Ana Cañas nos presenteou com um ensaio emblemático e deu à MENSCH a honra de assinar sua primeira capa de revista. Ousada, se soltou nas fotos e durante a entrevista em que falou sobre política, sobrevivência, bulimia, feminismo e claro Belchior. Foi visceral, intensa, real. Com vocês… Um furacão chamado Ana Cãnas!
Por Patrícia Alves
Quando a música entrou em sua vida? Como foi o inicio da carreira? A música entrou na minha vida por total necessidade de sobrevivência. Na época, eu morava num pensionato e quase não tinha dinheiro para comer. Distribuía panfletos nos faróis em São Paulo e amostra grátis nos supermercados. Um dia, uma amigo me ligou me perguntando se eu sabia cantar e eu pensei “se eu aprender a cantar, vou poder comer”. E foi assim que eu fiz um teste num bar, entrei numa fila com mais trinta cantoras e, felizmente, passei. O repertório era formado por canções da Billie Holiday e Ella Fitzgerald. Aquele dia mudou minha vida para sempre. Quando cantei uma canção da Billie pensei “quero fazer isso até o último dia da minha vida!”. Foi um presente do universo esse entendimento e comoção, há 20 anos.
Quem são suas maiores influências na música e na vida? Rita Lee, Elis Regina, Belchior, Nina Simone e Gilberto Gil. Fora da música, Hilda Hilst, Agnès Varda, Simone de Beauvoir e Chico Xavier.
Muitas de suas músicas têm um forte cunho político e levantam pautas importantíssimas para a sociedade. Como você vê a repercussão de suas declarações para tantas gerações que ainda são oprimidas por uma sociedade patriarcal? Tudo que expresso vem de um lugar profundo de vivência e observação. Coração mesmo. Me sinto, aos 42 anos, uma mulher mais livre das amarras sociais e de pré-conceitos, construídos para opressão e manutenção de privilégios e posições de poder. Sinto que, por falar abertamente sobre temas que ainda são tabus, como a sexualidade feminina, isso ressoa em outras mulheres que buscam o mesmo caminho e entendimento. É bonito sentir a força dessa corrente de afeto, mas o saber-se é diário e levamos a vida toda aprendendo – é uma jornada sem fim. Há muito que se conquistar ainda quando falamos nos direitos das mulheres, mulheres pretas, trans. Estamos caminhando, mas ainda distantes da equidade real.
O quanto isso é importante para você como cantora e cidadã? Fale um pouco dessa função como artista. Concordo muito com Nina Simone que dizia que o “artista reflete o seu tempo”. Nesse sentido, expor na escolha de repertório e nas entrevistas temas que me tocam diretamente e que são espelho para tantas outras reflexões, é uma decisão que se aplica também subjetivamente. Nesse momento, cantar Belchior (extremamente atual, poético e filosófico) ressignificou o meu canto, a minha jornada e também foi um presente.
Com a música e single Respeita você reuniu nada menos que 86 mulheres em prol da equidade de gênero e combate à violência contra a mulher. Como foi isso e o que representou para você? Foi um momento forte e precioso (2017). Escolhi falar nessa música sobre um assédio que sofri ainda na adolescência e foi bastante libertador. Promoveu uma cura nesse lugar e foi surpreendente observar essa união de mulheres tão incríveis que foram sensíveis ao tema (Elza Soares, Maria da Penha, Eliane Dias, entre outras mulheres incríveis participaram do clipe). Tenho muito orgulho desse trabalho.
Belchior foi e é uma grande referência na música para você. Me conte como isso começou até chegar no projeto e show. Eu descobri o Belchior através da Elis – eu tinha uns 16 anos quando passei a ouvi-la atentamente. Pra chegar no Belchior artista, cantor de sua obra, foi mais tarde. A decisão de fazer uma live na pandemia, cantando suas canções veio da urgência de trabalho e vulnerabilidade social da pandemia, mas também de suas temáticas (que atravessam o coletivo, o social e que falam muito sobre amor) e da atualidade de suas ideias. Eu vinha experienciando a força de seus versos em momentos diferentes. No carnaval em São Paulo por exemplo, e no Teatro Municipal no Prêmio Arcanjo de Cultura. Era sempre um avassalamento interpretá-lo e que, muitas vezes, terminava em lágrimas. A live alastrou rapidamente e o que se seguiu foram momentos que jamais esquecerei com essa turnê que, agora, atravessa o Brasil.
Você parece ter um espírito livre e leve e zero problemas com o corpo. Como é para você inspirar tantas mulheres? Eu sou uma mulher branca, magra, cis. Um lugar de fala privilegiado por um sociedade que oprime o controla os corpos femininos e a intersecção, é o único caminho para um feminismo real. Dito isso, lutei pessoalmente por conquistar essa liberdade, pois tinha muitos traumas em relação aos assédios que sofri ao longo da vida. Não conseguia usar saias, tops e passei boa parte da adolescência cobrindo meu corpo e sentindo culpa. Desenvolvi bulimia nervosa nesse período também. Enfim, é um caminho longo e doloroso até que conquistemos uma autoestima que nos liberte de fato. Gosto de pensar que inspirar mulheres é também ser inspirada por elas – e são muitas que me ensinam diariamente!
Até onde você quer que a música lhe leve. E até onde leve o seu público? Até onde a emoção for capaz de chegar. No limite, na lágrima, no sorriso aberto. Só que isso só se dá se pulamos nos abismos e abraçamos nossas sombras. O plano individual íntimo é a chave para o todo – pois há algo perene e comum que nos norteia que são os sentimentos humanos. Amores, dores, esperanças, sonhos, lutas e glórias. Tudo que me interessa na música e na arte é a emoção, a poesia.
Falando nisso, você tem rodado o Brasil levando seu show Ana Cañas canta Belchior. Como tem sido esse contato com o público? Tem sido incrível! O momento mais bonito de toda a minha carreira. Cantá-lo me deu mais do que escrever minhas próprias canções (até aqui). Foi um salto quântico na alma. Sua poesia é muito profunda, rebuscada e, ao mesmo, tempo, acessível. Eu o admiro em diversos planos: o músico, o artista, mas também o ser humano, o real. Suas entrevistas, seus pensamentos, suas opiniões se aproximam muito das coisas que sinto e penso da vida. Ele tem seis planetas em Escorpião, e eu, quatro. É um encontro muito especial mesmo.
Como foi posar para o fotógrafo Angelo Pastorello nesse ensaio tão belo e impactante? Foi um dia agradabilíssimo, o Ângelo é sensacional. A luz que montou, a sensibilidade ao me fotografar e o cuidado que teve ao escolher toda a equipe (Rogério e Nicole maravilhosos) me deixaram em um ambiente de afeto e acolhimento. Escolhi trabalhar energias fortes da sexualidade feminina, ora brincando com o rock’and’roll, ora mais vintage. Eu amei o resultado! Ele simplesmente arrasou.
Quais os planos daqui pra frente? Pode nos antecipar algo com exclusividade? Seguimos com a turnê cantando Belchior pelo Brasil. Já foram 120 shows e temos mais 30 cidades agendadas por agora. Tô amando conhecer um Brasil profundo e encontrar as pessoas que amam o Belchior. Um novo projeto está sendo gestado na paralela com lançamento previsto para 2024, mas ainda não posso revelar muitos detalhes! Tudo feito com muito amor e profundidade.
Fotos Angelo Pastorello
Stylist Nicole Nativa e Renato Cardoso
Beleza Rogério Magalhães