Por Bruno Albertim
Pedro Godoy só acredita no peixe que, se não viu sair do mar, pelo menos viu chegar em sua cozinha. O respeito à localidade do produto é um dos mantras do chef recifense que, à sua maneira, vai reiventando as cozinhas regionais do Brasil. “Onde está o melhor produto? O mais perto possível. Porque foi recém-colhido, recém pescado, recém-abatido. Um produto que eu preciso trazer, vamos dizer, do Sul do País, já foi refrigerado alguns dias, veio num trajeto onde ele foi balançado, machucou, perdeu a cor, perdeu a beleza, perdeu o frescor, a textura”, diz o chef pernambucano que, a despeito da pouca idade para os padrões da profissão, firma-se como um dos grandes nomes de sua geração no Brasil.
No Arvo e no Voar, um na Zona Norte, outro na Zona Sul do Recife, parcerias suas com o sócio Eduardo Freyre, Pedro Godoy havia já provado que ingredientes regionais podem estar em pé de igualdade técnica, elegância gustativa e potência com insumos das grandes cozinhas clássicas ocidentais. O regionalismo de Godoy possui muitas informações sensoriais e mesmo históricas, mas não é refém de sotaques ou folclorismos. Dono de prêmios como chef Revelação da revista especializada Prazeres da Mesa ano passado, ainda um dos mais respeitados do Brasil, Pedro Godoy agora prova que o Oriente também é sua praia.
DO ORIENTAL AO ANCESTRAL
Em parceria com o sushiman Simpson dos Santos, outro profissional de perícia incomum, Godoy se desdobra agora para também comandar a cozinha do Omar, instalado na Rua da Harmonia, na Zona Norte, endereço que, sem exageros, amplia não apenas a geografia gastronomia da cidade do Recife, mas do País. Ali, a dupla informa que a cozinha de base oriental pode ser ancestral, de fórmulas talhadas na pedra milenar da história, mas também extremamente contemporânea, cosmopolita, dialogar de forma grandiosa com ingredientes brasileiros e, o que mais nos interessa, ser extremamente sensorial. Ética e esteticamente, a cozinha do Omar nos ataca em todos os sentidos.
O encontro dos chefs é muito bem entrosado. Consequência, aliás, da biografia de Godoy. Hoje na casa dos 30, com 25 anos, o chef já acumulava uma quilometragem de fogões incomum até mesmo para veteranos. Tinha já trabalhado em mais de vinte casas. Antes, estudante de gastronomia depois da “crise dos 17”, batia expediente como estagiário em restaurantes francamente comerciais. Consumia as horas descascando camarão, lavando lixeiro, limpando banheiro, descascando batatas. “Trabalhei em restaurantes servindo mais de 3OO refeições por dia. Não era uma gastronomia que eu queria. Mas queria entender a lógica do funcionamento de um restaurante. Vi aquela loucura, a gritaria, aquela correria… e ai acabei me sentindo em casa, me senti desafiado.”
Ali, Pedro internalizava a primeira de suas regras: jamais trocar a segurança de um contracheque pelo aprendizado contínuo. Depois de juntar algum dinheiro, se mandou para a Austrália onde, num golpe de sorte, acabou caindo em cozinhas estreladas. Aos 21, já recebia convites para dar aulas de frutos do mar. Mas sabia: “Eu já tinha uma certa experiência de agilidade nessas cozinhas de movimento, e depois eu fui pra cozinha de nível, com profissionais que me despertaram o interesse de ser um deles. De sair da brigada e vir a ter a minha brigada, de ser a cabeça pensante da cozinha”.
Na Austrália que até então não conhecia, acabou sujando o avental no Delfiche House, restaurante prestigiado de frutos do mar, e no Maha, do então patrão e depois amigo Daniel Giraldo, eleito o terceiro melhor restaurante de Melbourne. “Todo dia, a gente tinha lagosta que chegava viva. Todo dia, a gente recebia um carregamento de peixe, com o peixe ainda duro, ativo ainda. Não tinha no cardápio dizendo qual era o peixe, era o que viesse do mar no dia.” Ali, o jovem cozinheiro internalizou seu segundo mantra: “Cozinha se resume a dois elementos fundamentais: equipe e produto”. Ou seja, antes de tudo, respeitar e qualificar a brigada.
ELEGÂNCIA GUSTATIVA
A Pedro cabe a criação dos pratos quentes. Com Simpson, as receitas frias da cozinha de base nipônica. Um simples tartar de atum ali é superlativo. Peixe fresquíssimo, rosáceo, cortado em ponta de faca e cubos relativamente grandes, marinado em molho marinho coreano, cebola, ovas para aumentar a marinidade e uma gema perfeitamente curada para dar untuosidade a todo conjunto. Um mais simples ainda crudo de peixe do dia nos informa a honestidade daquela cozinha: água de tomate e azeite defumado, rabanete e salsa de shisso não comprometem a leveza do peixe Uma das características da cozinha de Pedro é acrescentar massas ou outras bases, como peles de pescados desidratas, para dar mais texturas ao conjunto. O Okonomiaky, destaque nas entradas, traz um par de discos crocantes de massa de cogumelos, finalizada com atum em cubos, maionese e katsobush, os flocos de peixe bonito que dão uma nota fumada à receita.
Os pratos quentes são definitivamente intrigantes, de talhar para sempre a memória do paladar. O ravioloni de atum explora muitas latitudes: aberta e aveludada, a massa em discos recebe nacos generosos de atum perfeitamente selados, rosados por dentro, caramelizados pelo calor apenas na superfície, sobre um creme refortante de cogumelos com presença de limão siciliano e lâminas de pele de atum para dar uma crocância à orquestra. Um prato de muitos ataques: terroso, cítrico e perfumado; marinho e umami. Pode parecer exagero, mas prove e confirme se a barriga de porco da casa não deveria ser tombada como patrimônio da cozinha contemporânea japonesa: perfeitamente empanada, como manda a tradição dos tonkatsu japoneses, servido com arroz profundamente caldoso com legumes a moda japonesa. É de talhar a memória do paladar.
De ambiente pós-industrial urbano, luz econômica e música ambiente vibrante, uma boa carta de driques e vinhos, o Omar também se presta como cosplay de balada tranquila nas noites de final de semana. Felizmente, não é apenas o que parece ser. Com sobriedade e muita elegância gustativa, a cozinha ali é contemporânea e, o melhor, respeitosa de suas origens.
SERVIÇO:
Omar. (@omar.restaurante) Rua da Harmonia, 72, Casa Amarela, Recife. Diariamente para jantar. Almoços nos finais de semana. Tíquete médio: entre R$ 100 e R$ 200.