ARTE: Aecio Sarti a o “Céu de Querubins”

A melhor maneira de encontrar Aecio Sarti é em seu ateliê em uma das ruas estreitas, repletas de galerias de arte, ateliês e estúdios de artistas em Paraty, RJ. Suas obras vão de figuras de pescoços longos a la Modigliani a querubins pintados a óleo e carvão sobre lonas de caminhão que exercem um forte apelo naqueles que dão de olhos com essas obras. Aecio Sarti é um sergipano de Aracaju que se radicou em Paraty depois de ter vivido em vários lugares pelo Brasil e estudado arte no The Art Institute of Colorado, Estados Unidos. Suas obras contam com a presença constante da figura humana, ricas em detalhes, e, algumas vezes, retratada pela temática do duplo. Nos dias atuais, suas obras estão espalhadas pelo mundo, em paredes de amantes das artes.

Indo bem para o início como a arte e a pintura surgiram na sua vida? Vim de uma família de sete crianças criadas pela minha mãe, e desde cedo vi que eu tinha um olhar diferente dos meus irmãos. Eu acompanhava muito a forma poética com que minha mãe encarava a vida e o modo com que ela coloria seus dias, apesar da pobreza. A diferença é que eu transformava meus sonhos e minhas histórias em desenhos e pinturas. Aos 14 anos, comecei a pintar sobre madeira e vender esses trabalhos nas feiras da cidade. Acabei percebendo que as pessoas gostavam e entendi que eu queria ser artista.


Conta um pouco da sua trajetória… Sempre morou em Paraty ou a arte e estilo de vida te levaram para lá? Faz 12 anos que moro em Paraty. É muito pouco para o tanto que a cidade me ofereceu e por tudo que conquistei nesse lugar. Minha carreira e minha vida podem ser percebidas de duas maneiras: antes e depois da chegada a Paraty. Dos 14 aos 19 anos, ainda autodidata, pintava e vendia minhas obras. Aos 19 anos, de uma só vez, consegui vender todos os trabalhos que tinha naquele momento. Peguei o dinheiro e me mudei para os Estados Unidos onde estudei desenho publicitário. Voltando ao Brasil, em 1980, parei de pintar por conta da crise no país e da tristeza por ter regressado. Entrei em uma profunda depressão e por vinte anos fiquei longe da pintura. Procurei outro trabalho e assim foi, até que passei a sentir falta de muita coisa na minha vida. Tinha a necessidade de viver o tempo de menino que perdi por conta da dureza da vida. Então, em meados dos anos 2000 comecei a pintar “sonhos de criança”. Eram figuras muito coloridas, arredondadas, sempre representando histórias infantis e coisas que me agradavam e me traziam a saudade de um tempo que eu não tinha vivido adequadamente quando criança. Essas obras são visualmente muito diferentes dos trabalhos que pinto atualmente, mas marcam a época da retomada de minha carreira artística. Até que no ano de 2004, me mudei para Paraty e abri um atelier, no qual pinto diariamente até hoje.

Como surgiu a ideia para “Céu de Querubins”? E como chegou até a ideia da lona de caminhão? Há anos pinto sobre lonas de caminhão, usadas. Sou fascinado por histórias, e encontrei na lona um suporte carregado de tudo aquilo que acontece nas estradas. Cada marca, cada ponto de sujeira e cada remendo contam algo pra mim. Tudo isso me levou a pintar exclusivamente sobre lona, que, além do mais, ainda é visualmente linda. Isso começou a despertar em mim a vontade de viver uma história de caminhoneiro. Eu queria um dia seguir um caminhão e presenciar tudo que ele vivesse nas estradas. Me dei conta que a melhor maneira de fazer isso seria pintando uma lona inteira e cobrindo a carga de um caminhão real. Assim, eu e minha obra pegaríamos estrada Brasil afora. Mas ainda faltava a motivação pra tirar a ideia do papel. Até que meu filho, Daniel, veio trabalhar comigo e se encantou com a ideia. Nos unimos ao fotógrafo e documentarista Gustavo Massola e decidimos que dessa ideia sairia um filme. Encontramos um caminhoneiro que há anos faz o comercio de potes de barro entre o sertão e o sudeste brasileiro. Eles vivenciam diariamente a rotina das ceramistas da Bahia e passam por outras regiões incríveis do país, trocando e vendendo esses potes, que são usados para armazenar água. O roteiro do filme estava pronto. Faltava apenas eu pintar a lona e cobrir o caminhão. E assim foi. Nosso filme, é, na verdade, o registro de uma história vivida nas estradas brasileiras com uma pitada de arte.


Nesse projeto o que te toca mais como artista e como pessoa? Como artista, o projeto aumentou ainda mais minha crença na arte. A crença de que ela tem um poder sobre nós, e que ela escolhe nosso caminho. Costumo dizer para as pessoas que a arte se assemelha ao amor. Acho que toda criação da humanidade tem o amor como combustível, e junto com isso vem a beleza e a arte. Como artista, percebi que a arte se manifestou para que esse projeto acontecesse. Isso mexe comigo.  Saber que a arte tomou conta me deixa tranquilo, e quando estou tranqüilo, as coisas acontecem. Toda vez que assisto ao filme, que vejo a lona pronta, me emociono profundamente. Percebo que pra isso acontecer eu não precisei fazer nada, somente obedecer. Obedecer ao movimento da arte. Como pessoa eu me sinto orgulhoso, me sinto feliz. Olho e me espanto. Meu olhar também é de espectador. Eu consigo olhar de duas formas pra esse projeto. Como artista e como espectador.

