Recentemente o público amou odiar o ator Flávio Tolezani quando ele interpretava o personagem Vinicius, o polêmico pedófilo na novela “O Outro lado do Paraíso”. Talvez um divisor de águas em sua carreira na TV. “Acho que o tempo é que pode definir um divisor de águas. Eu só posso dizer que esse trabalho ficou marcado em mim. Ficou muita coisa boa. Muita mesmo”, comentou Flávio. Mesmo estando muito confortável com seus personagens na TV o que talvez muita gente não saiba é que é no teatro que a maior parte da trajetória de Flávio aconteceu (até agora). Quase formado em Administração, por sorte (nossa também) ele largou o curso e foi se realizar no teatro e na rádio, onde começou de fato sua carreira. Carreira essa que ele segue com muita dedicação e sem pausa. Mal acabou sua participação ele já ensaia a volta para o espetáculo “Carmen”, que deve ficar em cartaz até o final do ano. Enquanto isso uma Flávio deu uma pausa para conversar e posar para a MENSCH.
Flavio é difícil começar essa entrevista sem falar logo de Vinícius. Considera um divisor de águas na sua carreira? O que ficou de bom de ter feito esse trabalho? Acho que o tempo é que pode definir um divisor de águas. Eu só posso dizer que esse trabalho ficou marcado em mim. Ficou muita coisa boa. Muita mesmo. Vou falar de algumas aqui, mas com certeza, uma grande parte ficará de fora. Em primeiro lugar eu carrego comigo tudo que aprendi com cada colega que contracenei. Foram muitos. E alguns grandes ídolos, referências. Ficou de bom a positiva repercussão da história que estávamos contando. O assunto passou a ser discutido e as vítimas se encorajaram. Foi sim uma mudança de paradigma. Ficou a sensação de que valeu o esforço em arriscar um tema tão complexo e perigoso. Valeu a pena.
O personagem e a cena do julgamento foi um dos grandes destaques de toda a novela. Como foi para você interpretar esse personagem? Passei por todo tipo de sensação ao construir esse Vinicius e interpretá-lo. Foi preciso tentar decifrar o pensamento de um psicopata. A lógica de um cara como ele é completamente distorcida e diferente de uma pessoa comum. O outro não existe para ele. Difícil de acreditar, mas existe gente assim. A cena do julgamento foi o ápice dessa história e representa também a forma como todo esse trabalho foi construído para se chegar ao resultado final, ou seja, o que vai para o ar. Foram dois dias inteiros de gravação só para a cena do julgamento. Quase todo o elenco presente, quase toda a equipe e todos numa dedicação plena. A condução do Maurinho foi precisa, sensível e generosa. O texto impecável na construção do Walcyr e de seus colaboradores. A interpretação de cada um e o jogo que se estabeleceu entre o elenco e entre a equipe. Enfim, foi tudo muito intenso. Muito.
Você tem uma filha de 13 anos e seu personagem era um perigo para crianças. Era difícil imaginar certas cenas por ser um pai de criança dessa idade? Você chegou a alerta-la sobre os “Vinicius” da vida? Não sei dizer se seria mais fácil. Acho que seria difícil de qualquer jeito. O que o Vinicius fazia era desumano numa medida tão intensa que ultrapassa qualquer possibilidade de amenização. Antes de começar a gravar eu conversei com a Ana Clara sobre meu personagem. Eu queria dividir com ela o que seria meu novo trabalho, como sempre faço, mas nesse caso especifico eu quis alertá-la também para o risco de reações negativas ao personagem. Era uma preocupação. Hoje a Ana é muito madura e a conversa é muito franca. Quando ela era mais nova as coisas tinham que ser faladas em outros termos e nunca falamos especificamente disso, mas tenho certeza que no “pacote” dos cuidados e alertas esse assunto estava implícito.
O ator sempre procura defender o seu personagem por pior caráter que ele tenha. No caso de Vinicius é um caso perdido né?! Como foi desapegar dele? Sim, era um caso perdido! (risos). De qualquer forma era preciso, se não defender, pelo menos não criticar suas ações no momento da realização das cenas. Era realmente muito difícil e demandou sempre muita concentração. Todos que faziam parte desse núcleo, ou que passaram por ele, sempre trataram o tema de forma muito respeitosa. A entrega do coletivo foi enorme. Acho que a defesa da causa foi o que mobilizou a todos e a mim. Desapegar dele não foi o problema. Difícil é desapegar de um cotidiano tão intenso com parceiros maravilhosos.
Acredito que esse tipo de personagem é tudo que um ator quer. Um grande desafio e oportunidade de mostrar o talento. O que mais te desafia como ator? O que me desafia? Isso. Poder desvendar os impulsos mais diversos de seres humanos.
Você chegou a cursar administração e economia mas largou tudo para entrar para o teatro. Quando percebeu que era a carreira de ator que você queria para a vida? A vontade pelo teatro nasceu antes de ingressar na Faculdade de Economia. Fiz um curso livre de teatro, coisa curta, na época do cursinho. Apesar do gosto pela coisa eu não acreditava que poderia seguir nessa área por causa da minha timidez. Minha primeira experiência se encerrou por ai. Depois de alguns meses entrei no curso de economia da FEA. As coisas já se embaralham um pouco na minha memória. Sei dizer o momento em que decidi que não seguiria a faculdade de economia. No segundo ano do curso eu comecei a me distanciar dos colegas que foram fazer estágio e se realizavam. Percebi que não era o que queria pra mim, que nem saberia fazer aquilo. Larguei. Decidi prestar o exame para fazer o curso profissionalizante de teatro e fui aceito. No ano seguinte eu transferi a minha matricula da FEA para o curso de administração que eu tentaria levar junto com o curso de ator no Teatro Escola Célia Helena. Fiz isso por mais um ano. Abandonei administração e continuei no teatro. No final do curso de teatro eu ainda ingressei na Faculdade de Comunicação – Rádio e TV. Me formei então em teatro e Rádio e TV.
