PALADAR: Conhecendo nossas origens no Nordeste gastronômico

Se um famoso dito popular fosse criado nos dias de hoje ele agora alertaria: “Só criatividade não põe mesa”. Uma mensagem sobre o quanto é preciso ir além, racionalizando a forma como se come, aproveitando ingredientes pouco valorizados e conferindo a eles status de iguaria tão apreciada por gourmets. Missão para o chef pernambucano Claudemir Barros, que comanda a cozinha de um dos mais conceituados restaurantes do Recife/PE, o Wiella Bistrô, ao se engajar, ainda em 2012, no projeto de sua autoria, o PlantarAção. De lá para cá, adentrando o Sertão, descobrindo insumos, incentivando seu plantio e trabalhando a autoestima do povo castigado pela pobreza, o chef divide seu tempo entre a requintada cozinha e a surpreendente estrada.

O resultado dessas incursões são pratos peculiares, que partem das descobertas e misturam sabores, cores e texturas de maneira simbiótica, como uma espécie de culinária. O contraditório é que a casa, tipicamente internacional, tem menu baseado em pratos tradicionais, como os consagrados carré de cordeiro com ragu de cogumelos e a pescada ao molho l’anciènne, acompanhando o gosto e a exigência de seu público, que passa longe do cardápio brasileiro. Por isso a magia acontece no menu degustação, onde o chef tem total liberdade para experimentar suas novidades e surpreender os clientes mais destemidos. Vale destacar a coragem dos proprietários da casa que permitem e apoiam que sejam apresentadas as novas receitas. “Meus preparos para o Wiella seguem o perfil do restaurante, mas também há essas opções diferentes, como o chambaril vegetariano em que a carne é o caju, o osso é o facheiro e o tutano é o umbu, todos descobertos nas minhas viagens em contato com o povo humilde. Não é que o cliente vai chegar lá e vai ter que comer aquilo, mas eu preciso mostrar sua existência, ele pode se aventurar ou não. E, de quebra, conhecerá produtos regionais”, justifica.

Os anos de pesquisa e mais um tantinho de sorte conduziram Claudemir recentemente a comunidades indígenas sertanejas – povo até então desconhecido para ele. “Por conta desse meu interesse, fui convidado a ir em Serra Talhada, no Sertão, conhecer a técnica do bode enterrado – prato originário dali, feito em um ritual que consiste em matar o animal, abri-lo e tempera-lo com sal e os ingredientes específicos da região. A cocção é feita de duas maneiras, uma com o bucho do bode e a outra utilizando o bulbo do umbuzeiro selado, como um tipo de panela de pressão”, explica. “Como ele passa 12 horas ‘cozinhando’, saí para explorar a Caatinga. Nesse passeio, encontrei o croá, bromélia que pode ser totalmente aproveitada. Seu núcleo é uma espécie de palmito, suas folhas acumulam um isotônico natural e sua fibra vira artesanato. Perguntei ao guia quem descobriu o uso daquela planta tão incrível, e ele falou sobre os índios do Sertão. Fiquei extasiado, eu os via nos livros, mas não acreditava muito. Foi aí que recebi o convite para também visitar algumas tribos”.

 

Dessa vivência, conhecendo e fazendo parte do dia a dia desses índios, Claudemir aprendeu novas técnicas, descobriu outros ingredientes e participou de cultos fechados. Para celebrar essa experiência, trouxe a receita que se transformaria no novo Prato da Boa Lembrança, um desafio ao paladar apurado dos frequentadores do Wiella, mas que vem trazendo um ótimo resultado, fazendo o público mergulhar em sabores tão exóticos. “Em Rodelas/PE, conheci os Tuxás, o povo mais ‘civilizado’ desses que visitei. Eles trabalham e têm contato com a tecnologia, mas à noite, em casa, praticam os costumes ancestrais, com direito a cachimbo, maracas e invocação de suas entidades. A maioria trabalha no rio São Francisco, numa área de divisa entre Pernambuco e Bahia, nos cativeiros de camarão e tilápia. Foi onde surgiu a ideia do novo Prato da Boa Lembrança, o Pirá Pitu da Baixa do Chico (pirá significa peixe em tupi e pitu, camarão de água doce)”, explica.

A criação traz o contexto indígena, com ingredientes possíveis de ser mantidos. O prato leva camarões e molho de coco sobre um filé de tilápia finamente empanado com trigo e alecrim do mato, erva aromática bastante utilizada na culinária daquele povo, guarnecidos por vatapá de abóbora com castanha. “Depois de passar por uma experiência dessa eu precisava homenageá-los e enfatizar que aquilo ali existe e que a gente deveria conhecer mais”, ressalta.

 

A segunda parada foi na aldeia dos Pankararés, em Paulo Afonso/BA, onde vivem isolados no chamado Raso da Catarina. Por lá, apesar de haver espaços permitidos apenas para indígenas, foi possível o contato com a cultura e o preparo de seus alimentos. “Eu tinha liberdade para andar por toda a aldeia, mas sem mexer em nada. Queria cozinhar e não podia, isso só é permitido às índias, homem não se mete na cozinha, no máximo corta os ingredientes e deixa na mão delas. Mas podia conversar e perguntar sobre os métodos. Também presenciei o preparo de carne de sol. Mataram dois bois e fizeram tudo absolutamente como antigamente, como uma viagem no tempo”, recorda.
Seguimos para a aldeia dos Pankarás, em Itacoruba/PE, tribo tradicional não fosse pelo fato de o cacique ser uma mulher. Por lá, Claudemir se deparou com elemento já conhecido. “Eles fazem pão com aquele mato, o Croá. São muitas preparações de tempos atrás que, tristemente, estão se perdendo. Claro que eles buscam novos ingredientes para as receitas, mas há que se fazer um trabalho para preservar a cozinha de seus ancestrais”, coloca.

Quando questionado sobre o seu principal objetivo com essas incursões por terras pouco conhecidas, o chef tem a resposta na ponta da língua. “A minha intenção por trás disso é alimentar minha fissura pela gastronomia em primeiro lugar. Em segundo, mostrar que o Nordeste e seus insumos estão na rota. Isso veio ainda em 2013, após uma palestra do grande mestre Laurent Suaudeau, que disse não querer acordar um dia e saber que a cozinha brasileira estava somente no Amazonas. Que o problema está no fato de não conhecermos nossas origens, já que a história do Brasil começa no Nordeste e essa região tem ingredientes tão nobres quanto o Amazonas. Aquilo me tocou. De lá para cá, tenho dedicado boa parte do meu tempo e esforços para isso. Não é afrontar, mas posicionar o estado e a região na história e torná-los reconhecidos. O novo Prato da Boa Lembrança do Wiella é um exemplo de como podemos tornar isso possível”, finaliza.

 

WIELLA BISTRÔ
Av. Engenheiro Domingos Ferreira, 1274, lj 14 – Boa Viagem – Recife/PE
Fone: (81) 3463.3108