CAPA: Juliano Cazarré, o “pai” do MC Merlô de “A Regra do Jogo”, vai muito além de cinema e TV

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Se tem uma coisa que Juliano Cazarré transmite é estar bem consigo mesmo e com suas escolhas. Com uma visão de mundo que inspira respeito ao próximo e às suas escolhas, Juliano escolhe viver bem todos os dias, um dia por vez. Assim lida com tranquilidade com a profissão, com a fama, com personagens desafiadores e com as dificuldades que cruzarem seu caminho. Apaixonado pela leitura é também escritor e vê na educação o caminho para a transformação.

Começo de carreira, mais certezas ou incerteza? (risos) Como se deu isso? Eu diria que mais esperança que medo. Cursar Artes Cênicas não foi uma decisão fácil, as perspectivas não eram muito animadoras, meu pai tinha receio que eu acabasse fazendo malabares no semáforo… (risos). Mas eu gostava tanto de estudar aquilo, de me apresentar no teatro, que eu pensava que daria certo. Eu não tinha certeza de que seguiria sendo ator, mas eu sentia que fazer o Curso de Artes Cênicas na Universidade de Brasília me prepararia para ser artista em alguma área.

Cinema, TV, teatro… o que te desafia mais? Existe diferença? Eu gosto dos três, cada um tem seus desafios e suas delícias. A televisão é onde o trabalho do ator pode chegar a mais gente em menos tempo e dá a chance de nos comunicarmos com um público que muitas vezes não pode e nem tem o hábito de ir ao teatro ou ao cinema. O cinema é uma aventura, a gente fica ali uns poucos meses trabalhando num filme, muitas vezes longe de casa, mas quando o filme fica pronto é uma alegria, um orgulho enorme. E no cinema o “mergulho” pode e deve ser mais profundo que na televisão. Já o teatro é a casa do ator, o ator é quem manda. No palco não tem – ação(!), não tem – corta(!), não tem edição, não tem segundo take, nem segunda chance. É um enorme desafio, estar ali frente a frente com o público. Mas fazer um belo espetáculo para uma plateia cheia é um tesão diferente, que o cinema e a TV não conseguem dar.

Por falar em cinema… Cinema nacional, estamos indo bem? Acho que sim. Eu sou um cara que sabe muito pouco da parte das leis, dos incentivos, da política de cinema no Brasil. Mas eu vejo que nossa produção aumentou bastante nas duas últimas décadas e volta e meia o Brasil lança um lindo filme. O cinema pernambucano certamente é uma referência e muita coisa bacana vem de lá, mas há cinema bom sendo feito quase no país todo. Acho que ainda precisamos construir público e acho que há espaço para um cinema que seja ao mesmo tempo atraente para um grande público mas que tenha qualidade e faça pensar.

“Boi Neon”, do pernambucano Gabriel Mascaro, é seu filme mais recente, conta pra gente um pouco da experiência. Foi um filme difícil e interessante de ser feito. Tínhamos uma equipe reduzida e pouca verba (como quase sempre!), mas todo mundo ali sabia que o filme podia ficar muito legal. E foi isso que aconteceu! Boi Neon vem ganhando prêmios em todos os Festivais Internacionais por onde passou e eu espero que o Brasil inteiro goste do filme quando estrearmos agora no começo de 2016. No filme, eu interpreto um vaqueiro que quer ser costureiro, um personagem muito interessante, uma delícia de interpretar.

Em A Regra do Jogo, seu personagem se relaciona com duas mulheres. Acha possível o chamado poliamor? Acho. E há vários casos por aí que provam que esse tipo de união é viável. Onde há amor, eu acho que vale tudo.

Casado, pai de 2 crianças, como é a dinâmica familiar em sua casa? Somos uma família contemporânea como qualquer outra, eu e minha esposa dividimos as tarefas, temos a ajuda de uma babá… É uma correria maluca, já que eu e Letícia estamos numa época da vida em que precisamos trabalhar muito, mas a gente consegue cuidar bem das crianças e da casa.

