Por Dulce Rodrigues (@dulce_porto_)
O ano de 2023 foi marcado como o ano da grande tomada de consciência sobre o desenvolvimento sustentável e, nesse sentido, o SDG Summit (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) da ONU, ocorrido em 18 e 19 de setembro em New York, marcou o começo de uma nova fase das 17 metas do SDG que vão das questões da floresta (Amazônica) em pé às questões agrícolas à alimentação saudável e ao bem-estar. Assim, em vez de comermos comida processada que provoca o desenvolvimento de várias doenças que vão do sobrepeso a questões relativas à pressão arterial, a problemas de digestão, inflamação e a outros tantos males, sem mencionar a insuficiência nutritiva e o diabetes, entre tantos problemas acarretados a partir do consumo das fast foods.
Ao longo da história, os hábitos alimentares têm sido correlacionados a fatores culturais, ambientais, econômicos, sociais e religiosos. Entretante, desde o surgimento das grandes cadeias de fast food, estas têm levado países ao redor do mundo a esquecerem suas tradições e aderido à praticidade das fast foods, devido, talvez, à vida frenética que se vive hoje.
A maior cadeia de fast food do mundo, a americana McDonald’s, foi fundada em 1940 em San Bernardo, na Califórnia, pelos irmãos Richard e Maurice McDonald. Em 1955, eles já tinham expandido os negócios com suas primeiras franquias surgidas, talvez, por conta do momento vivenciado pela sociedade americana – o do “sonho americano”, dos primeiros passos da mulher em busca de uma vida profissional. Essa proposta de alimentação, mesmo com as metas do SDG Summit, mesmo diante da busca por um desenvolvimento global suatentável, tem crescido. De acordo com o jornal o Estado de Minas – Saúde e Bem Viver, edição de 06 de julho de 2023.
No primeiro trimestre de 2023, o consumo de fast food no Brasil registrou um crescimento alarmante, com mais de 13,7 milhões de brasileiros optando por esse tipo de alimentação, segundo uma pesquisa realizada pela Kantar. Em comparação ao mesmo período do ano anterior, houve um aumento de 3,8 milhões de consumidores. Avalia-se que a tendência esteja diretamente relacionada à retomada do trabalho presencial e ao aumento das ocasiões de consumo compartilhado, conforme revelado pelo estudo Consumer Insights 2023.
O alto consumo de fast food, acontece, talvez, pelas mesmas condições que ocorreram nos Estados Unidos, o que tem acarretado falta de uma rotina e hábitos alimentares saudáveis. Isso colocado, precisamos lembrar que as fast foods carregam fatores efetivos no desenvolvimento de doenças crônicas, devido a padrões e hábitos alimentares inadequados que têm trazido grandes prejuízos para a humanidade, e não apenas financeiros.
Muitos países em desenvolvimento com tendência para a cultura alimentar ocidental, têm substituído dietas tradicionais locais de alimentos saudáveis e nutritivos pelas fast foods que são preparadas de forma industrial, com ingredientes e métodos padronizados de cozimento e produção, tornando-os então, alimentos com baixos teores de vitaminas e fibras, mas altamente gordurosos, o que leva o indivíduo a ganhar peso e doenças em detrimento da nutrição.
FAST FOOD X SLOW FOOD
A modalidade fast food de alimentação é muito antiga, se considerarmos a venda de alimentos nas ruas (street food), prática essa milenar e global. Hoje, para entendermos esse consumo quase compulsivo de fast food, talvez seja necessário entendermos a força das grandes cadeias de alimentos.
Preocupado com aspectos relativos ao alto consumo desse tipo de comida que provoca tantas doenças nos Estados Unidos, por exemplo, o cineasta e documentarista americano Morgan Valentine Spurlock produziu o documentário Super Size Me (2004) que foi escrito, produzido e protagonizado por ele a partir da experiência a que ele se submeteu – passou 30 dias comendo somente no McDonald’s. Diante do resultado assustador, como o aumento das taxas de colesterol, de peso e os problemas no coração, Morgan decidiu produzir o documentário como forma de alerta para os perigos do consumo desses alimentos
Isso posto, diria que podemos fazer parte dessa mudança, dessa grande tomada de consciência sobre o desenvolvimento sustentável que o SDG Summit recomenda – comermos de forma mais sustentável. Seria trazer de volta os costumes do passado relativos às refeições, à alimentação saudável e ao bem-estar, levando-se em consideração uma alimentação que vai além de ser saudável, nutritiva e balanceada. Seria organizar nosso dia para que tivéssimos algum tempo para desgustar, não apenas uma porção de fast food, mas focarmos no que comemos, o que permite reflitir sobre o que estamos ingerindo e como esse alimento está agindo em nosso corpo. Ao prestar mais atenção ao que comemos, podemos alterar nosso consumo de alimentos e reduzir o desperdício, além de nos tornarmos encorajados a buscar fontes de alimentos mais sustentáveis.
