orja, fole, bigorna, martelos, temperança, fundição, moldes, refino, essa é a atmosfera, tipo A Forja tela do pintor Francisco de Goya, que temos sobre esse ambiente. Entre labaredas, faíscas sendo lançadas em pequenas esferas reluzentes, o homem há milênios vem sendo seduzido por esse minério cinza prateado, magnético, maleável e tenaz que tem, entre outros, a hematita, o cobalto e o níquel em sua composição – o ferro.
Dos egípcios da cidade de El-Gerseh e dos indícios de peças laminadas, da adaga encontrada no invólucro fúnebre do faraó Tutancânon (1336 a.C a 1327 a.C), o ferro já era envolvido numa áurea mítica, devido na época ser um elemento raro, e que era enviado pelos céus, em forma de meteoritos, as pedras dos deuses. Das lendas gregas, como Hefesto – deus do fogo, vulcano, deus dos metais, artesãos e da metalurgia, filho de Zeus e Hera, que mesmo com sua aparência grotesca, ele forjou os instrumentos de defesa dos seres mitológicos e criou em sua bigorna, Pandora, a primeira mulher, o Ógùn, orixá africano – o ferreiro, filho de Oduduwa e Yemu, e que com seus utensílios ajudou aos homens vencerem a natureza. O ferro possibilitou à humanidade, desde sua aparição, a Era do Ferro (1200a.C a 1000a.C), grande desenvolvimento e transformações na sua escala evolutiva.
Armas, instrumentos de defesa e corte, máquinas fabris, objetos e artefatos, placas de aço, material proveniente do ferro e carbono, trouxeram o viés da estrutura preliminar, desse elemento abundante na terra e que com a precisão de seu uso, culminou em grandes resultados. Da Idade Média a época áurea, com o domínio de sua utilização e opulência do artesão, o ferreiro, esse elemento fez de seu manuseio uma necessidade premente dos feudos, e ganhou todos os espaços, com cuteleiros (fabrico de instrumentos de corte) adentrando com exímio uso nas cozinhas, com os espetos e o seu expoente – as facas, facões que facilitaram os cortes e os processos de filetes das caças e insumos, à época.
O tempo passou e os caminhos evolutivos fizeram com que os artesãos, os cuteleiros manuais, que com seus esforços e habilidades artísticas definiam os produtos, darem espaço às indústrias que dominaram a prática de muitos forjadores, e com auxílio de máquinas, começaram a produzir em larga escala os objetos, sob comandos, hoje de computadores. Mas, como um grito, um desejo dos deuses, mesmo tendo os muitos avanços trazidos, as benesses diante de toda a tecnologia e aparelhos de procissão, as necessidades vindas da cozinha, dos cozinheiros que têm em seus ofícios um ato de fé, o desejo quase impositivo, se fez necessário a volta dos cuteleiros, dos forjadores que com seu maior instrumento – as mãos e a sensibilidade, tramassem objetos únicos, joias imbuídas de corte milimétrico e milenar oriental, esculpidos entre marteladas quase sincronizadas como uma sinfonia. Assim, no nordeste italiano, na região de Friuli Venezia Giuli, na província de Pordenone em Maniago, local de blacksmith (ferreiros) está Michele Massaro que fez de seu hobby, seu ofício. Por amor, respeito à tradição manual, ele vive a forjar num recinto amplo e paredes rústicas, cobertas pela fuligem do ferro, entremeados por frestas de raios solares que vertem em espaços entreabertos e das faíscas vindas das chamas do fogo acesso, mas melodicamente cheio de acordes finos e latentes de uma arte que por ele não foi perdida – e modelar o aço até trazer uma peça de perfeito corte. As facas produzidas nesse espaço, pelas mãos habilidosas de Massaro tem vida, vivacidade, contexto, traçam o universo por ele vivido, seus costumes familiares. Sua maior preocupação é aprimorar os “sinais da forja, e não eliminá-los”. São esses elementos que formam sua marca, a marca de seu lugar, Mariago, lâminas com cortes primorosos, harmônicos entre a racionalidade, a limpeza e a simplicidade.
A GASTRONOMIA COMO INSPIRAÇÃO
Inspirado na vivência de cozinheiros, como Alain Ducasse, Enrico Crippa, Yoji Tokuyoshi, Emanuele Scarello, Antonia Klugman, Fabio Pisani e Alessandro Negrini, entre outros, ele observou como a faca se comporta ante o manuseio nas práticas e afazeres de corte. Assim, ele incorporou a sua técnica a importância anatômica entre o instrumento e seu condutor, como uma extensão um do outro.
Entrar nesse universo, é voltar às eras do século XV, do Conde Nicolò di Mariago, é senti os vales, as arquiteturas rurais, os cursos de águas límpidas e bosques que ainda permanecem lá, intactos. É estar entre os insumos frescos, os trufas que por ali desfilam imponentes, cercados de um jardim vistoso – a inspiração vem da contemplação. Entre goles de café, um ou três cigarros, e horas incansáveis debruçados sobre a bigorna e o tilintar dos martelos, a arte da liga de aço formatada em sonhos de chefs renomeados, se materializam. O processo não é rápido, e nem poderia ser, há uma fila de espera de três anos, para obter essas relíquias, mas o resultado é desvelador. Poder trabalhar com um instrumento feito com um capricho único, onde o intento é satisfazer o cumprimento de desempenhar melhor seu objetivo, é verdadeiramente, implacável.
Tecer com Michele e ver que por trás do profissional, existe o homem obstinado, relutante e que toma com as mãos, no sentido mais que figurado, o legítimo legado de todos que o antecederam, que eleva a importância de ofício tão tradicional, mas que sabe dosar com a modernidade e avanços, sem condenar os anos e seus antecedentes. Estar com esse homem é beber um chá gelado, ou optar por um excelente destilado, o papa dos deles, Gianni Capovilla. É saber que sua primazia vem de intensos diálogos e trocas com diversos amigos talentosos que fez através de sua busca.
Ver essa história tendo como pano de fundo esse homem, mostra que para se ter excelência dentro de qualquer local, e se falando do ato de cozinhar, é preciso instrumentos que te permitam levar ao melhor resultado, que possibilitem precisas maneiras de se chegar a cortes sem a destruição do insumo, que tragam a estética e o sabor associado, pela miraculosa posição e detalhe de filetar.
Obter precisão, perfeição, também é um ato quase de uma obsessão, da procura dos que querem fazer da profissão um manifesto de amor e conhecimento, e adentrar em um túnel, onde o foco de luz o leva a um único caminho, a evolução, e como diz, Michele ” A perfeição é minha condenação”. E possivelmente, a nossa, amantes da boa cozinha.