Como é o pai Juliano Cazarré? Como cria seus filhos e o que tenta ensiná-los de mais importante? Mais do que ensinar, nesse momento da infância deles eu me preocupo mais em estar presente. Costumo parar bastante o que estou fazendo para dar atenção pros meninos, brincar com eles, ouvir com calma o que eles têm para dizer. Às vezes, eu me cobro muito porque acho que poderia produzir mais, escrever mais, se eu fosse um cara que fecha a porta do quarto e se concentra no trabalho. Mas eu não acho que o sentido da vida seja apenas trabalhar e produzir. Penso que o sentido da vida é justamente viver. E os momentos em que me sinto mais vivo é quando estou ao lado dos meninos brincando, contando estórias…

Em tempos de discussões de gênero, empoderamento feminino, qual sua visão? Vai ser difícil, incômodo para os homens, mas o empoderamento feminino é o que precisa ser feito. Não é fácil mudar, aceitar mudanças, não é fácil perder espaço ou procurar um novo espaço. Mas é isso que os homens precisam fazer. O machismo está enraizado em nossa cultura (e no mundo inteiro) e ele aparece em piadas, em cantadas, na nossa maneira de se referir às mulheres. Por exemplo, nas ruas, por causa da novela, nenhum homem vem me perguntar sobre as minhas colegas, ou vem dizer que elas são engraçadas, ou se são boas atrizes. É sempre um comentário do tipo: – E aquelas gostosas lá?! – Tá se dando bem com as gostosa, né não?! Vai demorar, mas isso precisa mudar e a mudança já começou. As mulheres têm muito para contribuir em nossa sociedade, em todas as áreas. Precisamos ouvir as mulheres, respeitar suas ideias, suas opiniões, suas decisões, seus corpos e seus limites. Precisamos dialogar de igual para igual.

Como lida com fama e assédio? E como separa isso da vida privada? Levo de um jeito tranquilo, nem penso muito nisso. Tento não me incomodar com o assédio e nem ficar me sentindo mais importante do que ninguém por causa da fama. Tento manter a cabeça no lugar e os pés no chão, só isso. No dia em que um ator passa a se sentir muito importante por causa da fama ou do sucesso, sua carreira começa a morrer. O ator precisa estar em contato com a sua humanidade, para trabalhar bem.

Na época da novela Amor à Vida você viajou para o Peru. Como foi a experiência em Machu Pichu? De gravar “fora de casa” em um cultura tão diferente? Foi muito enriquecedor, amei conhecer a cultura e o povo peruano. Era uma sensação estranha, conflitante, porque ao mesmo tempo em que você fica abismado com a potência que era a sociedade Inca, todo seu desenvolvimento astronômico, arquitetônico, sua agricultura extremamente complexa para a época, você fica indignado com a chacina e o extermínio que os colonizadores fizeram. A humanidade perdeu muito com o genocídio dos povos pré-colombianos, eles certamente tinham muito a nos ensinar.

MC Merlô vive sem camisa, é vaidoso em relação a seu corpo? E na hora de se vestir, qual seu estilo? Eu cuido de meu corpo, cuido da saúde, faço esporte, procuro me alimentar bem. Quero estar com o corpo bonito, quem não quer? Mas não é uma neurose, eu como coisas com glúten, como carne, manteiga. Tento maneirar nas quantidades e também ingerir alimentos saudáveis, frutas, verduras, grãos integrais. Meu estilo de vestir varia muito. Eu gosto de me vestir, mas como o Rio é muito quente, eu acabo dando preferência ao conforto. Adoro calças, casacos e jaquetas, mas aqui é difícil de usar. Também adoro usar terno e gravata, queria usar mais.

Nu não é tabu pra você, porque é pra tanta gente, ainda mais o nu masculino? O pênis é um tabu. O pênis foi demonizado na Idade Média e nunca mais foi tirado dessa situação. O pênis era o órgão do diabo, um órgão com uma mente e vontade próprias. Até hoje, fazemos essas brincadeiras sobre “pensar com a cabeça de cima ou com a de baixo”. O celibato de Jesus, por exemplo, mostra o domínio do Cristo sobre as paixões humanas, ele é um homem, tem um pênis, mas não usa para fins reprodutivos ou para diversão. Acho que grande parte do tabu vem dessa visão demonizadora que as religiões pregaram durante muito tempo. E acho que outra parte do tabu vem justamente do machismo. Um homem não pode ver o pênis de outro homem (mesmo que seja numa tela de cinema) porque isso diminui sua masculinidade de alguma maneira… E o namorado ou marido vai achar ruim que sua companheira veja uma cena com nu masculino, embora as cenas de nu feminino sejam vistas com naturalidade e estejam por todos os lados.

Se o pênis estiver duro, é pornografia. Mole não pode, porque é feio, blábláblá… Tem as piadas com o tamanho. Essa conversa é longa. Eu tenho um livro muito interessante sobre o tema, chama-se Uma Mente Própria – A História Cultural do Pênis, de David M Friedman. Recomendo muito a leitura, para homens e mulheres. Acho que precisamos resgatar o orgulho do pênis. O pênis não pode ser o órgão da vergonha. Isso não é questão de ser machista, de defender que quem tem o pênis tem o poder. Nada disso. Acho que os homens precisam e devem abrir mais espaços para as mulheres, para a energia feminina, mas a gente pode fazer isso dizendo – somos assim mesmo, não temos a obrigação de estar sempre eretos, não somos obrigados a ter pênis enormes de ator pornô. E, sim(!), somos capazes de ver uma cena de nudez masculina sem piadinhas ou risinhos disfarçados. Temos orgulho dos nossos paus, moles ou duros, grandes ou pequenos, grossos ou finos. Precisamos antes de mais nada, respeitar a soberania das mulheres sobre seus corpos, o estupro e o assédio não tem mais lugar, devem ser eliminados. Mas não podemos culpar o pênis, como se fazia na Idade Média, o culpado é o Homem.

