HORIZONTE: ILHA DE FERRO – O PARAÍSO NA IMENSIDÃO DO RIO SÃO FRANCISCO

Por Andrea Hunka

Fotos e coprodução Sofia Hunka

Partimos, entre malas, anseios, inquietação sobre o ponto de chegada, a estrada se revelava um oásis a cada paragem, o sol ainda transpondo as frestas da janela do carro, dávamos a sensação de um novo amanhecer, o céu se desdobrava em tons azuis furtivos e as nuvens passeavam desconfiadas, em flocos eram levadas pela força de um vento medonho. Era tudo uma trilha formatada pelas paisagens que iam se transformando em tons de verde canavial, montes tropicais a agrestes visões, era uma sensação de uma estrada individual, uma vivência própria, mesmo que feita em dupla, nossos olhos fitos estavam em busca de revoadas de Garibaldis, pássaro desta região. Sim, avistamos os Carcarás, que com suas unhas arranhavam, de vez enquanto, o asfalto, em pulos intrépidos. Sua atitude falcão nos deixavam encantadas.

O dia vai descendo sua cortina e o entardecer pelo sertão nos traz um desbunde de variações cromáticas. O infinito ganha tons laranjas, róseos, como se diz nas bandas de cá e o espetáculo chega ao seu cume, quando os olhos mareados encontram entre os seixos e o cromo aveludados em mil tons acinzentados, terrosos, o verde esmeralda do Velho e terno, Chico, sim, Rio São Francisco, explode. Depois de adentramos uma picada, uma estrada de barro, sobre os assobios agudizados e olhos que nos espiam nos galhos que a caatinga desenha, depois de atravessarmos os rios intermitentes, secos nessa época, o fôlego nos permite mais um segundo, um “oceano” doce e verdejante nos embriaga, tínhamos certeza de que aquele lugar era um portal. Ilha do Ferro, entre poucas ruas que se desenham numa equação única, cheia de uma matemática nada provável e casas que perfilam no transcorrer de nossa passagem, entre uma e outra marcadas com a Cruz num sinal do amor, arrependimento, fé, humildade, misericórdia, resistência, sinceridade e verdade, de famílias da ordem cristã, são um convite a um mapa afetivo, os desenhos fixados em nossa frente tem colorações que vão se modulando e o sobro dos ventos ergue o calor de um abraço amoroso.

Chegar aqui é como encontrar o desejado, um aconchego, um colo, o tempo não se mensura na hora do bater dos pinos, mas nos acordes das mãos dos pescadores, no vai e vem das marolas provocadas pelos barcos na busca dos curimatãs-pacus, carinhosamente chamados de xiras, nas mãos das senhoras que esfregam as roupas nas águas mornas, enquanto crianças brincam com tanta intimidade e respeito por essa imensidão. Na nossa morada por esses dias, uma casa cujo nome nos leva as alturas, Estrelinha, abrimos a nossa esperança, os passos nos permitiam uma passarela munida de uma galeria de artesania concreta, a visão era emoldurada por portais que estavam ornados com objetos com traços multicoloridos, mimos por todos os lados, um perfume estava no ar e o desenho do horizonte nos dimensionava os altos a distância que criavam um vale único, entremeando o Chico. Assim é esse lugar, cheio de meiguice, de ternas lembranças, de retorno ao lar. Dalton, Maria Amélia e Joana traçam aqui uma curadoria, um projeto de vida excepcional, dando ternura, elegância ao contorno de tantos artistas.

RESPIRANDO ARTE

Ilha do Ferro é um tributo a arte a céu aberto que foi esculpido sem pretensões e devido a isso nos permite um passeio tranquilo, sem pressa. Quero avisar, nada aqui está pinçado na velocidade, mas sim, no compasso de um caminho suave. As portas de cada residência emergem talhas, canivetes afiados no corte da madeira trazida dos galhos que se dobram nas veredas, e elas não perecem, mas ganham vida, entre as lascas que se modulam em obras de arte. Pelo sol intenso e na resistência , na afinidade por esse solo, nasce aqui uma florzinha, a Boa Noite que de singela só tem a aparência, mas como o seu povo é forte e resiliente, cresce bela, em tons incrivelmente fortes, num solo rústico, ela desenvolve e pelas linhas e traçados de mãos sagazes, emergem em um bordado a sua honra e as senhoras não cansam fazer, embaladas em suas cadeiras postas no meio da praça local ou em suas calçadas, caminhos de mesa, paninhos de pratos, alvos e coloridos são tecidos enquanto a última notícia local é comentada.

