Por Bruno Albertim
IO DE JANEIRO – Matheus Nachtergaele está de volta ao cotidiano mais íntimo dos brasileiros. Depois do enorme sucesso de seu personagem em Renascer, o ator não conseguiu recusar o convite. Estará no elenco de Vale Tudo, remake da trama de Gilberto Braga que é a “mãe da novela moderna no Brasil”, que marca a redemocratização pós-ditadura e discute, com uma habilidade folhetinesca paradigmática, a ética e a corrupção cotidiana no País. “Tinha prometido nunca mais emendar um trabalho no outro, mas não consegui dizer não”.
Ao mesmo tempo em que viverá Polyanna, melhor amigo da personagem Raquel, agora vivida por Taís Araújo no lugar da original personagem classicamente cristalizada por Regina Duarte, Matheus se divide entre o Rio de Janeiro e São Paulo para corporificar Sandro Cenoura, um traficante em busca de paz com sua consciência, na segunda temporada da série Cidade de Deus para a HBO. Aos 56 anos, ele diz que não sabe parar.
“O fato é que sou mais feliz trabalhando. Já não sei distinguir vida pessoal da atuação. Eu, realmente existo sendo ator”, diz Nachtergaele, reconhecidamente um gênio da espécie desde a estreia, há mais de trinta anos, no corajoso e sangrento espetáculo O Livro de Jó, do Grupo de Teatro da Vertigem, antes de viver um guerrilheiro urbano no filme O que é isso, companheiro?
Prestes a ver seu João Grilo ganhar o País outra vez na continuação de O Auto da Compadecida, 25 anos depois da estreia arrebatadora do filme que fincou a peça de Ariano Suassuna no imaginário contemporâneo brasileiro, Nachtergaele encontrou um raríssimo momento de intervalo entre as gravações para conversar com o repórter Bruno Albertim.
Nesta entrevista, ele conta como faz para dar conta de tantas demandas e adianta, com uma certa exclusividade, o que podemos esperar de O Auto da Compadecida 2 – João Grilo voltará da dança entre a vida e a morte, exatos 25 anos depois, para tentar, como um arlequim dos sertões, tirar algum proveito dos poderosos a partir de sua fama de ressuscitado. “A sensação é de estar de volta ao Auto, em Taperoá, só que com um ácido embaixo da língua. Esta é uma versão mais lisérgica e muito mais fabulista que a original”, diz ele que, longe do padrão mais clássico dos galãs brasileiros, comemora o biótipo que o aproxima de muitas brasilidades. “Apesar de ser um homem incomum e meio específico, tenho um biótipo de palhaço, que serve para o homem comum brasileiro”.
São 56 anos de idade, e você continua com o mesmo vigor para o trabalho, de quando tinha vinte. Qual o segredo para manter a disposição? Acho que é porque eu tenho uma vocação fortíssima. Sou feliz trabalhando e acho até que sou mais feliz trabalhando do que nos momentos de pausa. Passei, há pouco, um mês no Maranhão quando acabou a novela Renascer, e foi suficiente para mim. Eu não queria mais férias. Eu, meio que existo sendo ator, é realmente aqui que eu sou, não tenho muita distinção entre a minha vida pessoal e ser ator.
Matheus, você praticamente emendou a novela Renascer com as gravações de Vale Tudo, no Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que participa da segunda temporada da série Cidade de Deus, para a HBO, em São Paulo. E está prestes a lançar O Auto da Compadecida 2. Como consegue fazer tantos trabalhos ao mesmo tempo? Minha vida pessoal está zero! Amigos, saídas, namoro – nada! No máximo, tô conseguindo malhar duas vezes por semana, para manter a saúde. Mas amo trabalhar, e tô numa fase deliciosa de fazer. Jurei que jamais faria isso de novo, emendar um trabalho grande no outro, mas me chamaram para Vale Tudo e eu não consegui dizer não. A experiência em Renascer foi tão deliciosa, que me animei. Como há muito tempo não acontecia, me senti dentro da casa das pessoas, dentro do cotidiano do Brasil. O personagem Norberto não era um protagonista, mas tinha cenas deliciosas, o público também se demonstrava muito feliz nas ruas quando me encontrava. A ficha caiu sobre o fato de que, quando você faz novela, o quanto as pessoas ainda assistem à TV aberta no Brasil e de como você visita a maior parte de seu público.
