ARTE: PERSONALIDADE EM CORES COM EDUARDO KOBRA

Por Ivan Reis

É difícil não reconhecer o trabalho de Eduardo Kobra nos prédios de grandes capitais dentro e fora do Brasil. Com cerca de 3.000 murais espalhados por mais de 35 países e cidades brasileiras como São Paulo, Nova York e Paris. O artista é consagrado pelo estilo hiper-realista de cores fortes para representações humanas em grandes proporções. No último mês, Eduardo Kobra entregou na cidade de Cotonou, na República de Benin, na África, um mural de 700 metros quadrados. “Na arte, todos estão de costas, abraçados e olhando para o céu. Nas estrelas, vemos constelações que formam ícones de religiões. E, no centro do mural, há a Terra, a África e duas mãos ‘abraçadas’. A mensagem é clara e, acredito, universal, bem de acordo com os murais em que destacamos a coexistência”, explicou o muralista.

Nascido em 1975, Kobra saiu do Campo Limpo, bairro da região periférica de São Paulo, para se tornar um dos artistas mais reconhecidos com obras espalhadas pelos cinco continentes. Em conversa com a MENSCH, o muralista brasileiro falou sobre alguns pilares de sua obra. Antes de embarcar para seu próximo destino, Kobra explicou seus processos criativos, sua intensa pesquisa até o resultado final. Sua arte leva mensagens de paz pelas telas urbanas que preenchem os olhos de tantos admiradores. “Estou fazendo minha parte em distribuir cores pelo mundo. Espero transformar o dia das pessoas e que as mensagens possam chegar em seus corações”, afirmou o artista.

Quando percebeu que o espaço urbano é a tela para o seu trabalho? Aconteceu da forma mais orgânica, natural e espontânea possível. Provavelmente, os primeiros contatos com arte já tinham acontecido nos muros. Então, esse suporte sempre foi a base principal para a criação dos meus trabalhos. Desde o bairro onde eu nasci, no Campo Limpo, na minha casa, na minha sala, no meu quarto para, depois, a minha rua, a cidade e, finalmente, os grandes murais ao redor do mundo. Esse sempre foi o meu suporte – desde a ilegalidade até o ponto em que passei a ser convidado a realizar esses murais. É um privilégio e uma honra ter a cidade como galeria de arte.

Como é o processo de criação de seus desenhos? Não existe um único processo. Eu também sempre coloco a criação como mais importante do que a execução e a pintura. É um conjunto em que tudo é relevante e funciona como uma engrenagem. No entanto, da criação, surge o significado, a inspiração e o porquê de aquilo estar sendo realizado. Existe a imersão, a pesquisa, a busca, a conversa com pessoas, a ida às bibliotecas. Eu chego a passar madrugadas inteiras assistindo a séries e documentários sobre o tema que vou tratar, do país que vou visitar, consulto historiadores e passo a fazer dezenas de desenhos para chegar ao resultado que preciso. Depois da pesquisa, faço muitos esboços e os transformo em imagens. Foram raríssimos os casos em que resolvi um mural com apenas um desenho, até porque eu me divirto com isso. A pesquisa, o estudo e a criação é uma das partes que eu mais gosto de fazer. Eu vou refinando – é como um diamante bruto que você vai lapidando até chegar ao resultado esperado. Nem sempre consigo chegar ao resultado que a minha pequena capacidade alcança, por minhas limitações. Às vezes, tenho uma meta ambiciosa e não consigo alcançar ou, por vezes, faço algum trabalho que nem sequer tiro foto. Sigo me esforçando e aprimorando meu trabalho.  

