ENTREVISTA: JORGE FLORÊNCIO, O CRISTO NEGRO DE “AMOR PERFEITO”

Com 38 anos de idade e 23 de carreira, Jorge Florêncio está em “Amor perfeito“ dando vida a Jesus Cristo. Na trama, o personagem aparece com frequência no imaginário de Marcelino (Levi Asaf). Ele ainda está fazendo assistência de direção do musical infantil “Hora do Blec – Sonhos”, de David Júnior e Yasmin Garcez. O artista também faz parte de um coletivo que cria projetos para o audiovisual sob o comando da diretora Marcela Rodrigues. E além de ator, Jorge Florêncio ainda trabalha como massoterapeuta. Em meio a tantas atividades, Florêncio arrumou um tempinho para bater um papo com a MENSCH.

Como surgiu seu interesse por atuar? Surgiu assistindo novelas. Desde muito pequeno eu já olhava aquelas pessoas ali na televisão e me imaginava lá dentro também, vivendo outras vidas que não a minha. Pode parecer curioso porque em algum lugar eu não tinha aquele entendimento de como aquilo era possível, mas eu me via ali, vivendo aquilo, falando aquelas falas, vestindo aquelas roupas, de fato vivendo outras realidades que não a minha. Brincava com meus irmãos de fazer cenas para as vizinhas do prédio em frente, colocávamos roupas e passávamos de um lado para o outro. (risos). Essas eram as “cenas”. Foi então que comecei a buscar cursos de teatro, porque me disseram que pra fazer TV, tinha que fazer teatro. Eu tinha um caderno de capa dura e nele eu anotava o nome de todos os teatros e agências de figuração que buscava nas listas amarelas e classificadas dos jornais de domingo. Ligava pra saber se tinha aula e as aulas eram sempre muito caras, então meu primeiro contato mesmo com teatro foi na escola e de lá pra cá, nunca mais parei.

Como foi sua trajetória até chegar a fazer Jesus Cristo na novela Amor perfeito? Trabalho com teatro desde 2000, onde comecei com aulas no ensino médio no Colégio Estadual Visconde de Cairú, no Méier. De lá pra cá, nunca parei. Lá na escola que encontrei meus amigos da vida e que montamos nossa cia de teatro a Troupp Pas D’argent, com 17 anos de estrada. Tive meus momentos de pausa para refletir como eu gostaria de  me colocar artisticamente e, nessas pausas, eu me arrisquei trabalhando em outras áreas na arte que não a atuação. O que sem dúvida nenhuma foi muito enriquecedor para o artista que sou hoje. Já fiz contrarregragem, assistência de direção de arte, operador de boom, cinegrafista, operação de luz e som tanto na televisão quanto no teatro e tenho muito orgulho porque tudo isso faz um diferencial muito grande no meu trabalho e respeito muito cada uma dessas funções pois sei o valor de cada uma delas. Morei em Buenos Aires alguns meses para estudar direção de atores para cinema, lá eu fiz um curta e um comercial como ator. Voltei e um tempo depois fiz minha primeira novela, “Velho Chico”, como elenco de apoio. Funcionou como uma escola pra mim. Ali pude entender como é uma rotina de um set, experiência única. Um tempo depois morei em Manaus também, uma cidade extremamente cultural, acolhedora e potente artisticamente. Em Manaus, fui chamado para fazer a novela “Amor de mãe” e ficava nessa ponte aérea, até que veio a pandemia e tudo parou.

Durante a pandemia, senti a necessidade de ter uma outra profissão, já que o setor artístico foi um dos mais afetados e um dos últimos a se recuperar totalmente. Me encontrei na massoterapia, um período muito bom onde consegui me estruturar financeiramente e me ajudou muito no meu trabalho como ator, trabalhando mais a escuta. Até que em agosto de 2022, fui chamado pela produtora de elenco Marcella Bergamo para fazer um teste para “Amor perfeito”. Fiz o teste e passei para um outro personagem que morreria no meio da trama. Em dezembro, a produção faz novo contato comigo dizendo que o perfil do personagem havia mudado e que não seria mais eu…fiquei muito decepcionado e de fato briguei com Deus, chorando eu questionava o porquê disso tudo, se eu estava tão bem com a massoterapia e meus projetos no teatro. Por que fazer isso comigo naquele momento, onde tudo caminhava tão bem? Até que em janeiro de 2023 o diretor artístico André Câmara, me fez o convite para dar vida a Jesus Cristo, um convite irrecusável. Ali eu pude entender que tudo tem o tempo de Deus e não o nosso tempo e que as coisas acontecem na hora e momento certo. Entendi que na vida é preciso plantar para colher e que ela é muito mais sobre seguir do que entender.

