Por Nadezhda Bezerra / Fotos Gleeson Pauçino / Styling Patrícia Zuffa
u até poderia dizer que Selton Mello cresceu aos olhos dos telespectadores, já que começou a vida artística na infância. Mas não é bem assim. Discreto e “na dele”, a verdade é que a arte de Selton cresceu e se expandiu bem diante da sorte, que alguns de nós tem, de vir acompanhando tudo em tempo real. Novelas, filmes, clipes, atuando, produzindo ou dirigindo, Selton é versátil, criativo. É, sobretudo, entregue ao que acredita e ama. Por isso, talvez esse toque de Midas, esse brilho em tudo em que está inserido.
Sua vida não está por aí escancarada em sites e revistas de fofoca, mas Selton fala de si com elegância e originalidade, através de seus trabalhos mais autorais. O filme O Palhaço é um exemplo disso “Esse filme é um retrato da minha alma. E, naquele momento, minha alma estava fraturada. Eu tinha muitas dúvidas”. É preciso coragem, sensibilidade e um olhar empático para fazer algo pessoal que possa reverberar em outras pessoas. Assim como também fez em seu livro Eu me lembro. É preciso mais que tudo talento. Isso Selton tem de sobra e pode ser conferido em O Auto da Compadecida 2 e Ainda estou aqui, seus filmes mais recentes e aqui nessas fotos feitas em Londres, durante a divulgação do filme de Walter Salles.
Pegando carona em uma de suas frases “Quando você tem algo muito pessoal pra dizer e tem dúvida disso, faça, porque vai encontrar gente que está sentindo algo parecido”. Eu peço licença a Selton e à MENSCH para dizer que sonhem, leitores e leitoras – em algum momento, vocês viverão a realização. Olha eu aqui tendo a alegria de ter entrevistado alguém de quem sou fã desde a infância. Isso eu vou lembrar para sempre.
Lá vem o Auto da Compadecida 2. Como recebeu essa ideia de continuação, dá medo mexer em um sucesso tão grande e intenso como foi o primeiro filme ou é o contrário? Não, zero medo. O Auto da Compadecida 2 é motivo de gratidão e alegria. Não é todo ator que tem a oportunidade de reencontrar o personagem mais icônico e popular da vida, como o Chicó é pra mim. Foi lindo reviver isso, 20 anos depois. Todo mundo, em qualquer parte do Brasil, independentemente da geração e da classe social, conhece o Chicó. Inclusive, vejo que tem uma geração mais jovem que conhece os personagens, mas nunca viu o filme. Então, acho que o Auto 2 pode motivar essa geração a assistir ao primeiro e, a partir daí, conhecer o livro de Ariano Suassuna, mestre pelo qual tenho imensa gratidão pelo trabalho que deixou conosco. É uma forma de contextualizar essa obra clássica nos dias de hoje e de oferecer um carinho para o nosso público, que continuou fã da dupla João Grilo e Chicó durante esses 20 anos. Por outro lado, algumas pessoas vão preferir o primeiro, e tudo bem! O primeiro já é um clássico e estará sempre disponível. O segundo, foi feito de uma forma linda e vem para explorar um novo lugar na história do cinema brasileiro. Estou muito empolgado para começar a exibir o filme para o nosso público tão apaixonado, no dia 25 de dezembro.
Como foi reviver o Chicó e a amizade com João Grilo? Foi muito curioso porque era como se eu só precisasse colocar a roupa e virava o Chicó de novo. E ele continua sendo um frouxo, o maior frouxo que ele mesmo já conheceu (risos). Eu adoro isso nele. Mas claro que a maturidade chegou e ele terá que lidar com algumas questões da vida amorosa e com as trapalhadas que o João Grilo arruma. Os dois continuam amigos, mas ficaram sem se ver durante esse tempo. O momento do reencontro é lindo, emocionante, e representa também o reencontro com o nosso público, que também faz parte dessa dupla.
Falando em amizade, como é a sua relação com o Matheus Nachtergaele? Eu e o Matheus nos entendemos instintivamente em cena. Ele faz um negócio e eu faço outro que encaixa, parece que a gente nasceu pra fazer esses personagens. Nos complementamos, sem combinar. O curioso é que, durante esse tempo, não trabalhamos juntos e muitas águas rolaram. Em todos os intervalos a gente sentava em um canto e colocávamos os assuntos em dia. Ele virou diretor, eu também. Então, pudemos compartilhar nossas experiências, fofocar, e claro, torcer um pelo outro.
