que nunca né? O Rotas coloca em relevo o que muitos chamam de “mimimi” quando no Brasil uma mulher trans morre a cada 24h, uma pessoa negra morre a cada 20 minutos… É fundamental bater nessa tecla e relembrar que o problema é real!
Você já encenou personagens bem diferentes uns dos outros. O que está faltando fazer? Sou maranhense com fortes raízes no Ceara, então falta fazer muito mais personagens nordestinos! Cada personagem novo é uma porta de percepção sobre o mundo que se abre. Falta muita coisa pra fazer, muita! Além de todos os filmes de aventura e comédia que ainda não fiz, (risos).
Atualmente você está passando um período na França. É chegado o momento de seguir uma carreira internacional? Tenho muita coisa para fazer no Brasil ainda mas preciso também trabalhar em outras línguas, com outras culturas, outras visões de mundo. Faz parte também da minha história.
O Brasil vive uma grave crise na cultura. Qual a sua visão geral, hoje em dia, sobre o cinema nacional? O que aconteceu com a Cinemateca é mais uma síntese do descaso com a cultura no Brasil. O incêndio podia ter sido evitado – como todos os outros – se um mínimo de recursos públicos ou privados tivesse sido investido. Poderíamos evocar também os incêndios do Museu da Língua Portuguesa e do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Esse descaso pra mim é criminoso mas vem de longe. Me lembro da época em que o MASP ficou sem verba suficiente para pagar a conta de luz e isso ameaçava diretamente o acervo que precisava de refrigeração constante. E isso em São Paulo, o estado mais rico da federação…. A tragédia é que esse descaso estrutural foi agravado pela chegada de um governo que odeia ativamente a diversidade cultural brasileira e a classe artística. No campo do cinema, eles sustentam abertamente um discurso fascista de incentivo a produções conservadoras que dialoguem exclusivamente com a “família tradicional brasileira”. Alguém sabe o que significa “família tradicional brasileira”? Burguesa, cristã, branca e pró-ditadura – se possível – é isso? O descaso pela cultura, em todas as esferas, sempre existiu mas foi instrumentalizado por esse governo para enfraquecer nossa experiência democrática. E essa tendência é muito clara desde que aboliram o Ministério da Cultura e colocaram na secretaria que sobrou – entre outros exemplos vergonhosos – sinceros admiradores de Goebbels. Enfim, eles passarão e nós ficaremos. E quem sabe não vem um impeachment antes das próximas eleições.
Alguns atores, depois de inúmeros trabalhos, seguem o caminho da direção ou mesmo escrever um roteiro de um filme, uma série ou uma peça de teatro. Já aconteceu com você? Escrevi e produzi alguns curtas mas só recentemente comecei a desenvolver um longa que eu gostaria de dirigir. É cedo ainda para falar disso, a “criança” está em início de gestação.
Não podemos deixar de falar na pandemia. Você foi para a França por conta do Covid? Perdi meu pai em 2020. Fiquei isolado no Rio com meu irmão por conta da pandemia resolvendo tudo com ele. Quando começaram a desconfinar e vacinar em massa na França em junho de 2021, decidi voltar para ver a família do lado de cá. Tranquiliza muito não ter um governo negacionista por aqui. Já recebi minhas duas doses faz tempo. Aqui temos quase um cardápio de vacinas e você escolhe o local, o dia e o horário da injeção entre os 20 centros de vacinação de Paris. A questão do Covid temos claramente um Estado funcionando, de fato, para todos, sem exceção e não interessa se você é francês ou não. Se o SUS e a FIOCRUZ tivessem um governo federal à altura do problema, a campanha de vacinação no Brasil teria sido resolvida mais rápido do que em muitos países do eixo norte. Muitos!
Fale-nos um pouco sobre como você está passando por tudo isso? Faço parte dos privilegiados que tiveram meios de se manterem seguros em casa durante toda a fase inicial da pandemia quando não existia tratamento disponível no mundo. Quando cheguei em Paris esse ano, todos os meus amigos estavam vacinados. Fiz minha quarentena assim que cheguei e, 10 dias depois tomava a primeira injeção. A segunda veio um mês depois e estou até agora curtindo o abraço da família. Essa pandemia nos roubou muitos abraços e tenho muita sorte de poder curtir isso de maneira segura.
Sua visão sobre o seu trabalho como ator mudou? Quero poder escolher trabalhos que me façam crescer de alguma forma, participar de histórias que sinta necessidade de contar, das quais me orgulhe e que o público tenha prazer e interesse em assistir, claro.
Quais são seus planos de trabalho daqui para frente? Tenho um longa de doc-ficção americano-brasileiro, “WARDEN”, do Marcus Alqueres em pós-produção. O filme é conduzido como um estudo antropológico sobre a trajetória do que seria o primeiro super herói. Os outros ainda não posso adiantar.
Você vai se dividir entre Brasil e França? Vou continuar morando no Brasil, mas, as minhas idas e vindas entre a França e o Brasil serão mais frequentes. Tenho amigos de infância e afilhados que quero curtir mais em Paris e pretendo também estabelecer uma base de trabalho por aqui.
FOTOS @olivier_desautel