HORIZONTE: CHAPADA DO ARARIPE – NOS VERSOS E PROSAS DO SOLO CEARENSE

Por Andrea Hunka / Co-produção Sofia Hunka

Fotografia Augusto Pessoa

Rumar pela manta asfáltica desejosas de encontros, sensações perdidas, cheiros e sabores que ficaram na estrada do tempo e foram adormecidos pelas intempéries da vida, assim nossos corações, três corações femininos cheios de ideias diversas seguiram nessa nova trilha. Difícil dizer quais eram os nossos pensamentos e perspectivas, a cada um recorde de épocas vividas ou não por nossa existência. Olhar pela janela do carro e perceber que a vida passa na velocidade imprimida pelo velocímetro, onde o controle está num pedal, permitiu a mim m, nesse instante, uma sensação de semi-Deusa, e ali, ante as duas vidas ao meu lado, decidir colocar pequenos repousos para vislumbrar a grandeza dessas horas. Eram paradas em postos, fotos corriqueiras ia sendo tiradas da vida alheia, necessidades fisiológicas, biológicas e mais umas paradas, na visão, letreiros de marcas que nos traziam afetos deixados a esmo, era a vida retornando o passado e o presente galopante nos entrecortando, interiorizando. 

O sertão é um oceano à Guimarães Rosa, não só porque já foi água que submergiu cada palmo desse solo, mas porque é gigante em suas reentrâncias, suas veredas humanas existentes nessas paragens e na travessia da existência de tudo que há nesse lugar. O sertão é asfixiante quando olhado pelo canto de um olhar que se permite deixar o encantamento chegar. Ao longe,  avistamos os montes, as serras que vão nos arrodeando. No alto as nuvens brigam descendo baixinho, neblinando de forma caprichosa o tempo. A beira da estrada vai sendo arrematada por matos multicoloridos, com flores que vão do púrpura ao lilás esmaecido, as sábias, árvore típica dessas bandas estão em flor, brancas parecem flocos de algodão caídos do céu, canafístula, catingueiras, angicos, faveleiras potentes rompem a terra pedregosa e explodem em suas copas. As patativas, ave desses bancos não só estão na cidade de Assaré, mas a mais linda, hoje é estrela, reluz lá do alto e se chama, Antônio Gonçalves da Silva, o poeta da roça. Tudo nesse transcorrer nos traduz a força e potência dessas ribeiras. A história traduzida nos contornos das casas caiadas, já destroçadas com o tempo, nas pastagens longínquas que nesse época verdejantes enche o coração do sertanejo que corre pelas madrugadas a cuidar dos plantios que crescem, fazendo o coração “sorrir” de tanta esperança.

A estrada toma linhas retas e ao longe vamos vendo um paredão escarpado erosivo e íngrime que segue leste ao oeste de nossa visão – a chapada do Araripe, plena, gigante, ante em nossa frente. Ficamos vidradas e em silêncio fomos rompendo o tempo na ânsia de adentrar nessa história. As trilhas ao longo desses dias aqui nesse lado do mundo, do Brasil, ao entrecorte do extremo sul do estado Ceará está centrada no delinear cultural, histórico e natural. Exatamente nesse solo, fatos, acontecimentos, desenhos e rastros das vidas que aqui viveram condensaram detalhes de importância imensa para a construção da história brasileira. Entre rastros pré históricos da era paleolítica, onde aqui se confirma o braço que foi um dia mar, também tem a  ancestralidade dos povos Cariris, as construções colonialistas de engenhos de açúcar, cultura do arroz e algodão, os catolés, carnaubeiras, macaubeiras( espécie de palmeiras) a almocreves(indivíduo que tem por ofício conduzir bestas de carga) intrépidos com suas bugigangas, movimento do cangaço a os revoltosos, a saga do padre Cícero e seus romeiros, a mítica da fé católica sertaneja com suas ressignificâncias, mister das misturas com outras crenças pagãs, vide as rezadeiras como a saudosa, madrinha Dodô. 

Nesse recinto a cultura é efervescente, a musicalidade, o canto, a teatralidade, a significância da fotografia, as danças, as artesanias, as pessoas intrépidas como Celinha do Cariri, com sua vida pujante e Telma Saraiva nos sonhos cinematográficos e suas pinturas fotográficas, a religiosidade em torno dos santos, dos preceitos e liturgias, a circularidade de pessoas de todos os lados que emana e acabou ao longos dos tempos uma miscigenação de costumes, tradições que foram se espalhando pelas serras e hortos, num sobe e desce desses municípios que cresceram nas buscas e necessidades de sua gente nativa e forasteira que traçaram uma identidade e ressignificação de pertencimento.

Da povoação dos reais donos dessas terras,  as etnias Cariris, Aquijiró, Guariú, Xocó, Quipapaú, entre outros à missão de interiorização ao Siará Grande a ordem da colonização no século XVII, pelas bandeiras portuguesas e brasileiras com a junção religiosa dos capuchinhos no leito do rio Jaguaribe Mirim, a cachoeira da Missão Velha que logo após seguem ao rio Itaitera, onde instalam a Missão Miranda, que prosperou pela fertilidade das terras e que se tornar no século XVIII a Vila Real do Crato, tantas são as histórias que já se enlaçam os contos e fatos desse lugar, entre sesmarias, doações, mortes por terras e territórios,  o terror do genocídio indígena, as culturas de plantios diversos, as guerras de famílias, porém ressalvas, os “berços” não escapam e a educação escolar nesse caso fez a diferença, a ida dos filhos dos abastados a província de Pernambuco, precisamente ao Recife, trouxeram a essa ribeira ideais de independência e de regime republicano, na conservadora Crato, exatamente nesse lugar, existia uma vontade de mudar algo, traçar um novo palco e foi assim, um fato preponderante e que resultou um ato revolucionário, José Martiniano de Alencar, filho de Bárbara de Alencar proclama no Crato, independência do Brasil e o torna em 3 de maio de 1817 um país em apenas em um dia, vale ressaltar que houveram rebordosas, e esse ato deflagrou a prisão de Bárbara e até hoje uma história da coragem feminina que ficou marcado nos anais cearenses. 