Ariano Suassuna tem algumas frases geniais, conseguiria escolher alguma que goste muito e dizer o porquê? Ah, vou dizer uma bem simples, mas que eu adoro “Não sou nem otimista, nem pessimista. Sou um realista esperançoso”.
“Eu me lembro”. Você também. Do que a gente nunca deve esquecer? A gente nunca deve esquecer de onde a gente veio, da nossa base. Eu me lembro claramente da minha raiz. Minha estrutura é simples e muito linda, uma mistura de Minas com São Paulo. Em Minas, vivi um lado bem roça, terra, cavalo, de pegar fruta no pé e estar em contato com a natureza. Morando em São Paulo, vivi o lado da cidade grande, metrópole, loucura, trânsito, mas muita informação também importante. Então, essa mistura foi fundamental para a minha formação. Então, eu me lembro de onde eu vim, eu me lembro que nasci em Passos, eu me lembro da história dos meus pais, eu sei a luta deles. Eu sei que meu pai foi bancário e ralou muito, eu sei que minha mãe foi uma dona de casa que se dedicou à família, sei de todo o esforço feito. Então, eu me lembro de coisas muito bonitas e que eu não quero esquecer. Minha mãe faleceu neste ano e essa é uma das primeiras entrevistas que eu dou depois da perda da minha mãe, que é a pessoa mais importante da minha vida. Ela é a protagonista do meu livro Eu me Lembro e sofreu durante 12 anos com Alzheimer. Então, eu me lembro para poder recuperar a memória dela, que é a minha também, que é a minha história.
Escrever um livro era um sonho ou foi acontecendo? Foi acontecendo, não era um sonho. Quando eu cheguei na pandemia, quando todo mundo fez um balanço da vida, teve também um momento de falar “caramba, estou chegando em 40 anos de carreira, isso é muito tempo, muita estrada. Quem sabe um livro? E se eu chamar 40 colegas para me fazer perguntas?”. E foi surgindo essa ideia e eu já fui pedindo para pessoas que admiro me enviarem perguntas. Assim, foi nascendo esse livro, para não esquecer de onde eu vim, onde eu estou e para onde eu quero ir.
Você passa a ideia de quem sabe lidar com o tempo (ou aprendeu), não tem pressa, nem segue a fila, faz seu próprio caminho. É isso mesmo? É isso mesmo, mas também tenho muita ansiedade e muita pressa. Eu sou uma mistura. Eu acho que as pessoas me conhecem como uma figura mais calma, o que sou, mas internamente eu também sou muito turbulento, eu penso muito, eu faço muita coisa, eu frito, eu fico pensando em 200 mil coisas ao mesmo tempo. Eu sou muito criativo, estou escrevendo um negócio e querendo dirigir outro, e já de olho no outro troço. Minha cabeça é ativa até demais. Mas sim, também aprendi a lidar com o tempo, acho que tô envelhecendo bem dentro do que eu acho que é envelhecer bem, que é estar com saúde física, mental, psicológica. Sou honesto comigo, com as minhas escolhas, com o meu caminho. Tá sendo bom passar por tudo que eu passei e tenho passado. Tô gostando de seguir minha estrada.
Seu livro é um presente, um legado, uma homenagem ou a necessidade de falar pela escrita? E como foi o processo de escrever, revisar e publicar? Eu acho que o meu livro é um presente para os fãs. Quem admira o meu trabalho ou apenas é uma pessoa sensível, pode se identificar de alguma forma. Sobre legado, eu vejo que nos Estados Unidos existe uma tradição de escrever biografias, o que eu acho legal pensando nas futuras gerações que vão se inspirar, se enxergar ou não se enxergar e querer fazer exatamente o contrário. Também acho que foi uma oportunidade de homenagear as pessoas que me entrevistaram. Eu homenageei muita gente que está aqui, pessoas que passaram pela minha vida, e outras que já foram embora. O processo de escrever foi longo, foi difícil, não é uma coisa simples, não. Foi difícil, mas foi um processo de cura também. Isso encontrou leitores, pessoas que se identificaram. E o livro segue sendo muito vendido. Agora no Natal, a gente tem recebido muitos pedidos das livrarias. É verdade, é um bom presente de Natal mesmo, principalmente com Ainda Estou Aqui em cartaz e O Auto da Compadecida 2, na sequência. Taí, dê de presente este livro, pode emocionar alguém que lê, e isso, hoje em dia, não é pouca coisa.