O efeito modificador na vida daquelas pessoas simples do sertão te inspira de que forma? Isso é um acréscimo. É mais uma experiência que está guardada dentro de mim, e a qualquer momento, ela pode brotar e ser transformada em outra coisa. É assim que eu olho para essas pessoas. Uma lição de vida que está guardada dentro de mim, e que uma hora ou outra eu preciso buscar no meu “baú” e fazer ela ressurgir na minha vida em forma de histórias, de arte, de experiência.

O curta produzido por vocês foi indicado e ganhou prêmio. Vocês esperavam essa repercussão e reconhecimento todo? Como foi isso para vocês? Fizemos tudo com o maior carinho do mundo, sem muita definição do que poderia acontecer. Quando decidimos fazer um filme tínhamos certeza que iríamos mergulhar de cabeça para fazer algo realmente especial para todos nós. Eu sabia que seria algo bacana, mas não vislumbrava prêmios ou coisa parecida. Pensei que seria apenas uma obra a mais na minha carreira. Dois momentos me marcaram bastante em relação ao filme. O primeiro, foi quando ganhamos o primeiro prêmio. Meu filho me ligou falando que tínhamos sido selecionados para o Festival de Cinema de Santa Monica eu comecei chorar. Isso já era muito pra nós. Então, dias depois, quando veio a notícia que também havíamos sido premiados como melhor filme desse festival eu desmoronei, e até hoje eu carrego a lembrança daquele momento comigo. Outro fato marcante, foi assistir ao filme no festival de cinema de Paraty. Nesse dia muitos dos meus amigos estavam lá. Pessoas que acompanharam meu trabalho desde o início. Quando o filme acabou e eu vi aquelas pessoas aplaudindo em pé, algumas chorando, tive a certeza que o “Céu de querubins” já era um marco na minha vida. 



Com mais de 20 exposições entre a América do Sul, Norte e outros continentes, você se sente realizado ou realizando? Onde quer chegar mais? Essa é uma pergunta que eu gostaria que alguém me perguntasse. Tem alguma coisa muito estranha acontecendo dentro de mim. Parece que a minha alma pede algo novo. Eu estou procurando enxergar minha vida, ficar mais atento aos sinais. Me sinto realizado por tudo que fiz e por tudo que já me aconteceu até hoje, mas não gostaria que fosse só isso. Porque se eu partisse hoje, eu sentiria que não cumpri minha missão. Esse é meu grande medo. Não tenho a ambição de chegar em lugar nenhum, só quero continuar. Apenas cultivando e colocando pra fora aquilo que precisa ser colocado. 

O que te inspira? E quem te inspira? Eu sou como uma esponja. Tudo aquilo que me agrada, eu absorvo e coloco em minha vida: luzes, cores, movimentos, sons. A vida me inspira. O caminhar me inspira, o nascer do sol me inspira, o café da manhã me inspira. Tudo isso me faz refletir e me mostra caminhos. Em relação a artistas, muitos deles me inspiram. Desde os clássicos aos contemporâneos. Talvez a obra de Picasso seja a que mais me ensina, principalmente pela liberdade com que trilhou seu caminho na arte. Se a obra de um artista mexe comigo, acredito que, inconscientemente, ela acabe influenciando meu trabalho. Continuo seguindo minha linha e meu traço, mas tenho certeza que as pequenas mudanças que ocorrem em minha obra, com o passar do tempo, são reflexos do que absorvo do mundo, tanto na arte quanto fora dela.

 

Que dica você daria para quem vive esse universo da arte ou pretende mergulhar de cabeça na arte? Em primeiro lugar, é preciso acreditar que a arte é maior que o artista. Ela tem que ser maior que o próprio artista. Se você se sujeita a ela, ela cresce em você. Esse é meu primeiro conselho. Também acho que não é preciso buscar a polêmica, artifício que muitos artista usam para ficar em evidência. É preciso buscar a sutileza. Na sutileza, a arte fala sempre mais alto. De maneira prática, também é importante estar em um lugar onde o artista possa ser visto. A arte precisa ser democrática e as pessoas tem que ver o que o artista está fazendo. E o último conselho, é que o artista mergulhe na arte de cabeça. E pra isso, é preciso coragem! 

Depois dos Querubins qual sua próxima parada? Meu coração e minha alma não têm paradas. Escrevi alguns contos e, apesar de não ser escritor e não ter a literatura em minhas mãos, gostaria de dar vida a essas histórias de alguma maneira, através de exposições ou até filmes. Será que um dia vou acabar parando e fazendo um pouco mais de cinema? Não sei. A única certeza que tenho é que não posso parar. Não posso parar de pensar, nem de sonhar. Cada dia minha alma pede mais. Estou com quase 60 anos e fico pensando: “Meu deus, e se eu morrer aos 70?”. Dez anos não seria suficiente pra fazer tudo que eu quero. Mas é assim, não mandamos no futuro. Não temos domínio sobre o nosso sopro de vida. 

Assista o documentário “Céu de Querubins”:


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