E como foi a construção e como tem sido viver Jesus Cristo numa novela da TV aberta? Quando André me convidou para fazer Jesus, pediu para que eu secasse porque estava muito forte para o papel. Desde então e acompanhado de treinos, comecei uma rotina para emagrecer. Perdi quase 10 kg, modificando minha rotina de treinos e alimentação. Mesmo sabendo que a novela não teria uma abordagem bíblica, senti a necessidade de entender um pouco sobre a bíblia, e tive aulas com um amigo e músico, estudante de teologia, João Marcos. De forma leve e descontraída, falávamos sobre algumas passagens bíblicas e discutíamos pontos de vista sobre, sem o objetivo de impor verdades, mas sim observar seu contexto e a presença de Cristo naquelas palavras e ensinamentos. Assisti ao documentário “Caminhos de Jesus”, o filme “A Cabana” e a série “The Chosen”, buscando observar outras construções de Jesus, que não as da Paixão de Cristo, que num geral tem foco na crucificação e ressurreição. Vi também o filme do livro “Marcelino pão e vinho” de José María Sánchez Silva, disponível na internet o qual a novela é livremente inspirada. Minha ideia era propor algo mais próximo do humano, já que a maioria das cenas seria com o Levi Asaf, o protagonista da novela que tem 9 anos. Viver Jesus Cristo tem me ensinado muito sobre muitas coisas, um dos maiores ensinamentos é que a calma é uma virtude e que tudo tem um tempo para acontecer, que não o nosso.

Aliás, acha que esse personagem é um divisor de águas da sua carreira? Sem dúvidas. Tenho muito mais visibilidade, dentro e fora da emissora, tanto com pessoas das artes, como com o público em geral. Mas, pra além disso, hoje consigo enxergar as coisas com mais leveza no meu trabalho e também na minha vida. Cada um colhe exatamente aquilo que planta, consigo olhar minhas conquistas e cultivá-las com carinho e calma, para que se fortifiquem e me rendam outros frutos, sem desespero, ânsias e angústias de dar logo outros passos. Cada passo no seu tempo e celebrando minhas conquistas do agora, sem deixar as nuvens do depois ofuscarem meu presente.

Ser Jesus Cristo mexeu com sua espiritualidade e crenças de alguma forma? Eu sempre fui uma pessoa de fé e espiritualizada, o que me ajudou muito nesse percurso. Mas viver Jesus Cristo é muito único, hoje consigo olhar para o meu entorno com mais calma e dou valor às minúcias, que costumo chamar de pequenos milagres diários. A gente tem o costume de querer coisas, querer que se operem milagres em nossas vidas e esquecemos que estar vivo já é um milagre, que a natureza nos proporciona diariamente lindos milagres…basta a gente ter tempo de olhar. Acredito que uma vez a gente trabalhando nossa sensibilidade para receber e cultivar esses pequenos milagres, os grandes naturalmente se farão presentes nos nossos dias. É assim que eu acredito hoje e é assim que tem sido na minha vida.

Em 2023 vermos um Jesus Cristo negro como personagem presente numa novela da Globo é muito significativo. Como você analisa essa transformação de padrões para o público e nas artes? Penso ser de extrema relevância para pessoas pardas, assim como eu, pretas, negras e indígenas se verem representadas na televisão. Falando especificamente de Jesus Cristo, o que a gente viu ao longo dos séculos e ainda vê são representações eurocêntricas dessa figura sagrada, o que até geograficamente seria pouco provável, uma vez que o que se sabe é que Jesus teria nascido numa região próxima ao Oriente Médio. Acredito que trazer para a televisão um elenco mais diverso, multirracial, miscigenado como de fato é a maioria da população brasileira, faz com que as pessoas possam se ver representadas em lugares de protagonismo, pouco explorado antes pelo audiovisual em geral. O que eu vejo, de uns tempos pra cá é que de fato essa transformação vem acontecendo de dentro pra fora, e não por modismo ou para cumprir cotas. Mas não devemos ser ingênuos, sabemos que nosso país tem estatísticas altas de morte de pessoas pardas, pretas, negras e indígenas, sabemos que quanto mais escura é a pele, maior é o preconceito e a discriminação. O racismo é estrutural e deve ser combatido diariamente não só com políticas públicas, mas também com ações de empresas privadas grandes visando a inclusão. E nesse ponto acredito que alguns canais abertos de televisão, grandes redes de streaming, produtoras e estúdios deram um passo à frente, o que de forma nenhuma pode retroceder, porque é pra frente que se anda. E que num futuro próximo essas perguntas e temáticas já não sejam pautas e que o que prevaleça seja somente o talento e o que de relevante cada um tem a acrescentar para além de suas bolhas.