Você costuma viver personagens densos no cinema, é uma preferência sua? Quais seus critérios para aceitar ou não um papel? Não é uma preferência, mas eu amo fazer filmes mais densos, personagens desafiadores. Por outro lado, eu adoraria fazer uma boa comédia no cinema. Fiz o Sorria, Você Está Filmado, de Daniel Filho e foi um barato! Tem vários aspectos que podem chamar minha atenção num filme – o roteiro, os diálogos, o diretor, se o personagem é interessante, complexo… Por exemplo, eu não conhecia e tinha poucas informações sobre Gabriel Mascaro, diretor de Boi Neon, mas o roteiro era tão interessante e o personagem tão diferente que eu quis fazer. Por outro lado, se o Fernando Meirelles ou o Luís Fernando Carvalho me chamassem para trabalhar eu iria sem ler o roteiro nem nada.

A paixão pela poesia veio de seu pai? Qual a importância da leitura em sua vida? A paixão pela literatura veio de meu pai. Meu pai não é um grande leitor de poesia, ele lê mais ficção, romances, contos e novelas. Mas meu pai me ensinou o amor pelos livros e eu quero passar esse amor para  meus filhos. Quem gosta de ler, pensa melhor, sente melhor, vive melhor. Eu não sei explicar, mas sinto que é assim.

Além de ler, você também escreve, já publicou algo ou pensa em publicar? Publiquei um livro de poesias chamado Pelas Janelas, em 2012. Quero continuar escrevendo, quero escrever mais, mas por enquanto minha carreira como ator tem me ocupado bastante. Ando sem tempo até para ler…

Quais seus autores preferidos? Algum poema em especial que considera “a sua cara”? Muita gente… Difícil. Sou apaixonado pela Ilíada e pela Odisseia. Esse ano li o Dom Quixote e amei o livro. Gosto do Guimarães Rosa, do João Cabral de Melo Neto, do Nelson Rodrigues… Tem um poema do João Cabral que eu amo e que eu acho que fala muito sobre a arte, o artista, sobre o fazer artístico e a razão que leva alguém a produzir arte. É assim:

O Artista Inconfessável
Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

Você gosta da pessoa que você é? Eu gosto. Mas eu quero mudar várias coisas…

Religião, espiritualidade, Deus, como vê tudo isso? Acho todos devem ser livres para buscar a religião que bem entenderem, ou nenhuma religião se for o caso. O que não pode é uma religião interferir nas vidas de pessoas que não são seguidoras daquele credo em particular. E nunca, de maneira nenhuma, as decisões do Estado devem ser pautadas por essa ou aquela religião. Se a sua religião não permite o aborto, ok, não aborte. Mas não queira empurrar suas crenças para outras pessoas. Se a sua religião não permite o homossexualismo, ok, mas saiba que as outras pessoas são completamente livres para casar ou para transar com quem bem entenderem. Eu, de minha parte, creio em Deus, rezo, tento praticar a caridade, a simplicidade… Fui criado no espiritismo de Kardec, tenho crenças profundamente cristãs por conta disso. Mas tem horas em que olho pro mundo e me questiono – será que existe mesmo um Deus? Por que Ele permite que tanta coisa ruim aconteça?! Cada um tem a sua fé, existem infinitas versões para o que existe de divino, para o que existe depois da morte. Mas todas essas respostas dependem da fé. O que eu sei é que estamos vivos, a vida é o grande milagre. Caminhar, conversar, namorar, ver os filhos crescerem, fazer um esporte, olhar a natureza, tudo isso é o grande milagre. Precisamos valorizar a vida. Porque do outro lado ninguém sabe como é. Pode existir tudo, inclusive nada. Vamos gozar a vida enquanto a temos, porque nossa existência na terra será breve.

Cultura em geral, o que nos falta? Falta o Brasil investir pesado em Educação. Precisamos mais do que apenas um slogan. E temos que dar prioridade para creches e educação fundamental. O Brasil não pode ficar pensando em Universidades quando os jovens ainda saem da escola sem saber ler direito e com dificuldades básicas em matemática. O Brasil tem uma cultura riquíssima e diversa, mas ainda é muito mal educado.