TEATRO: Matadores – O Pernambucano Gustavo Falcão e o Cearense Daniel Dias se “enfrentam” na arena


Em uma tourada quem ganha a sua atenção, o Touro ou Toureiro? O que pensa sobre este tipo de esporte-espetáculo? O que você imagina acontecer na arena? E o que você pode levar para a vida sobre esta arte já em fins de não mais existir? Ao se deparar com o texto do venezuelano Rodolfo Santana essas e outras reflexões vem à tona a partir de um diálogo travado entre Florentino, o touro e El Niño, o toureiro. Em meio a um espetáculo já decadente os dois travam uma batalha filosófica sobre o papel de cada um, suas crenças e as razões que os levaram até ali.

A peça, encenada com maestria pelos atores Daniel Dias e Gustavo Falcão, mostra touro e toureiro vendo uma realidade desconhecida por ambos se descortinar frente a seus olhos, desconstruindo tudo o que os levou até ali. Considerando-se protagonistas de uma grande arte o embate ideológico se dá pelos valores transmitidos a cada um e a importância que a tauromaquia tem nos dias atuais. A peça teve estreia nacional no Recife em setembro de 2012, passou por Fortaleza e atualmente está em cartaz no Rio de Janeiro.

Rodolfo Santana

Nascido em Caracas em outubro de 1944, Rodolfo Santana tem grande prestígio no seu país e mundo afora tratando em seus textos de aspectos insólitos e reveladores da sociedade e do homem moderno. Autor de mais de 118 obras, entre peças de teatro, roteiros para cinema e televisão Rodolfo participava ativamente da formação e incentivo a novos atores com conferências em universidades e outras mobilizações.

O encontro

Foi em um sebo, que Daniel Dias encontrou, quase que por acaso, o premiado texto de Rodolfo Santana, Mirando al tenido. Encantando desde a primeira pela história de dois personagens que passaram a vida acreditando em uma arte que já não mais existe. Como o livro, pelo desgaste do tempo, apresentava algumas páginas ilegíveis Daniel acabou entrando em contato com o próprio Rodolfo Santana que além de curioso pelo interesse do ator e autor brasileiro pelo texto e também bastante entusiasmado com a possibilidade de vê-lo transformado em peça. Infelizmente Rodolfo veio a falecer próximo a estreia da peça, mas se vivo estivesse, sem dúvida alguma ficaria feliz e orgulhoso do resultado. 

“A vitória, aqui, é apenas uma questão de ponto de vista. A tauromaquia não passa de um pano de fundo de cores dramáticas para tocar em temas profundos e pertinentes.” (Daniel Dias)

A Tauromaquia


A palavra tauromaquia vem do grego tauromachia e significa combate com touros, mostrando o quanto esta arte é antiga. A maior praça de touros do mundo é a “Plaza de Toros México” localizada na cidade do México e a maior praça europeia é a “Plaza de Toros de las Ventas”, em Madrid. Durante muito tempo o espetáculo atraiu multidões e a arte de combater touros era passada de geração em geração levando famílias inteiras as arenas.

Com o tempo, começou-se  a questionar o esporte e sobre a crueldade humana sob o animal e as touradas foram se extinguindo. A tourada é dividida em três “terços” com objetivos bem definidos, o espetáculo acontece no final da tarde e o público pode comprar seus ingressos nos tendidos de sol ou tendidos de som. No primeiro terço, a “Sorte de Verônicas”, o toureiro e seus auxiliares (a quadrilha) estão armados apenas do capote, um grande pano colorido – geralmente amarelo e fúcsia. O touro, de raça feroz e treinado para a luta, é atraído pelos movimentos do toureiro – chamados de passes. Os mais conhecidos são: a Verônica, o Molinete e Chicuelina. Eles também ajudam a conhecer o temperamento e a forma de ataque do animal.

No “Terço de Varas”, surge o picador. Sobre um cavalo, vendado e protegido com uma manta grossa, o picador traz uma lança que tem na sua extremidade uma lâmina cortante, em forma de “T”. Ele deve dar três estocadas numa região acima do pescoço do animal, deixando-o lento e fazendo-o baixar o pescoço. Depois dele, vem os banderilheiros, que tem a função de enfrentar o touro cara a cara e, num movimento rápido e leve, cravar três pares de bandarilhas, com arpões nas pontas, no dorso do animal. As bandarilhas tem um sistema que permite que elas se quebrem, pra não atrapalhar o toureiro e seus enfeites tem a função de escoar o sangue do touro. O toureiro pode dispensar os ajudantes e optar por ele mesmo cravar as bandarilhas.