“Ainda estou aqui”. Como esse filme lhe atravessa e como você espera ou imagina que atravesse as pessoas? Ah, esse filme é muito comovente. Atravessa as pessoas do mundo inteiro. O filme acabou de estrear e as pessoas estão saindo das sessões muito comovidas. Tá muito bonito ver as sessões lotadas, filas para assistir e aplausos espontâneos. É um filme sobre memória, assim como Eu me Lembro é um livro sobre a memória da minha vida, da minha família. Minha mãe morreu sofrendo de Alzheimer, que comprometeu exatamente a memória dela. O fim do filme com a Fernanda Montenegro é avassalador pra mim, porque vi minha mãe ali. Então, esse filme começa como uma viagem pessoal do Walter Salles, e se transformou numa viagem pessoal minha, da Fernanda (Torres) e do público, que é co-autor do filme.
O que sentiu quando leu o roteiro? Já havia lido o livro? Eu achei o roteiro extraordinário. Não tinha lido o livro ainda. Eu sou fã do Marcelo Rubens Paiva, sou de uma geração absolutamente influenciada pelo Feliz Ano Velho. Foi uma honra ter interpretado o pai dele. Eu achei o roteiro extraordinário, o livro extraordinário e a chance de eternizar o Rubens Paiva no cinema, uma coisa extraordinária. Retomar a parceria com a Fernanda Torres, é sempre uma aventura extraordinária. Trabalhar com Walter Salles, é uma honra porque realmente é um dos maiores diretores do mundo, não só do Brasil. Tenho viajado com ele, tenho visto o respeito que as pessoas têm com ele e com a obra dele. Está sendo uma honra, uma coisa bonita de se viver.
Qual seria um prêmio maior que o Oscar? Eu acho que o que está acontecendo com o filme já é um prêmio lindo, porque as pessoas estão lotando os cinemas numa época em que tudo é streaming. Fernanda Montenegro fala que os teatros estão lotados, e agora os cinemas estão lotados com Ainda Estou Aqui, e na sequência vem o Auto Da Compadecida 2, que vai ser outro grande acontecimento, outro grande encontro de um filme com o público. Então, acho que um prêmio grande é o filme ser visto, ser sentido. Espero que as pessoas possam voltar para casa pensando em alguma coisa, sentindo alguma coisa. Eu gosto de fazer o público sentir algo, isso é bonito.
Como tem sido viver a repercussão do filme pelo mundo? Eu nunca fiz um filme que viajou tanto pelo mundo. Então, tem sido uma coisa comovente e absolutamente nova para mim. Eu parei de contar, mas eu fiz uns 30 filmes ou mais, e nenhum foi tão visto, ovacionado e exibido em festivais importantes como Ainda Estou Aqui. Esse é o meu filme com a repercussão mais ampla. Isso é interessante porque desperta no público que não conhece a gente, o desejo de ver outros filmes nossos. Agora, as pessoas vão descobrir a Nanda fazendo Casa de Areia, Inocência, vão me descobrir em O Cheiro do Ralo, Meu Nome Não é Johnny, O Palhaço, O Filme da Minha Vida, que foi o último filme que dirigi, e muitos outros.
Muito em breve, mais uma temporada de Sessão de Terapia. Qual o balanço que faz da série até aqui e a relação de quando concebeu o projeto e o que alcançou nesses anos de exibição? Eu amo Sessão de Terapia porque posso desmistificar toda a ignorância que existe sobre terapia. É uma série originalmente israelense com duas temporadas que teve o formato vendido para o mundo todo. O único lugar do mundo que chegou a seis temporadas e ainda por cima trocou o terapeuta a partir da terceira temporada, foi o Brasil. Curioso, porque o Brasil é supostamente o país da praia e do sorriso fácil. Curioso, né? Engraçado não ter chegado em seis temporadas na Argentina ou em Londres, por exemplo. Então, isso diz muito sobre o Brasil. Acho fascinante essa série fazer tanto sucesso no Brasil. Eu como realizador, diretor, ator e fã da psicanálise, amo esse trabalho.
Você costuma dizer que o tema da saúde mental lhe é muito caro, por que? E, em sua opinião, por que as pessoas, em especial homens, resistem tanto a essa entrega de autoconhecimento, cuidado e cura? Os homens, historicamente, são mais atrasados, né? O machismo trata de questões de saúde como se fossem frescura. Para mim, o tema da saúde mental é muito caro porque eu já lutei contra a depressão. Eu sou uma pessoa dada à melancolia, eu sou um camarada mais fechado, não sei se essa é minha natureza por ter nascido no meio de Minas Gerais, no meio daquelas montanhas fechadas. O fato é que eu tenho uma tendência à melancolia, que é fonte de inspiração, mas também pode me levar a um lado muito perigoso – por isso, preciso ter um cuidado grande. Então, eu sei a importância que a terapia tem na minha vida. Essa série é uma carta de amor aos terapeutas e às pessoas que cuidam da saúde mental.
