Inquieto e curioso sobre a alma humana, o baiano Fabrício Boliveira largou Salvador e mergulho no mundo de possibilidade que sua arte poderia lhe levar. O levou para o bucólico Sítio do Pica Pau Amarelo, aos anos 70 de Boogie Oogie e à favela de Subúrbia (só para citar algumas paradas). E assim segue Fabrício, que no momento dessa entrevista estava em Nova York imerso entre estudos, descobertas e mais laboratório sobre o ser humano. Talvez, ou com certeza, venha daí a delicadeza e a verdade característicos que ele imprime em seus personagens e o faz crescer como ser humano e artista. Tivemos o prazer de conversar com ele e o resultado é daquelas conversas que te faz pensar e analisar. Bingo!
De Salvador para o mundo. Como você avalia sua trajetória? Difícil avaliar o caminho quando ainda estou construindo ele. Mas consigo perceber bastante modificações. Passei por exemplo, de um estudante ansioso, tentando sobreviver da arte, para um ator sobrevivente e com melhor entendimento do ofício arte.
Com personagens bem ecléticos, de Saci (Sítio do Pica Pau Amarelo) a produtor nos anos 70 (Boogie Oogie), de policial (Tropa de Elite) a rei do funk (Subúrbia)… A arte tem te levado a lugares que você nunca imaginou? A válvula motora do meu trabalho é a compaixão. “Com-Paixão” pela diferença, pelo outro e a sua possibilidade de vida. Aí consigo sair somente das minhas questões e me aprofundar numa outra história. O novo outro. E vivendo esse novo outro, não tem como não se autoanalisar. Ganho no autoconhecimento e ainda tenho material pro meu trabalho!
Você tem dado sorte ou escolhido bem os seus personagens? Protagonistas ou não, eles sempre se destacam nas tramas. A que se deve isso? Tenho sorte de gostar de farejar o que é necessário ser contado no instante presente em que vai se montar ou rodar uma obra. Leitura, conversas nas ruas, análises das situações políticas, históricas e sociais, são questões que abro no momento de escolha de um personagem. Uso a minha intuição também. Eu e alguns atores, acredito, nos sentimos muitas vezes como representantes dos desejos e porta vozes de muita gente. Como um catalisador. Então também me sinto escolhido por essas obras, já que elas precisam de alguém, um “cavalo” pronto para receber essa história. O Sergio Pena tem uma boa metáfora que define bem essa junção do desejo e ser desejado em relação aos personagens. Ele diz que nós, atores, caminhamos até a uma das margens do rio com toda preparação e paixão que carregamos. E da outra margem está o personagem à sua espera. E é ele, o personagem, que caminha por entre às águas ao encontro dos dois.
Até chegar tudo isso como foi? Conta um pouco do seu início… Eu comecei a trabalhar como ator na escola de teatro da Ufba, em 2001. Fiz amigos inspiradores e tive grandes mestres. Logo comecei a trabalhar profissionalmente fazendo a peça “Capitães da Areia”, com a Cia Baiana de Patifaria. Daí não parei mais. Fui apresentador de um programa do Governo e fui pro Rio pra fazer o filme “A Máquina” em 2003. Entrei na Globo, em 2006, na novela “Sinhá Moça” e concomitante não deixei de estudar. Aprendi muito com Amir Hadad, dialoguei com o teatro carioca e trabalhei nesse período com o grupo italiano Odin Theatre, na sede deles na Dinamarca. Já desejava fazer mais cinema, aí rolou o “400×1” que me deu a possibilidade de mostrar meu trabalho mais inteiriço no cinema e hoje tenho conseguido conciliar bem meus trabalhos entre TV, cinema e performances.