O passado da Street Art carrega um histórico de preconceito em relação à arte tradicional. Dos países em que pintou, já sofreu algum tipo de censura? A Street Art carrega isso sem dúvida. O preconceito geralmente está ligado à falta de conhecimento. Foi um momento de retrocesso. Na história da humanidade, temos grandes muralistas, como os italianos e a Europa de uma forma geral, depois, nos Estados Unidos e, até mesmo, na China e no Japão. De repente, isso foi renovado e se utilizou de novas técnicas e materiais. Surgiu o grande preconceito ou a dúvida sobre o que era isso, porque pintar na rua e que isso era atividade de vagabundo. Na realidade, com o passar do tempo, esses artistas que, na maioria, eram da periferia e autodidatas, começaram a demonstrar tamanha qualidade na realização de suas obras que não foi mais possível manter esse muro que separava as artes tradicionais do que estava acontecendo nas ruas. Hoje, não é possível afirmar que exista – ao nível de percepção e sensibilidade artística – alguma diferença. A minha vida inteira foi traçada por preconceito, discriminação, agressividade por parte de quem passava nas ruas e me via pintando. Digo preconceito em todos os aspectos. Não apenas onde eu comecei, como também pelo mundo. Tive murais apagados, a polícia já ficou vigiando o tempo todo enquanto produzia murais na Rússia, por exemplo. No Japão, quando ía ao banheiro, achavam que poderia vandalizar algo. O tempo foi passando e mostrando que a intenção dos artistas e a entrega que faziam passou a ser respeitada. Isso mostrou que a arte transforma e melhora o cotidiano das ruas.

Recentemente, você entregou um mural em Benin, na África, com 12 pessoas abraçadas em clara mensagem sobre união, coexistência e diversidade de credos. Como a arte urbana estimula o pensamento crítico no mundo em que vivemos? Assim como num museu ou em uma galeria, os artistas têm diferentes manifestações, formas de pensar e técnicas. Nas ruas, não tem nada diferente. Há artistas que vão pelo abstrato, outros que fazem desenhos mais animados. São muitas criações, e de diferentes caminhos. Eu trato de temas que falam de racismo, intolerância, violência, coexistência, paz, de união dos povos, História, memória. O meu é esse na arte urbana, e não de forma aleatória. Eu não abraço causas ou questões com as quais eu não esteja realmente envolvido. São fatos que eu vivi durante a minha infância, que me incomodaram e que eu quis mudar de alguma forma. Então, utilizo o meu trabalho como um manifesto para conscientizar sobre esses assuntos. Claro que nem sempre são bem vistas. No caso do mural de Benin, nem todos o veem com bons olhos. Por eu ter tido a oportunidade de passar pelos cinco continentes, a mensagem da obra é “Amai-vos uns aos outros” e tolerar, pois, hoje, a maioria das guerras e violência vêm dessas intolerâncias que não aceitam as decisões do próximo. Muitos querem convencer alguém por violência, mas não é possível. Só é possível pelo amor, pela compreensão e pelo exemplo de nossa própria vida. Eu sou um cristão, e quero, através dessa mensagem, mostrar que é possível conviver em paz com todas as outras religiões. 

Você também é conhecido por retratar personalidades das artes e da mídia. Recentemente, fez uma homenagem à jornalista falecida Glória Maria para a televisão. Quais são os seus critérios de escolha de personagens para os seus trabalhos? Fiz alguns pouquíssimos e recusei muitíssimos. Inclusive,  políticos me procuraram para pintar prédios e murais com ofertas de valores altos, mas o princípio de tudo é a identificação, a conexão. Muitas vezes, conheci algumas pessoas que me inspiraram de alguma forma, que lutaram pela paz e pelos valores nos quais eu acredito. Eu poderia dizer que a maioria das pessoas que eu retratei nos meus murais são anônimos, como refugiados e imigrantes. Há uma série que fiz dos trabalhadores na Avenida Paulista em que a conectei com obras de arte famosas. São trabalhadores do dia a dia de São Paulo, como cobradores de ônibus e motoristas de caminhão. A maior parte dos meus trabalhos fala dessas pessoas que acordam cedo, que dão duro e que representam a locomotiva do nosso país.

Muitos aproximam o seu trabalho a grandes nomes da arte contemporânea, como o britânico anônimo Banksy e o americano Keith Haring. Quais influências você reconhece em seus trabalhos? Quem me dera chegar pelo menos perto. Jean-Michel Basquiat é um ícone e um artista que está no nível dos gênios da arte. Na verdade, tenho muitos tipos de arte como inspiração que vão da arquitetura ao paisagismo, artes clássicas e murais. Existe muita coisa que me inspira, e consigo ver arte em muitos lugares. De tudo o que a gente absorve, o importante é pintar com o próprio pincel e seguir o seu caminho. Ter um porquê em fazer aquilo e um significado. Tenho uma plenitude com o meu trabalho, pois, como sou retraído na vida pessoal, consigo ser extrovertido através das minhas obras e comunicar com milhões de pessoas pelo mundo sem dizer uma palavra. Com toda a humildade, o meu trabalho tem sido publicado em livros didáticos. Você deve imaginar o que é um artista autodidata, que jamais imaginava sair do bairro onde nasceu, ter o privilégio de ser estudado. É impressionante. 