No último terço, a “Sorte de Matar”, o toureiro encara o touro com a muleta, o famoso pano vermelho, montado num bastão de madeira. Eles vão se aproximando mais e mais até que o animal fique numa posição adequada para a estocada final. Com uma espada, o toureiro deve atingir uma região especifica do pescoço do animal – conhecido como “olho das agulhas” – provocando a sua morte imediata. Se ele falhar, será utilizado um punhal para sacrificar definitivamente o touro. O júri determina se o toureiro merece o prêmio máximo: as orelhas e a cauda do animal. O público pode, também, pedir o indulto do animal. Neste caso, ele não é sacrificado, suas feridas são tratadas e ele é solto no campo e torna-se reprodutor. Mas isso é raro. Normalmente, os touros mortos tem sua carne vendida em açougues.

DANIEL DIAS


Além de atuar você é Diretor Teatral e ainda escreve. Como se dá seu processo criativo? Cada novo trabalho é uma nova viagem. São novas questões, novos enfoques, novos companheiros, novas dores, novas paixões. E, por isso, não existe um roteiro único, um manual. Há processos mais físicos, outros mais psicológicos. E cada elemento mínimo pode determinar novos caminhos e possibilidades. Em qualquer posição que eu esteja (atuando, dirigindo, escrevendo), eu busco me alimentar do máximo de informações e referências. Eu me cerco de dados, músicas, fotos, filmes, livros… Tudo que me remeta àquele universo que estou moldando interna e externamente. Mas é fundamental saber o que se quer dizer com aquele trabalho, que temas queremos tocar, que mensagem queremos transmitir.

Desde 2008 você assumiu a administração do Teatro João Caetano, o mais antigo palco do Estado do Rio. Agora além de ator, autor, diretor também é gestor! Como dá conta? Quais as dificuldades e quais os bônus? Normalmente, não planejo muito os meus passos, mas tenho a sorte de ir me deparando com alguns desafios muito especiais. Com o João Caetano foi assim. Acho que foi consequência da minha trajetória nos palcos, onde estamos acostumados a lidar com dificuldades e limites de todos os tipos, com criatividade e espírito de equipe, às vezes sem grandes recursos.

Nunca me vi como gestor de um equipamento cultural, muito menos de um dos mais antigos e tradicionais palcos do Brasil, cuja herança se confunde com a própria trajetória das artes no Brasil. Mas ele não é só isso, é preciso conciliar sua vocação para grandes espetáculos com as limitações e a realidade de um equipamento público. No dia a dia tenho que lidar com grandes estrelas, com o espectador anônimo e com o funcionário da limpeza, com a mesma atenção e a mesma dedicação.

O começo foi bem mais difícil e foi necessário me afastar dos palcos mais do que eu gostaria, mas, felizmente, com o tempo, a dinâmica vai se estabelecendo naturalmente e a equipe maravilhosa que o teatro possui foi conhecendo meu jeito de ser e administrar. Hoje posso me afastar um pouco mais, como um filho que você vai deixando caminhar com os próprios pés. Isso me possibilitou conciliar melhor os dois lados: o artista e o gestor. Mas minha agenda ainda é muito definida pela programação do teatro, é inevitável.

Gustavo Falcão, Danilo Gomes, Daniel Dias e o diretor Herson Capri

Em uma entrevista você disse “não há prazer maior do que saber que estou formando o público de teatro do futuro”. Considera essa a sua missão? Quando conseguimos conciliar um processo artístico com a possibilidade de formação de uma consciência crítica, de transformação da realidade e de crescimento do ser humano, é aí que a arte atinge o seu objetivo maior. E quando o teatro se comunica com os jovens, essa experiência é ainda mais profunda. Eu escrevi uma peça em 1998 que era apresentada em escolas, chamava-se “A Terra é Azul”. Recentemente, reencontrei um ator amigo meu, que assistiu à peça quando era estudante, em Fortaleza e ele comentou como a peça marcou a vida dele e de vários outros colegas, que mais tarde se dedicaram ao teatro e hoje são profissionais premiados e reconhecidos. É muito gratificante escutar isso. E, claro, sou fruto de muitas outras influências, também, que me formaram na juventude.