Acredito ser um pouco “fora de moda”, ou não, perguntar se já sofreu algum tipo de racismo e preconceito (por ser nordestino, negro…). Pelo jeito quanto mais evoluímos mais retrocedemos e o ser humano tem se tornado menos tolerante às diferenças. Como você ver tudo isso? Queria poder resolver tudo isso com um passe de mágica! Me cansa muitas vezes ter que repetir o discurso sobre o lugar do negro na sociedade brasileira. E o preconceito de cor da pele continua acontecendo nas redes sociais e nas escolhas de cast de séries, por exemplo, como foi o caso da produtora de elenco que presta serviço para o Netflix, dias atrás. Na verdade queria um antídoto que anulasse todos esses anos de construção de um pensamento cruel e excludente. Eu tenho tanta curiosidade e estou tão atento a respeitar os limites dos outros, que me choca o medo que as pessoas têm de lidar com o novo e o diferente. Buscar se conhecer e lidar com suas diferenças, pode fazer o respeito virar um cartão de visitas. E mais além, pode transformar o amor na chave de acesso ao outro.
Hoje em dia as redes sociais se tornaram um espaço para intolerância e exposição da vida privada. Como você lida com isso? Como impõe limites nessa vida digital? Sou hedonista. Se tenho muito prazer em algo posso ficar tempos absorto nisso. Por isso, tenho feito acordos comigo sobre o tempo diário na internet e nos aplicativos de sociabilidade. Apago de vez em quando e fico umas semanas sem mexer. (risos) Porque se de um lado facilita ter “todas as necessidades” agrupadas num aparelho, do outro, te faz escravo dele. Sua família, seu trabalho, seu lazer, sexo, amigos… Tudo é acionado num clique. Não se tem mais tempo pra reflexão, porque ficar “sozinho” se pode tirar rapidamente os 200.000.000 de amigos/seguidores do bolso.
No momento você está estudando em Nova York. O que espera trazer na bagagem? Isso também é uma forma de laboratório para você? Voltar com um inglês melhor! Abrir mais as possibilidades de conexão com o mundo. Trocar com outra cultura nos engrandece demais!
E como anda a vida cultural em Salvador? Tem acompanhado as produções locais? Estou sempre em Salvador. Nessa minha fase atual de “morador do mundo”, tenho tido mais tempo pra passar por lá. Acompanho as estreias dos amigos, o crescimento da Dança nas pós graduações e nos coletivos que veem surgindo. A música tem apresentado certos avanços com novas cantoras e bandas como: Marcia Castro, Marcela Bellas e Baiana System. Ou o tradicionalismo poético do Mestre Lourimbau. Mas, de algum jeito ainda sinto falta de grandes centros culturais patrocinados por empresas privadas que tem em todas as capitais e falta mais apoio do governo às novas experiências culturais ligadas a arte.
Dois de seus trabalhos de maior destaque na TV, Subúrbia e Boogie Oogie, foram bem apostos e muito bem cuidado pela direção e fotografia. Como foi participar desses dois trabalhos? O que te trouxeram de novo e desafiador? Subúrbia foi o meu primeiro trabalho como protagonista na TV e tive a sorte de trabalhar com o Luís Fernando Carvalho que revelou parte da minha potência criativa e me despertou pra uma autonomia sobre o meu trabalho. Uma direção requintada e ousada que não deixava ninguém só em suas funções. Éramos um coletivo e todos respondiam por tudo. Eu, por exemplo, respondia pela escolha do meu figurino e até pela continuidade dele. Era uma liberdade criativa com responsabilidade, um equilíbrio que poucas vezes experimentei. Já “Boogie Oogie” foi uma volta às novelas depois de 5 anos. Pude contar mesmo com o respeito e a parceria do Rui Vilhena, autor da novela, que jogava muito com os atores, propondo e escutando também as respostas. Muita coisa mudou durante a novela como o casal Tadeu e Inês (Deborah Secco), por exemplo, que deu super certo, não estava escrito. Mas foi uma descoberta a partir desse diálogo entre autor, atores e diretores.