Vale Tudo será uma novela especial, que vai celebrar os 60 anos da Rede Globo. O convite da Manuela Dias (autora) e de Paulo Silvestrini (diretor artístico) veio embutido com a presença desse elenco de ouro para celebrar os 60 anos da TV. Por outro lado, quando estavam fazendo a primeira temporada de Cidade de Deus, eu estava também gravando o Auto da Compadecida 2. Então, eu não pude fazer o Sandro Cenoura (personagem de Cidade de Deus), por causa do Auto da Compadecida. Mas, agora, neste tempo que tenho entre Renascer e Vale Tudo, eu pude fazer o Sandro Cenoura para a segunda temporada da série Cidade de Deus para o HBO. Estranhamente, é tudo feito em São Paulo, em estúdio e nas locações; assim como era o filme original, que tinha locação e o original na Cidade de Deus. Em São Paulo, a gente faz na favela Novo Mundo, com apenas algumas externas no Rio. Quem dirige é o Aly Muritiba, a base da produção é em São Paulo, com o elenco todo do Rio.Tô reencontrando muitas pessoas do primeiro filme, gente que era criança e agora vejo adultos. Alguns atores já muito conhecidos, como o Thiago Martins; outros, menos conhecidos. Eu achei que seria muito difícil retomar o Cenoura, mas assim que comecei, ele brotou. Tava guardado em mim, parecia uma bicicleta velha na qual eu não andava há muito tempo, mas, imediatamente, eu lembrei do sotaque, da sonzeira das vozes, daquela figuração imensa, toda armada até o os dentes. Me fez voar no tempo até a Cidade de Deus, no início dos anos 2000. Para quem não viu a primeira temporada da série, eu recomendo muito, assistir.
De lá para cá, o Brasil mudou bastante no sentido de trazer novas camadas às questões apresentadas por Cidade de Deus. Podemos falar, por exemplo, da presença das milícias nas bancadas legislativas, da ampliação da ação de organizações ligadas ao tráfico do Sudeste para o Nordeste do País e da tentativa recente de Golpe de Estado no Brasil. Como CDD faz sentido nesse novo contexto? A série consegue incluir as novas demandas do tempo, o crescimento das milícias, a função de corpos políticos dentro da favela, a exemplo do que aconteceu com Marielle Franco. Coisa que o tempo foi trazendo para essa situação dramatúrgica, que a série compreende e trabalha há muito tempo. Questões muito violentas e complexas do Brasil e, apesar disso, tem sido um set muito feliz. A gente grava fora da ordem, faço muita coisa na Boca dos Apês, que era a do Zé Pequeno, reconstruída aqui em São Paulo. Meu personagem, Sandro Cenoura, volta para apaziguar a guerra entre as facções. Ele foi preso e não quer fazer mais parte do crime – ele volta para tentar resolver esse impasse. Fazer a minha chegada na favela foi muito emocionante, entrando no meio de uma moquecada, tentando dominar a boca, com um jeitinho de Sandro Cenoura, mas modernizado.
Tem sido tranquilo filmar nesses espaços periféricos de tantas tensões recentes? É claro que são espaços mais perigosos, que exigem muita negociação. Mas, até onde eu entendi, tem sido muito harmonioso.
Não sente falta da vida boêmia? Eu parei de beber para poder continuar trabalhando. Eu tinha ressacas grandes. Tem uma hora em que o corpo precisa fazer escolhas. O ator é também um atleta do corpo. Essa semana, por exemplo, eu tive um dia pesado na favela. Eu faço check up anual, malho duas vezes por semana, trabalho muito, desde o primeiro filme. No mais, levo a vida mais comum do mundo, igual a todo mundo. Nos meus descansos, eu descanso de verdade. Sou capaz de dormir 20 horas num domingo, se eu puder. Antes, eu tiraria o sábado para madrugar com os amigos, passava o domingo de ressaca e, na segunda, metia o pé no trabalho. Eu não romantizo mais a boemia. Antes, havia algo de romântico.