O que podemos esperar dessa próxima temporada? Podem esperar humanidade em abundância, personagens comoventes e o meu amor por ela. Quando você tem um amor por algo, isso vai para a tela, toca as pessoas do outro lado. Eu tô doido pra botar a mão na massa. A gente vai fazer no primeiro semestre de 2025, certamente vai ser uma temporada muito especial.
Você tem mais de 4 milhões de seguidores no Instagram, como é sua relação com as redes sociais, qual o papel delas no seu dia a dia? Acredita na relevância profissional delas e que isso possa ser um critério de seleção para elenco? Sem dúvidas é uma plataforma muito interessante, com muitas possibilidades. Eu me vejo como uma pessoa mais discreta, não gosto de compartilhar detalhes da minha vida online. Na verdade, criei um perfil porque surgiu um fake se passando por mim e comentando na publicação de amigos. Foi a deixa pra eu começar a usar. Hoje vejo que a presença online é bacana pra divulgar trabalhos e ver o que os amigos têm feito. Como não compartilho muito sobre minha vida pessoal, comecei a publicar coisas engraçadas. Pra me divertir, pra alegrar o dia de alguém. Como diretor não escalo um ator baseado em número de seguidores, quero saber o que ele carrega no coração.
Eu amo o filme O Palhaço. Acho um dos mais lindos que existe. As questões de identidade, de memória, pertencimento e experimento. Tudo isso em meio ao universo do circo. Como surgiu a ideia do filme, como foi escrever o roteiro e em que momento você leu e disse: tá pronto, hora de por no mundo? Eu também amo O Palhaço. Esse filme é um retrato da minha alma. E naquele momento, minha alma estava fraturada. Eu tinha muitas dúvidas. Foi um momento em que pensei “Será que eu sou ator mesmo? Por que eu estou fazendo isso desde criança? Será que isso é uma coisa boa, uma bênção, ou é uma sina, algo ruim?”. No meio de um turbilhão emocional de algo que estava sendo doloroso, vem a arte, que transforma isso em algo. Me veio essa imagem de um palhaço, mas poderia ter feito o mesmo filme dentro do mundo corporativo com um advogado, ou com um cara que é médico e tem um pai médico. Então, ele fica questionando se ele é médico mesmo. É um filme muito do coração e foi o meu filme que tocou mais as pessoas. Quando você tem algo muito pessoal pra dizer e tem dúvida disso, faça-o, porque vai encontrar gente que está sentindo algo parecido. É a maior lição que eu tenho de O Palhaço. É um filme simples, sem ser simplório, é um filme certeiro no coração, mas não feito para acertar o coração. Ele tem alma, é sincero e é honesto com o que eu sentia. É muito bonito ver o que aconteceu com ele. Muito bom poder falar dele aqui na entrevista, também.
Todos temos um tanto do palhaço Benjamim? Às vezes achamos que perdemos a graça? E como podemos recuperar a graça de ser quem somos? Eu sou Benjaminzíssimo, Benjaminzaço (risos). Estou achando sempre que estou perdendo a graça. Aí eu acho que perdi, aí vou lá e construo de novo, levanto outra pedra, me sinto forte de novo, daqui a pouco duvido de novo. Assim é a vida, pelo menos a minha. Acho que isso é a minha máquina emocional, muito sensível, que gira e faz as coisas acontecerem, seja um livro, um filme, uma performance. Acho que podemos recuperar a graça de várias formas: contato com a natureza, terapia, religiosidade, seja ela qual for a sua. Ser honesto com você, ouvir seu corpo, ouvir sua mente, ouvir o que você está sentindo e o que precisa ajustar… enfrentar seus demônios. Muitos demônios que tenho já são meus amiguinhos e eu já convivo com eles. Eles ficam ali num canto, aí daqui a pouco eles vêm e eu falo “lá vem vocês de novo, diga lá”. Aí bato um papo com eles e digo “senta lá de novo que não é momento de ficar me atrapalhando” (risos). Autoconhecimento é uma coisa fundamental. Acho que temos aqui uma entrevista, né? Eu nunca sei dar entrevista, não sei para que serve exatamente, mas acho que tem gente que vai ler e vai se identificar. Acho que é por isso que as entrevistas existem. Então, obrigado por essa entrevista. Tudo de bom para quem leu essas linhas!