MÚSICA: Sgt. Peppers abriu as portas para um admirável mundo novo na indústria da música‏

A Rua Líbero Badaró em São Paulo nunca foi um bom ponto para uma loja de discos. Na vizinhança entre as apinhadas Ruas São Bento e Direita ou do outro lado, descendo a Avenida São João, nas Grandes Galerias, hoje chamada de Galeria do Rock, penetrando pelas concorridas Dom José de Barros, 24 de Maio ou Sete de Abril, fazia mais sentido e era possível encontrar diversas lojas que faziam a festa de adolescentes como eu. Ou de adultos que buscavam nas saudosas Bruno Blois ou Brenno Rossi os últimos lançamentos de jazz ou clássicos. O Museu do Disco na Rua Dom José de Barros com os desejados lançamentos importados de pop/rock, completava o cenário daquele longínquo 1967. Entretanto, foi na Líbero Badaró, em uma loja deslocada, pouco expressiva, que vi pela primeira vez, colada na vitrine, a capa dupla aberta, com os rapazes em vistosos trajes de banda militar, os Beatles e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band.

Da loja, sons estranhos invadiam a rua. Entrei, peguei, olhei todos os detalhes, mas não tinha a menor idéia do que estava acontecendo. Como qualquer garoto daquela época, eu tinha pouco acesso às notícias sobre a música que ouvíamos. As rádios e as lojas de discos eram nossos horizontes máximos e únicos. O jornal, hoje revista, Rolling Stone nasceu um pouco depois e chegava irregularmente em algumas poucas livrarias. Outros jornais ingleses apareceram, mas meu inglês era quase nenhum. Eu tentava ler os artigos e capas de discos, segurando um dicionário. Eram dias para ler e mais ou menos compreender uma matéria. Como então entender todas aquelas letras impressas na contracapa vermelha de Sgt. Pepper’s? Como absorver aqueles sons mesclando instrumentos orientais, orquestras e ruídos de animais? O que era tudo aquilo para o garoto de um mundo sonolento, de cenários vagos clamando por perspectivas?


O histórico disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club
Band completou 45 anos ano passado.

Os beatles deixaram de se apresentar ao vivo em agosto de 1966 e passaram a exercitar toda a criatividade do grupo nos estúdios. Na verdade, vinham mudando o mundo musical desde 1965 quando lançaram Rubber Soul. Ali apresentaram a cítara indiana ao mundo, pianos que soavam como cravos e harmonias insuperáveis. Deram um passo maior ainda quando fizeram Revolver no ano seguinte. Baterias gravadas em reverso, guitarras distorcidas, arranjos de cordas e até submarinos amarelos. E entre o final de 1966 e início de 1967 gravaram três novas composições, duas delas, “penny lane” e “strawberry fields forever“, foram lançadas como compacto em fevereiro do novo ano, por pressão da gravadora que queria novos produtos do grupo. A terceira, “when i’m sixty four“, foi incluída em sgt. Pepper.


 

Porém, naquele fevereiro, paul ainda não tivera a ideia de que no novo disco eles atuariam como se fossem um outro grupo, uma nova banda que iria apresentar em nome dos beatles as novas canções… Assim nasceu o conceito de sgt.pepper’s lonely hearts club band. Nós saboreamos as mudanças no vento quando “penny lane” e “strawberry fields forever” chegaram às lojas. Estávamos avisados. Mesmo assim e por tudo isso, o Sargento Pimenta e Sua Banda dos Corações Solitários abriram os portais de um admirável mundo novo. Nunca antes, nem depois, um impacto tão grande seria sentido na música, na indústria e nas rádios. Mudamos todos. Da primeira guitarra de Sgt. Pepper’s ao último piano de A Day In The Life, sonhávamos, acordávamos, perdíamos e recuperávamos nossa inocência.
Todos nós, entendendo ou não, cantávamos com Ringo os versos de “With A Little Help From My Friends”… Quem era Lucy in the Sky with Diamonds? Era mesmo LSD? Ou simplesmente o desenho retratando uma coleguinha de escola de Julian, filho de John? Verdade é que a coleguinha, Lucy O’Donnell,  lembrava de desenhar com Julian e adulta deu entrevista dizendo que não gostava desse tipo de música. Lucy O’Donnell morreu em 2009, perdendo uma luta contra Lupus.
Paul McCartney, jovem e ansioso, não agüentou esperar que o produtor George Martin se desocupasse de outras tarefas do grupo e encomendou o arranjo de “She’s Leaving Home” ao competente Mike Leander que já havia escrito o naipe de violinos de “As Tears Go By” para os Rolling Stones. Foi a única vez que Sir George Martin não escreveu um arranjo para os Beatles. Um antigo pôster anunciando um circo inspirou John a compor “Being For The Benefit Of Mr. Kite”, repleta de trampolins, cavalos amestrados dançando a valsa, pulando círculos de fogo e como escreveu John, “um momento esplendido está garantido a todos…” Para encerrar a faixa, imitando um órgão alimentado a vapor, tapes de sons aleatórios foram cortados em pequenos pedaços, lançados ao ar, depois colados um a um, reproduzidos em alta velocidade e adicionados à música.
George Harrison então crescia como compositor a passos largos e mesmo contribuindo com apenas uma canção, compareceu com uma mistura de orquestra e instrumentos indianos como nunca se viu antes. Acrescente-se a isso versos que cabiam em qualquer poema e temos “Within You, Without You”. “Quando você enxergar além de você, talvez encontre paz de espírito esperando por lá, e chegará o momento em que você verá que somos um só e que a vida flui em você e sem você.” A pequena e enérgica reprise do tema de Sgt. Pepper abre as portas do estampido, do estouro final, em que todo o disco converge para a épica “A Day In The Life”, a visão apocalíptica de John para as notícias do jornal. A morte de Tara Browne,  herdeiro do império Guinness, os buracos em Lancashire, a guerra que a Inglaterra havia vencido, na verdade, um filme em que John participara. E então um crescendo das cordas nos leva até a explosão de um dantesco acorde de piano… Com menos de quarenta minutos de duração, Sgt. Pepper e os Beatles mudaram o mundo para sempre.

Artistas tentaram copiar, fazer algo parecido e um até enlouqueceu, o brilhante Brian Wilson, líder dos Beach Boys, cujo álbum Pet Sounds de 1966, de acordo com Paul McCartney, servira de inspiração para algumas passagens de Sgt. Pepper. Ninguém chegou perto… Nunca. O disco que revolucionou a história da música e ainda é referência para todos, completou quarenta e cinco anos de idade em junho passado.
 
Décadas depois, alguém, em algum lugar, perguntou se lembrávamos de quando havíamos ouvido Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band pela primeira vez. Eu lembro… Foi lá na Rua Líbero Badaró…

*Miguel Franceschini Aranega
Veterano executivo da indústria de música, foi produtor em rádio, diretor em gravadoras e vice-presidente de operações para a América Latina de Editora Musical multinacional. Hoje, aposentado, dedica boa parte do tempo à História da Música.

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