O Auto da Compadecida é o filme que, de fato, faz de você um ator nacional, um personagem que é um novo Macunaíma, um novo anti-herói do Brasil. O que o João Grilo lhe trouxe e porque ele é, na sua opinião, o grande personagem cômico da dramaturgia do Brasil? O Auto tem essa eterna crítica social. João Grilo é um proletário, o servo esperto que sobrevive aos maus tratos e à ganância dos poderosos, um personagem que está na história da dramaturgia desde o início. Ele está nas comédias de Moliére, na Comedia Dell’ Arte…em todas as dramaturgias da história. Ele é o Malazartes do Nordeste, que sobrevive aos poderosos, porém, com uma alegria atemporal, alegre e resistente. Para além desse fundo social, o Auto é uma história para todos nós e isso tem me chamado à atenção – como nós estamos precisando sorver juntos conteúdos para todos, para estarmos no mesmo lugar. O Auto da Compadecida estreou, justamente, lá atrás, no processo de retomada do cinema brasileiro. Veio agora um desejo de viver isso de novo. Estamos nessa discussão há alguns anos – se valeria a pena fazer de novo. E o desejo de voltar ficou muito forte quando o Brasil ficou, recentemente, muito dividido e pensamos que deveríamos fazer um trabalho que nos fizesse rir juntos. Porque a questão do Auto da Compadecida não é partidária, é uma questão humanista, uma questão da humanidade. Quisemos devolver ao público o carinho, devolver a Ariano e sua família nossa admiração. A gente ainda consegue ser brincante brasileiro sem tantas mágoas. Nesse sentido, eu acho realmente que o João Grilo me coroou como ator, me confirmou na profissão. Eu já tinha passado pela Escola de Artes Plásticas, já tinha feito a Escola de Artes Dramáticas, formação com Antunes Filho. É como se tivesse sido uma escolha, o João Grilo é um brasileiro comum, desprovido de moral, alegre. Por isso, me dá frio na barriga fazê-lo de novo. Estou torcendo para ver como as pessoas vão ver se eu dei conta do arquétipo.
O que podemos esperar desse novo João Grilo? Para mim, como ator, diferentemente de Cidade de Deus, em que está sendo extremamente fácil fazer o Sandro Cenoura, o João Grilo me demandou muito trabalho de carpintaria, com o sotaque, com os trejeitos, com a vesguice. O texto, que é muito bem escrito, obedece às regras armoriais, tem algo de clássico na dramaturgia de Ariano. O João Grilo exigiu de mim uma atenção muito grande, até porque foi tudo feito em estúdio. Então, não tem o ambiente natural para ajudar naturalmente na composição. A única externa é, justamente, a cena em que o Grilo reencontra Chicó.
A história será retomada exatamente do ponto em que parou? O filme começa 25 anos depois, com a volta de João Grilo. Nesse tempo, Chicó ficou vivendo como cordelista, e eles voltam para a cidade, que ficou altamente abandonada. Chicó, nos seus cordéis, conta para o povo o que aconteceu com João Grilo e com os outros. E João Grilo, por sua vez, percebendo seu prestígio crescente por meio das histórias contadas por Chicó, vai tentar tirar proveito disso – vai tentar se aliar aos poderosos, aos novos ricos. Ele entra numa aventura do tipo “Arlequim, servo de dois patrões”, com um novo visual muito Tim Burton, muito fabular. Essa nova versão remete muito mais ao teatro do que eu imaginei. O Auto, afinal, é uma peça de teatro. O filme é todo feito assim, porém com recursos tecnológicos que não se tinha na época do primeiro filme. O resultado é uma grande viagem. Acredito que, para quem ama o primeiro filme, vai amar mais ainda essa segunda versão. A sensação é de estar de volta ao Auto, em Taperoá, só que com um ácido embaixo da língua. Esta é uma versão mais lisérgica e muito mais fabulista que a original.
Renascer marcou seu retorno definitivo às novelas? Não sei se volto a ser com frequência um ator de novelas. O fato é que eu tenho feito muito teatro, muito cinema, mas sempre faço TV, faço séries. Fiz três temporadas de Cine Hollywood. Mas essa coisa da novela das nove, de você entrar efetivamente dentro da cultura cotidiana do País, isso realmente me encantou. Não estava de mal com as novelas, só não as fazia, havia dez anos. Mas foi tão lindo fazer Renascer que, topei na hora, o convite para Vale Tudo.
Qual a importância de Vale Tudo na cultura audiovisual brasileira e como ela pode dialogar com os novos tempos? Vale Tudo é a novela que marca a reabertura política no Brasil. Com a qualidade folhetinesca do Gilberto Braga, que fala do caráter do povo brasileiro às claras, a honestidade, a corrupção de ricos e pobres, no cotidiano. Acho que isso vai se manter na readaptação da Manuela. Considerando as diferenças e proporções, parece que estamos vivendo um apaixonamento pelo Brasil outra vez, vivendo uma pausa no Brasil da extrema direita, coisa que a gente vê, por exemplo, no grande sucesso de um filme como Ainda Estou Aqui. Vale Tudo é a mãe da novela moderna no Brasil. Vou fazer o personagem Polyanna, que é o melhor amigo da Rachel. Ele não tem esse nome à toa, é um cara que vê sempre o lado luminoso das pessoas, um personagem que acredita no povo brasileiro. Acho que isso vai me fazer bem de verdade. Além do fato de celebrar os 60 anos da emissora que, do ponto de vista da teledramaturgia, é a mais importante não só do Brasil, mas possivelmente do mundo. Apesar de ser trabalho, acho que fazer Polyanna vai ser um grande respiro para mim, vou fazer um personagem muito suave. Acho que vou descansar fazendo Pollyana.