Em entrevista, você afirma que a Arte vem de dentro para fora e, portanto, não há diferença entre o que vemos nas ruas e o que está nas galerias de arte. Como você vê a nova geração de artistas que faz esse movimento das ruas para as galerias e vice-versa? Confesso que devo ter nascido para fazer isso mesmo, porque não consigo ficar em um escritório. Sou um cara da rua. Então, a cada dia, estou em uma cidade, num bairro, num país, viajando com essa grande oportunidade que Deus me deu. Da mesma maneira que vemos um movimento forte de artistas que só pintavam para galerias, museus e que, hoje, estão nas ruas. A maioria dos artistas que pintam nas ruas, hoje, não tem conexão com a história da arte. A grande maioria surgiu há cinco anos, mas isso é maravilhoso e não há problema. Artistas das ruas são convidados para estarem nos museus e com suportes diferentes. Cada um tem a sua motivação. No meu caso, tive a oportunidade de ser exclusivo de uma galeria e de poder viajar pelo mundo, mas mantenho as minhas origens e a maior parte dos meus trabalhos se concentram nas ruas. Pretendo fazer isso enquanto eu tiver forças para subir as escadas. Essa é a minha verdade, e eu vejo com bons olhos. Os murais que estão nas ruas podem ser deteriorados e apagar, mas o que está em uma galeria ou museu vai ser preservado. Para cada obra que faço na rua, eu pinto um original em tela que pode ser exposto em qualquer lugar ou ser adquirido por um colecionador. 

Dos quase 3.000 murais que já pintou, qual deles você acredita que possui uma história relevante em sua trajetória como artista? Nenhum artista pode ser analisado por uma única obra. Há um fio condutor que une tudo isso, o porquê fiz tudo isso, que está conectado com o que eu sou e com os meus valores. A última obra que fiz no Benin ou na Índia acrescentou muito para mim como ser humano com aprendizado, amadurecimento, entendimento, o olhar pelo próximo e isso é imprescindível. Além de aprender com os erros do passado, evoluir, melhorar e trazer mensagens cada vez mais significativas de respeito porque nós, na realidade. Temos histórias do passado que estão sendo construídas de uma forma ainda pior em muitos aspectos, hoje. Eu posso utilizar o meu trabalho para chegar em pessoas com as mensagens em que acredito. 

Seus murais ocupam espaços em grandes cidades do Brasil e do mundo, como São Paulo, Rio de Janeiro, Nova York e Paris. Existe algum lugar que você ainda deseja marcar com a sua arte? Eu fiz muito mais do que sonhava. Estou aqui com grandes expectativas, muitas oportunidades e ainda tenho muito para entregar. Vamos ver até onde Deus vai permitir isso. Hoje, vejo o meu trabalho como uma missão. Muitos veem o lado glamouroso. É bacana poder viajar e com as condições que eu alcancei, mas ficar longe do meu filho Pedrinho, da esposa, da família e do meu país não é fácil. Fiquei quase um mês fora e estou indo viajar novamente em menos de cinco dias. Isso tem um lado complicado, mas preciso entender o privilégio que é todos esses convites que recebo. Na pandemia, tive a experiência de ficar trancado em casa e ouvir o quão doente fiquei por conta disso. Resolvi que é seguir em frente. Fazer e entregar sempre o meu melhor.

A paz sempre está nas mensagens de suas obras. Para além do branco, se a paz fosse uma cor, qual seria? As muitas cores que eu coloco nas faces – como eu fiz no mural Etnias que retrata os cinco continentes, por exemplo – também traz a mensagem de que todos somos interligados. Precisamos encontrar maneiras de tornar o mundo um lugar melhor. Cada um na sua medida, mas realmente chegamos em um ponto com tamanha violência que algo precisa ser feito. Estou fazendo minha parte em distribuir cores pelo mundo. Espero transformar o dia das pessoas e que as mensagens possam chegar em seus corações.