Seu mais novo trabalho nos cinemas foi “Operações Especiais”. Conta um pouco do seu personagem e do filme… O filme é uma fábula sobre uma polícia honesta e de como a população reagiria em relação à sua corrupção cotidiana. Acho que o filme abre de forma sutil, mas presente, discussões a respeito das ocupações femininas em funções ditas masculinas, o papel da polícia na sociedade e a isenção da população nas decisões em que são socialmente responsáveis. E ainda é um filme de ação! (risos) Eu faço o Décio, um policial honesto e que não segue as regras sem discuti-las. Adoro a possibilidade de bom senso que o Décio apresenta. Acho de um empoderamento social e de uma dignidade que poucas vezes encontrei.
Ao longo do tempo e da maturidade você foi se tornando um cara mais ligado com a aparência? Como lida com o espelho? Sempre fui um cara ligado à aparência também. Não dá pra negar a necessidade de uma forma confortável e adaptada ao conteúdo. Curto jogar com as roupas que uso, por exemplo, elas podem falar do meu estado emocional ou de como penso a vida.
Falando em outro tipo de vaidade… Ano passado você ganhou o prêmio de Melhor Ator por “Faroeste Caboclo”, isso te envaideceu muito? Que peso teve para você esse prêmio? Todos os prêmios do Faroeste eu os comemorei como meus, porque tinha uma questão com esse filme. Tive experiências muito boas na feitura de alguns filmes e eles tiveram baixa bilheteria e críticas ruins. E o contrário também existiu. Precisava voltar a acreditar que um trabalho coletivo e horizontal pudesse render bons números e prêmios. E fiquei envaidecido sim, apesar de saber que o João de Santo Cristo foi construído pela ótima direção do Rene Sampaio, a amorosa preparação do Sergio Penna, pelos produtores, Bianca de Felipes, Marcelo Maia, Gabriel Bortollini, Lívian Valias, pelo Gustavo Adba, Tiago Marques, Auri Motta, Valeria Stefani, Mari Reginaldo, Edu Mourão, Ceará (e toda maravilhosa equipe) … E eu. Eu não nego a minha contribuição e carrego com orgulho esse filho nosso!
Quando não está trabalhando o que curte fazer para relaxar? O que te diverte? Música é sempre uma boa pedida. Em casa dançando só ou num show com uma multidão, ouvir música e dançar fazem a “digestão mental” que necessito.
O que curte ler, ver e ouvir? Leio de tudo. Agora estou lendo o Tristes trópicos, uma matéria na revista Cult da Judith Butler e um livro do Ai Weiwei. Tudo junto! E mais as leituras do trabalho. Aqui em NY tenho acompanhado uma série chamada “Empire”. Vi também um espetáculo de um grupo local, The Wooster Group fazendo uma montagem do Pinter. Tenho ouvido Baiana System, Meta Meta, O brasileirão moderno tropicalista de sempre e muito jazz!
Quais os próximos projetos? Mês de outubro estreei, além do “Operações Especias”, o lindíssimo filme “Nise da Silveira- senhora da loucura” (premiado no Japão como melhor filme e melhor atriz pra Glorinha) do diretor Roberto Berliner; e faço uma participação no filme baiano “Tropikaos”, que acabou de ser exibido no “Panorama Coisa de Cinema”, em Salvador e na mostra de São Paulo. Tenho dois filmes muito importantes e diferentes esse ano de 2016. O filme do Wilson Simonal, vivendo o próprio; e o filme do Planet Hemp, dando vida a uns dos fundadores da banda, o Skunk. E mais as loucuras artísticas que devo inventar e me envolver com certeza no decorrer desse e do próximo ano.
Fotos Luciana Sposito
Direção criativa Marco Antonio Ferraz
Make Thiago Brandão
Estilyst Wesley Duffrayer
Roupas The Clube
Agradecimentos Carlos Werneck / Hotel Marina All Suites