O que acha de Taís Araújo, uma atriz negra de grande sucesso, assumir o papel que foi de Regina Duarte? Eu acho natural e oportuno. Tô assistindo a Vale Tudo no original agora para ver o tom das coisas, o tom do Polyanna, e percebido que a própria Raquel não foi feita por uma atriz preta, por causa dos comportamentos da época. O audiovisual tem contribuído para resolver essas questões identitárias. Eu acho que a Regina Duarte fez um trabalho lindo, eu sou fã da Regina como atriz, e acho que a Taís vai fazer muito bem. A Taís, aliás, veio para O Auto da Compadecida a pedido de Fernanda Montenegro. Fernanda não podia fazer por uma série de compromissos. Anda trabalhando muito e, claro, é uma pessoa idosa. Ela achou por bem não fazer e, como tinha feito o primeiro, achava que a Compadecida poderia ser representada de outra forma. Eu fiquei feliz porque tenho uma relação de amor muito grande com Taís desde que fizemos a novela Da Cor do Pecado juntos. Quando eu vi a Taís vestida pela primeira vez de Nossa Senhora, pensei “essa é a coisa mais bonita que já vi na vida!”.
Manuela Dias, a autora da adaptação de Vale Tudo, disse que já não cabe na teledramaturgia brasileira uma Odete Roitman com tanto ódio pelo Brasil como foi a personagem de Beatriz Segall. Uma versão politicamente correta de Vale Tudo funcionaria? O que o audiovisual tem feito é um trabalho bom de sustentar certas bandeiras e forçar a linguagem a mudar o comportamento. Eu entendo isso que a Manoela falou, sim – há um procedimento de coisas que não são mais viáveis. Mas, provavelmente, ela vai aprofundar outras maldades. É claro que esses temas identitários são urgentes, provocam um certo rebuliço, mas a gente não vai abrir mão de uma vilã como Odete Roitman!
Apesar dos avanços libertários que você percebe, vejo muitas novas Odetes Roitmans brotando no Brasil em que vivemos… A autora vai obedecer a algumas regras da nova linguagem, como Bruno Luperi fez com Renascer. O Inocêncio da primeira versão era muito mais machista. O Noberto da primeira sessão era muito menos profundo que o segundo. Mas ela não vai perder o quilate dos vilões – eu percebo, pela adaptação, que grande parte dos diálogos e ganchos são mantidos; outros, suavizados. Nos juntamos, todos do elenco, numa grande mesa para ler e tinha cena em que Odete chega da Europa e, nessa hora, a Heleninha Roitman tem sua primeira recaída no álcool. Eu não lembrava disso. A Paolla Oliveira faz agora a Heleninha, que é uma atriz muito diferente da Renata Sorrah. Mas quando eu a ouvi me deu um arrepio, a cena virou um clássico! Foi muito forte para nós. Vai ser uma novela para celebrar a qualidade das nossas novelas e a alegria dos nossos atores. A gente vai rever aqueles pontos dolorosos, de ser brasileiro.
Seu biótipo pode lhe impedir de acessar alguns papéis, mas, por outro lado, lhe facilita muito o acesso aos muitos tipos de uma brasilidade mais profunda, sim? Eu acredito que sim. Apesar de ser um homem incomum e meio específico, tenho um biótipo de palhaço, que serve para o homem comum brasileiro. Andando pelo Brasil, você vai encontrar pessoas como eu, umas mais claras, mais escuras, mas gosto de acreditar sempre que meu corpo se presta a vários sertões. E o Brasil, é um grande sertão. Eu viajo muito pelo mundo e percebo como nós somos todos um grande sertão. Nós pensamos que somos, mas não somos cosmopolitas. Somos pontualmente cosmopolitas em alguns lugares e pontos, mas, no geral, somos um grande sertão. É claro que meu corpo físico me proíbe algumas aventuras, como ser o macho alfa, o herói romântico. Mas eu posso fazer o milionário corrupto, o tarado pervertido, o travesti periférico.
Fotos Nilo Lima / Styling Marco Antônio Ferraz