Você começou pelo teatro e por peças densas como “Ensaio sobre uma cegueira”, “Otelo”, “Vestido de Noiva” e tantos outros mais fortes. Foi uma predileção sua ou foram surgindo? É verdade, né. Muita coisa densa. Acho que me enquadro mais nesse perfil: denso, dramático. (risos)! Ou me enquadraram! De fato, nunca tinha pensado nisso, as coisas aconteceram assim.
Seus mais recentes trabalhos no teatro foram os musicais “Roque Santeiro” e “Carmen”. Musical é um gênero que te desafia mais? Pretende fazer mais musicais? Cada gênero tem o seu desafio, claro que tem. Mas o que me instiga é o que vai ser dito com aquela obra e não o gênero em si. Pretendo fazer muito teatro.
Sua estreia na TV foi em 2002 em “A Favorita”, mas foi em “Verdades Secretas”, em 2015, que você teve um grande destaque por conta do drogado Roy. E em 2016 veio um personagem leve em “Êta Mundo Bom”. Papéis mais dramáticos e mais leves. O que representaram para você? Guardo todos com muito carinho. Mas o Roy representa algo muito bom na minha vida. E tenho a satisfação de ter lidado, mais uma vez, com temas perturbadores, com tabus que precisam ser trazidos à luz. Verdades Secretas foi a concretização de parcerias que viriam a se repetir em outros trabalhos como, por exemplo, Walcyr Carrasco, Maurinho e toda a direção, Dayse Teixeira… Em “Êta Mundo Bom”, uma trama das 18 hrs em que tudo era mais leve, o personagem acabou sendo um contraponto ao que tinha acabado de fazer em VS. Apesar de que, perto do final, o Dr. Araújo teve umas complicações dramáticas pesadas. Acho que não me livro desse peso mesmo! (risos)
Você parece ser um ator desencanado com fama e que procura apenas fazer sucesso em seus trabalhos. Como você ver isso de fama x sucesso x talento, que hoje em dia se misturam muito? Do meu ponto de vista a fama é uma consequência do trabalho, é reconhecimento. Sucesso, para mim, é estar feliz consigo. É fazer o que quer e do jeito que sonhou. Talento é suor! A dependência da fama me preocupa muito, pois é passageira. O trabalho é sólido e permanece. A busca da fama por si só é perigosa porque não tem lastro. Evapora.
Você é um homem vaidoso (como ator e como homem)? Quando e como? Já fui bastante, mas acho que hoje não sou muito. Aliás, às vezes preciso me policiar para não me largar demais. Meu dia a dia gosta de um chinelo. Agora, em ocasiões muito específicas eu gosto de me arrumar, de caprichar. A idade traz uma simplicidade no olhar que é muito libertadora. Um detalhe, um elemento é mais importante do que todo o resto.
Como ator acha que consegue fazer algo como cidadão? Sim. A função do artista é espelhar a sociedade e o ser humano na sua época. Mostrar o que está errado. É apontar caminhos, possibilidades. Acho que cumpro sim meu papel cidadão através da arte, apesar de estarmos em um momento muito delicado em que o artista não é bem-visto pela sociedade. A classe artística sofreu um golpe muito forte nos últimos anos e passou a ser ainda mais desvalorizada nesse momento de polarização política e extremismo ideológico. O artista brasileiro vive uma constante luta para sobreviver, para que a arte permaneça, para que a classe continue a existir.
O que te tira do sério? Fofoca e trabalho preguiçoso.
Nas horas vagas o que faz sua cabeça? Minha cabeça pensa no trabalho. Brincadeira! Mas acabo fazendo muitas coisas relacionadas à arte, que não deixa de ser inspiração para o que estou fazendo ou para um próximo projeto.
Quais os próximos passos? Pode nos adiantar algo? Volto ao cartaz com o espetáculo “Carmen” que faço junto com minha esposa, companheira e parceira Natalia Gonsales. Gosto de estar no palco. Gosto mais ainda de estar ao lado dela. Faremos uma temporada em São Paulo no Tucarena e outra no Rio de Janeiro a partir de setembro no teatro Poeira.
Fotos Marcelo Auge @augem
Direção de produção Ju Hirschmann @juhirschmann
Styling Celso Ieiri @celsoieiri
Produção de cena Rodrigo Ludscher @rod_lud
Beleza Gil Darf @gildarf
Agradecimentos: Ermenegildo Zegna @zegnaofficial, Riachuelo @riachuelo, Youcom @lojayoucom, Calvin Klein @calvinkleinbrasil, VR @vrcollezioni, Cachecool @cachecool_, IWC @iwcwatches, Guto Köech @gutokoech Zapalla @zapalla_
Agradecimento especial: V’naia Institute @vnaiainstitute
Ben Aron @ben_aron