Há uma avenida em SP lotada com grandes concessionárias de carros importados de alto luxo que não servem, necessariamente para dirigir ou usar, e sim para ter. Aos poucos sou apresentada a esses ícones, suas histórias, seus usos pelos motoristas de Uber e táxi, com quem venho mantendo conversas incríveis. Assim como pescadores esses personagens nos contam histórias impressionantes o que faz deles contadores ou cordelistas urbanos.
Diante de um carro vermelho na vitrine, estacionado sob uma luz linda, pensada para agregar valor ao produto vermelho comentei “ah esse aí é Ferrari”. Um dos meus interlocutores me corrigiu… “não, esse é um Lamborghini”.
O motorista me contou sobre quanto ele faz de velocidade, quanto é maravilhoso, caro, um carro para vida toda etc, etc, etc.
(já tinha ouvido falar esse nome, claro…mas fiquei quieta, um tanto pensativa)
Estávamos em um engarrafamento gigantesco. Diante da situação – completamente paralisada – retruquei: “mas moço, se o trânsito aqui é caótico, tudo aqui em São Paulo fica parado, o povo tem medo de sair dessa área aqui dos Jardins, eles compram esse carro e como é que usar com eficiência na cidade? Pra que tanta velocidade, e aonde estaciona um carro desse? Imagina o valor do IPVA e do seguro?”
Ele mais que depressa me deu uma aula de Antropologia do Consumo.
– Moça quem compra esse carro nem paga seguro, quem vai ter coragem de roubar um carro desse? E mais, quem tem esse carro é pra ter na garagem, não é pra andar, eles andam de táxi, motorista da empresa e helicóptero. Às vezes, vão num evento ou restaurante de dia num fim de semana e logo largam na mão no Valet. Entendeu?
Minha cara caiu no chão e eu fiquei com uma vontade enorme de usar meu disfarce “pertenço aos jardins-porque-casei-com-homem-rico” – o que não é verdade – e ir lá dar uma sondada nessas lojas concessionárias. Mas eu acho que vou esperar colocar minhas lentes de porcelana nos dentes. Rico tem sorriso branco né gente. Quem sabe assim eu disfarço melhor e consigo atenção adequada?
Corta.
Outro momento “Se liga você está em São Paulo”
Saindo de uma reunião num lugar chamado Vila Olímpia me deparo com um barulho intenso vindo do céu. O bairro possui muitos prédios espelhados e grandes torres opulentes, shoppings de alto luxo, muitos seguranças nas portarias e pouca gente nas calçadas, a não ser em horário de almoço. É curioso que em lugares de business se usam muitos espelhos nas janelas que refletem outros prédios ou um rio ou uma ponte, diferente das áreas ricas de moradia que usam cores pasteis nas fachadas (parecendo prédios do velho mundo europeu) e varandas do tipo que ninguém usa, apenas os mascotes e jardins verticais planejados.
Eram mais ou menos umas oito da noite e uns dois helicópteros estavam parados no mesmo ponto. Diante do barulho de muitos helicópteros vindo e voltando, e particularmente esses parados, eu não dei conta e puxei assunto tentando entender o que se passava. Eu estava num Uber parada no engarrafamento.
– Moço, deve estar acontecendo um babado muito forte, tem dois helicópteros parados perto um do outro, nossa, deve estar acontecendo uma parada muito sinistra ali gente, vambora logo desse lugar pelo amor de Deus.
Ele riu, ouviu minha questão e respondeu com uma pergunta:
– A senhora é do Rio né?
Respondi afirmativamente, pois é, a gente sai do rio mas a sociedade de risco não sai da gente. Ele então me acalmou explicando a situação:
– Ah, então, aqui nesse bairro, tá vendo? Tem muito prédio com empresas grandes, escritórios de gente bacana, eles andam de helicóptero, estão esperando momento para pousar e decolar porque aqui é a maior concentração de heliporto da cidade. Fica tranquila, todo dia por aqui é assim mesmo, de manhã cedo é a mesma coisa.
CHOCADA. Tentei me explicar:
– Ah, é que no Rio quando tem essa movimentação toda o helicóptero é da polícia que tá fazendo cerco em alguma favela, periferia, tipo essas equipes da Swat gringa saca? Bem dizer que um é da polícia e o outro do canal de TV que tenta fazer notícia em tempo real pra transformar a vida em seriado de policial. Pega o rato, vai, mata, fuzila, prende. Uhuuu. Audiência sobe.
Depois de 6 meses em SP eu ainda tento compreender a cidade e o jeito de viver as diferenças. As hierarquias sociais são milimetricamente construídas nos grandes e mínimos detalhes, no bairro que se mora, como se locomove, na cor do plástico no cartão de crédito. É uma cidade grande que oprime e exalta na mesma proporção, que revela um Brasil ainda partido sem máscaras ou disfarces como acontecem em cidades mais praianas como Rio de Janeiro, onde o despojamento faz parte da maquiagem socioeconômica.
Jardins têm sido minha nova favela a ser descoberta.
Um adendo
Eu tenho sapatos que gosto de ter e não de usar. Portanto, não tenho qualquer intenção de realizar um julgamento moral em relação ao consumo. Muita gente tem brinquedo que nunca brinca, ingredientes de cozinha que não come… o exercício acima é um momento para pensar nas nossas escolhas e diferenças com a intenção de mulher compreendê-las. Esse é o mood dos novos tempos sem qualquer pressão de mudança, cada um tem o seu processo. Além disso, como antropóloga o “estar lá e cá” é o meu maior papel quanto pesquisadora. A relativização faz parte da artesania intelectual que acontece a partir de uma história.