Assim, talvez tenha sido com base nessas premissas que, em 1986, surgiu na Itália o Slow Food Movement, que chegou como protesto à chegada do primeiro McDonald’s na Itália, precisamente, em Roma. Em meio aos protestos ocorridos na ocasião, o líder do movimento Slow Food, o jornalista Carlo Petrini compreendeu que, protestar com cartazes nas ruas contra o novo tipo de restaurante que ali se instalava, não mudaria nada. Então, ele decidiu chamar atenção para a causa – alimentação não saudável, de forma diferente. Ele reuniu um grupo de amigos que se juntaram aos manifestantes não com cartazes, mas com tigelas de macarrão penne que distribuíram aos transeuntes. Seu slogan, “Não queremos fast food… queremos slow food!”
Embora Petrini e os outros manifestantes não tenham conseguido manter o McDonald’s de fora, eles trouxeram outra forma de pensar a comida, e daí nasceu o Movimento Slow Food. Três anos após o primeiro protesto, Petrini e representantes de 15 países se reuniram em Paris para a assinatura do Manifesto Slow Food, que falava contra o que descreveram como uma vida de opressão.
“Somos escravizados pela velocidade e todos sucumbimos ao mesmo vírus insidioso: o Fast Life, que interrompe nossos hábitos, invade a privacidade de nossas casas e nos obriga a comer Fast Foods… Uma defesa firme do prazer material silencioso é a única maneira de se opor à loucura universal da Vida Rápida… Que doses adequadas de prazer sensual garantido e gozo lento e duradouro nos preservem do contágio da multidão que confunde frenesi com eficiência. Nossa defesa deve começar na mesa com o Slow Food. Vamos redescobrir os sabores da culinária regional e banir os efeitos degradantes do Fast Food.”
Os princípios da Slow Food defendidos por Petrini, são baseados em alimentos bons de sabor, limpos de agrotóxicos e sustentáveis, trazendo oportunidades para todos envolvidos – desde os produtores dos alimentos à chegada ao consumidor final. O foco é consumirmos alimentos integrais cultivados localmente, tendo em mente a ingestão de refeições que são apreciadas enquanto ingeridas.
ALIMENTAÇÃO BOA, LIMPA E JUSTA
Hoje, o Slow Food tem mais de 150.000 membros no movimento em 160 países, incluindo o Brasil. Petrini diz que o Slow food entende que o alimento representa um fator não apenas de desenvolvomento, mas também um multiplicador de práticas integrativas e de colaboração.
O movimento está no Brasil desde 2000* e, hoje, conta com cerca de 65 Convívios no país – nome dado aos grupos locais que se articulam por regiões, cujas funções são de garantir relações entre produtores e donos de restaurantes a usar alimentos regionais, fazer campanhas para proteger alimentos tradicionais, organizar palestras e cultivar a qualidade de vida no dia a dia, além de priorizar o meio ambiente, uma vez que é uma prática “limpa” de agrotóxicos.
Acredito que, o movimento Slow Food ainda seja pouco divulgado, embora esteja em pleno desenvolvimento no país em universidades e faculdades, através cursos na área – como também em programas de desenvolvimento de uma gastronomia comunitária sustentável. Nessa linha, o turismo muito tem contribuído com restaurantes em todas as regiões do país que trazem propostas de uma refeição consumida sem pressa em volta de uma mesa que proporciona oportunidades para a aproximação, base das refeições tradicionais de famílias e grupos sociais.
Entretanto, apesar dos grupos de Convívio e outras tantas ações aqui mencionadas, o Slow Food precisa de muito mais para tornar a prática de uma alimentação boa, limpa e justa (Good, Clean and Fair), como defende o movimento, focando sempre em uma alimentação sustentável, onde todos ganham. Apesar do avanço do Slow Food no Brasil, segundo matérias divulgadas na imprensa sobre as indústrias de alimentos brasileiras, tem havido grandes investimentos em tecnologia na área, com vistas a não perder clientes e até conquistar novos, uma vez que percebem que, a sustentabilidade está se tornando cada vez mais importante para os consumidores, e isso se reflete nas escolhas de alimentos que essa indústria tem pensado, a partir dessa constatação.
Fast food e slow food têm propostas de alimentação muito diferentes e isso têm ficado muito evidente em países onde consumidores lutam com o objetivo de defender as tradições regionais – a boa comida, o prazer gastronômico e não por uma competição desigual, uma vez que o fast food conta com consumidores influenciados pela conveniência, custo-benefício e variedade. Assim, quais os fatores que influenciam uma escolha em torno do alimento – o valor monetário? A variedade, em detrimento dos benefícios nutricionais? Ou seria o embate Fast food versus Slow Food, uma competição tão desigual quanto aquela existente entre seus consumidores mundo afora, tão perigoso quanto aqueles relativos às questões ambientais e de clima? Não seria o caso de valorizarmos produtos alimentícios que estão ligados ao território, à memória, à identidade e aos saberes tradicionais de uma comunidade, uma nação?
*A Associação Slow Food do Brasil (ASFB), sediada em São Paulo, com vistas a manter suas funções principais de articular e coordenar os programas do Movimento Slow Food, apoiar aqueles que fazem parte da rede Slow Food Brasil e tutelar o uso de sua imagem e marca, no país.