Como tem sido o retorno do público diante de uma imagem tão sagrada sendo levada à uma novela? Incrível e surpreendente. Recebo mensagens diariamente de pessoas de todo Brasil e também de outros países. São mensagens de acolhimento e extrema aprovação do trabalho que estamos fazendo e da forma como apresentamos Jesus Cristo na TV. Diversas pessoas se sentem tocadas pelas cenas e se apropriam, por vezes, do que está sendo dito nos nossos diálogos. Puxam para si e fazem essa auto análise aplicando em suas vidas um recorte daquelas situações apresentadas. Isso é muito bonito de ver, é a certeza de que o papel da arte está sendo feito, transformar de alguma forma os que têm contato com ela. Já recebi mensagem de uma pessoa que estava internada com crises de ansiedade  e relatou  que quando minhas cenas iam ao ar isso a deixava mais tranquila e calma, isso não tem preço! Já tiveram diversas pessoas que se dizem ateus, mas que se sentem extremamente tocadas e emocionadas com as aparições de Jesus para Marcelino na trama. São relatos muito comoventes e que me fazem ter a certeza de que escolhemos o caminho certo na construção e apresentação desta imagem sagrada na novela.

E como tem lidado com o aumento do assédio dos fãs? Eu gosto muito e procuro, dentro do possível, responder a todos personalizando as respostas, para que vejam que de fato sou eu quem responde. Acredito que esse retorno é o mínimo que posso fazer por quem de fato faz o trabalho ter a dimensão que tem, o público. Não é difícil nas postagens nas redes me ver interagindo com um fã e trocando mensagens, acho saudável essa troca, tira a gente um pouco desse lugar mitificado da fama, onde se estabelece uma relação mais humanizada com as pessoas. Penso que é disso que estamos precisando, ter mais empatia pelo nosso semelhante e dedicar um tempo a essa escuta. 

Onde te encontramos quando não está trabalhando? Gosto muito de estar em contato com a natureza, ela me alimenta e purifica. Estou sempre pedalando pela orla da cidade e fazendo trilhas sempre que posso, em contato com praias e cachoeiras.

Paralela à vida de ator, você é massoterapeuta. O que te levou à essa carreira? De alguma forma, eu estava sempre atento a possíveis outras profissões que pudessem me atravessar para além das artes. Sabemos que infelizmente, viver de arte no Brasil é uma missão árdua, então eu tinha essa antena ligada de que em algum momento eu poderia ser atravessado por outro ofício. Alguns amigos próximos e pessoas que me relacionei já tinham me alertado sobre o fato de eu ter boas mãos. Foi então que veio a pandemia e eu me vi completamente sem recursos, já que o setor artístico foi um dos mais afetados. Comecei a pensar em outras formas de renda e queria fazer algo que me fizesse bem e também que proporcionasse o bem ao próximo, foi assim que cheguei nas terapias holísticas, mais especificamente na massoterapia. Assim que flexibilizou um pouco e voltaram as aulas presenciais eu logo iniciei um curso profissionalizante.

Jorge Florêncio ainda está envolvido em dois projetos de documentários. Um sobre mulheres no samba e outro sobre refugiados. Como surgiu a ideia das produções? “Mulheres Bambas”, é um projeto da diretora e cineasta Marcela Rodrigues que cresceu na Mangueira, morro na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Ela sempre gostou de samba e quis entender um pouco mais sobre a participação das mulheres num dos gêneros musicais mais famosos do nosso país e como essa relação se dá numa sociedade patriarcal e machista como a nossa. Daí a ideia do documentário que traça um paralelo e participação das mulheres no samba desde os anos 30 até os dias atuais. Já o “Kondima – Sobre travessias” é um projeto idealizado pela doutoranda e mestra em artes Natalíe Rodrigues com direção de Marcela Rodrigues e assistência minha, que surgiu da necessidade de dar foco e protagonismo a uma causa pouco abordada, que é a crise dos refugiados mundo afora. Esse projeto começa com uma peça de teatro, onde temos uma atriz refugiada em cena no seu lugar de fala. É um doc ficção  teatral que mistura relatos verídicos com a ficção. Para esse documentário, eu e a Marcela, sentimos a necessidade de ter essa aproximação com essas pessoas. Fomos como cinegrafistas, para a cidade de Pacaraima em Roraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela durante o ápice da crise migratória no país, onde podemos entender um pouco mais de perto a dor dessas pessoas que são forçadas a deixar seus lares em busca de uma vida digna.    

Quais seus sonhos profissionais? Ter cada vez mais espaço dentro do audiovisual aqui no Brasil, poder fazer bons trabalhos e proporcionar reflexões e transformações aos que entrarem em contato com meu trabalho. Quero em breve também fazer séries na Espanha, voltar à Argentina e trabalhar com nomes como Ricardo Darín, de quem sou fã.

Você é vaidoso? Qual o limite da sua vaidade? Sou sim, mas procuro não deixar que isso se estenda muito, principalmente no meu trabalho. Acho importante que a gente cultive esse sentimento de autocuidado. Se a gente não se vê bem, quem vai ver? Mas é preciso ter atenção para que esse namoro com nosso ego, não vire uma arma nos aprisionando em nós mesmos sem poder observar com generosidade o outro. Vaidade e ego devem estar alinhados com a gente, nem muito abaixo, nem muito acima, na medida.

Fotos Sergio Baia @sergiobaia

Styling Darlan Oliveira @darliveira

Agenciamento Amcompany @am_company

Assessoria Natasha Stein @natashasteinassessoria