O que você tem do Toureiro? O meu personagem, El Niño, é um toureiro decadente, que ambiciona conquistar seu lugar através das touradas, para ele a grande arte. Ele se dedicou a vida inteira a uma arte que, aos poucos, está agonizando e ele não se dá conta. Talvez eu não seja tão ingênuo quanto ele, mas ainda acredito no teatro e luto por ele. 

GUSTAVO FALCÃO

Sair de Recife e vir para o Rio foi uma decisão estritamente profissional?
Permanecer no Rio após a temporada do espetáculo ‘A Máquina’, no ano de 2001, não foi propriamente uma decisão, já que aconteceu de certa forma por acaso. À época não havia feito um planejamento definido, no plano pessoal ou profissional, de me estabelecer em outra cidade ao final da temporada, imaginando portanto retornar para Recife por volta de junho, quando sairíamos de cartaz. Aconteceu (comigo e com os demais integrantes do elenco da peça) de ser convidado pra um trabalho, em televisão, que se iniciaria logo após o término da temporada. Interpretei o Faísca, na novela ‘As Filhas da Mãe’, do Silvio de Abreu, cuja direção coube a Jorge Fernando, que havia assistido à peça e me convidou para o papel. Outros trabalhos em cinema e teatro sucederam a este, e num processo natural, acabei me estabelecendo definitivamente no Rio. Hoje, tanto no plano profissional (trabalhos sucessivos como ator e a fundação do espaço cultural Lunático, além da produtora com que realizamos ‘Matador’) quanto no pessoal (casei com Juliana, que além de minha mulher se tornou também minha parceira na concepção e direção do espaço), minha vida está intrinsecamente ligada à cidade.

Como hoje, depois de tanto tempo, vê A Máquina? Que ligação tem com esta peça? A Máquina, pra mim, vai além da peça. Quando me refiro a ela estou dizendo de um acontecimento que se tornou um marco pessoal e profissional. Acompanhamos o nascimento do livro, a fonte original, a partir da mente e do coração de Adriana, enquanto a peça era concebida a partir dos fragmentos iniciais por João. Daí que nascemos Antonios para o palco – onde encontrei três grandes amigos, parceiros na arte e na vida, Wagner, Lázaro e Vladimir, trabalhando também com dois amigos e parceiros mais antigos, Felipe e Karina (também minha irmã). E quatro anos depois, um novo nascimento para a versão para o cinema (onde trabalhei com o maior homem de teatro que conheci, Paulo Autran). E todo esse movimento começou dias depois da grande perda que tive na vida, o falecimento de meu pai, e determinou uma transformação radical em minha trajetória – geográfica inclusive, me plantando no Rio. Tudo isso resume um evento daqueles que te marcam a vida num antes e depois, e te lança pra diante.

Fazer teatro precisa de coragem e ousadia? Antes precisa-se de vocação e paixão. Vocação pra alimentar o espírito nos momentos mais duros da carreira – que são muitos e fundamentais – e pra te manter com a cabeça erguida durante os longos momentos de incertezas e buscas inerentes aos processos criativos. E paixão, porque é paixão. Porque te ilumina a alma e mantém brilhante o olhar quando se sobe no palco, e porque te faz encarar qualquer percurso, por mais improvável que pareça, até que se faça o encontro com a platéia. Coragem e ousadia são muito bem vindos: a quem possui estes atributos pode-se intuir um artista especial.

O que você tem do Touro? Florentino fez aguçar em mim a relação com que o instinto e a intuição promovem a reflexão. A profunda sabedoria que o touro apresenta no espetáculo nasce, por paradoxal que pareça, do olhar inocente e sem pré concepções com que ele consegue enxergar o que passa ao seu redor. O que me soa familiar à natureza primordial da humanidade que temos em nós, mas que, por conta das desventuras por que inevitavelmente nos deparamos no decorrer da vida por vezes, escolhemos deixar adormecer. Há nele também certas características que, se não definiria como pontos de extrema identificação, evocam em mim beleza e admiração: a bela relação com a natureza, o equilíbrio entre a brutalidade e a gentileza e a capacidade de se maravilhar com algo relativamente comum.

Serviço:
Sexta a Domingo às 21h / 29 de março a 28 de abril
Teatro Municipal do Jockey
Rua Bartolomeu Mitre, 1100 (Entrada de pedestres)
Rua Mário Ribeiro, 410 (Entrada de automóveis)
Rio de Janeiro
Informações: 021 3114-1286
Para mais informações: www.matador.art.br

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