A chapada é uma região de várias lutas libertárias e sede de tornar-se junto a essa nação seu domínio libertário e legado, tomar suas rédeas. Ao longo da colonização nesse recinto do Brasil muitas hábitos foram sendo construídos, forjados pelo sofrimento de seu povo, pelas lamentações, a fome e miséria de uns, as dores e chagas da época, as moléstias, o êxodo na busca da cura, da prosperidade, da vida digna, muitas famílias aqui se instalaram e viveram suas ânsias. As narrações, os contos aqui que ouvimos coadunam com um local de encontro, de esperança, onde vamos traçando abraços com diversas formas de linguagens e expressões, inquietudes e anseios de um povo marcado pela esperança de novos bons tempos. Na nossa vivência aqui, ficamos nos interpelando de como não  sair dessa região remexendo as cadeiras com o som dos pífanos, zabumbas, caixas e pratos de metais da banda cabaçal dos irmãos Anicetos descendentes dos Cariris, como não encanta-se com o Reisado dos Caretas do sítio Sassaré de Potengi, ou mesmo,  maravilhar-se com os pinotes do mestre José Aldenir Aguiar, com seu reisado e patrimônio identitário.  Ainda lembrar do Reisado de Couro, de seu Zé Gonçalo, da festiva era em que a pele animal tinha grande valor financeiro, ou sentir a dor das penitências dos seguidores do padre Ibiapina, um evangelista católico que ensinava em sua época santificação dos homens mediante longos períodos de reza e atos de autoflagelação, executados com o intuito da experimentação da dor que Cristo sentiu e, em consequência, alcançarem o perdão pelos seus pecados, esses penitentes do sítio de Cabaceiras, em Barbalha. Não obstante, ter contato com as bordadeiras do Araripe e celebrar o maestro Azul e sua existência na musicalidade da banda Cratense. Mas não saia dessa região sem se envolver com as peças de barro que em alto relevo pulam em sua imaginação da família Cândido do Juazeiro, e após subir o Horto e receber sua benção, ou pela fé ou comoção pelo Padre Cícero,  desça  e entre em total transe com as benzedeiras e benzedores que se espalham no morro, além de ouvir os benignos. 

Pisar nesses lados é sentir uma energia entranhada em todos os lados de fé, renúncia e súplica. Mas vá além e suba a serra e adentre em Nova Olinda, ali você encontre-se com a arte e as histórias de Espedito Seleiro e sua arte em couro, suas técnicas e belezas que envolvem uma vida dedicada a sua arte e amor, além de conhecer a fundação Casa Grande e as histórias desse lugar contadas através do lindo acervo colhido Alemberg Quindins  herdeiro da casa que funciona o aparelho, eles foram pioneiros na pesquisa etnomusical, em busca dos mitos e das lendas da etnia Cariri( kariri) que habitavam a região e catalogaram várias peças, além de fazer um trabalho fantástico com as crianças e os adolescentes da região no sentido de resgate cultural e identidade. Aqui há 100 milhões de anos você ficará também sabendo que essa região tinha um lago que foi invadido,  através de uma separação dos continentes, e o oceano o invadiu, a alta salinidade matou várias espécies e os conservou há séculos, hoje essa região se tornou um centro de estudo poderoso para observar através dos fósseis encontrados a vida do continente sul americano. 

A chapada do Araripe nesses lados tem tantos recantos, recortes, belezas e exuberâncias, natureza que reúne diversidade de espécies da flora e fauna numa explosão dentro dessa mata de transição, nos caminhos da floresta atlântica, do cerrado, da caatinga que traduz uma vasta opulência alimentar trazendo para as mesas dessas ribeiras  não só dos abastados, mas principalmente do povo mais simples,  plantios de sub existência que produzem sob produtos, como os beijús em fornos de lenhas, caldos de cana, rosários de catolés(espécie de colar feito de coquinho), cuscuz feito de massa de arroz, coco ralado e amendoim, peixe tilápia frita servida com baião de dois, manguzá saldado( espécie de feijoada com feijão e milho). 

Aqui na Chapada do Araripe aprendemos que os que muito sabem, ao longo do tempo, a passagem dos ciclos, quando os cabelos prateiam vão se esquecendo, então a sabedoria das serras se impera, o ciclo do aprendizado, e a submisso do universo,  ciclo do saber em outro movimento, com outro prisma e versão, aqui de fato aprendemos que o que muito sabe, nada domina, porque esses altos e baixos trazem a ciência que somos aprendizes eternos da métrica dos tempos. Na chapada os alaridos dos ventos, os ciclos do clima nos trazem a poesia da vida, onde fé é coragem, fome é peleja e luta é o verso da vida. 

Homenagem a Celinha do Cariri, uma grande dama.