Na ilha, o contorno de nossas vidas criam uma dimensão outra, aqui a cada caminho que fazemos a sensação de que a nossa própria está sendo revisada. As casas tem contornos fabris das vilas que nasceram pela necessidade de abastecer os viajantes, a beira das trilhas de trens ou dos portos que nasceram nos lastros do Chico vão sendo reabertas por novos moradores, pessoas que querem e almejam um novo amanhecer. Juntos antigos moradores e novos vão conduzindo esse lugar sem tantas interferências cosmopolitas, aqui se conhecem pelo nome, pela casa onde se estar, existe a caderneta de compras, o caminhar para ouvir um dedo de prosa com os mestres e poder observar sua arte, sua métrica.

Ir à casa de Vanvan e com ele e sua família sentir as cores que nos invadem e em sua obra nos remetem reisados, tronos e realezas do povo, barcos que provavelmente foram e são seu viver. Sim, vá se chegando a porta do mestre Vadinho e com sua família sentir a sensibilidade de seus mobílies e suas obras em miniaturas que trazem tanta singeleza. Comer um quebra queixo, no bar de Zé Bobô e tomar uma água geladinha, caminhar, perambular entre portas e prosas… Subir uma ladeira e deixar o chinelo varrer a capoeira, abrir o portão de madeira e visualizar peças únicas que se desdobram em uma tecnologia de movimentos e lirismos, suas árvores que pulsam vida, Vieira, aquele mestre que com a voz mansa e o jeito maneiro, nos fala da velocidade que trabalha, sempre inspirado no tempo da primazia das coisas.

Entrar no espaço do mestre Aberaldo é marcar um encontro com suas peças focadas na figura humana, com formas peculiares, corpos intencionalmente deformados, dando um ar fictício, fantasioso aos mesmos, é mesmo que entrar numa atmosfera idílica. Mas não se preocupe, nessas andanças não vai passar vexame, vai ter os pães de fermentação natural da jornalista Cíntia Ribeiro, na casinha Pirambeba e uma prosa gostosa com ela e sua esposa, a museóloga Carmem Lúcia, um copo de água e um docinho dos frutos daqui sempre são ofertados, caprichos desse solo, gentilezas de seu povo. Ao pino do meio-dia, na pousada da Vana, podes se deliciar com uma comida cheia de sabor e muito carinho dos que servem. Comemos uma galinha guisada e foi sendo degustada com os encontros e novas amizades, que entre histórias surgidas aqui já era um elo em nossa vida.

Amanhecer na Ilha tem aquele convite de banhar nas águas de Chico, mas antes passear no quintal, catar limão e acerola, fazer um suco, tomar um café com uma visão plena do remanso, vendo os barquinhos coloridos percorrerem as ternas águas desse irmão que a mim é muito próximo, Chico. Depois pegar a barca de Dão, barqueiro, artesão e sonhador das boas causas, sair adentrando essas bandas com ele, tem um sabor de conhecer coisas pouco exploradas, aquela visão que só os quem amam esse lugar tem, assim partimos… sobre a trolagem do motor, o Rio cauteloso era um verde intenso, a limpidez de suas águas nos dimensionava a profundidade de suas áreas, e as margens margeiam povos diversos, filhos das terras alagoanas e sergipanas. Paramos num povoado, Mata da Onça, a ânsia de soltar e viver nos sacode, pés ao chão, caminhar aos olhos cálidos de seus residentes, bom dia pra lá, bom dia pra cá, copas de árvores balançam ao vento, numa casinha vibrante, mestre Clemilton nos espia, logo chamando ao passeio em seu espaço e suas peças inusitadas, o cheiro nos embriaga e sua família a cozinha, com sua irmã ao fogão prepara um bode cheio de sabor, lógico, sentamos e entre risos, brincadeiras e histórias fomos sendo apresentados as obras, a autoralidade e a vida típica de uma família daquele lugar.

UM SOLO SAGRADO

Seguimos o nosso rumo e a imaginação nem alcançava o que viria, Ilha dos Anjos, é preciso suspirar e pedir licença. Paramos a frente de uma prainha com areia amarela reluzente, a vista uma árvore imponente sem folhas, que mais parecida uma escultura, nos indicava a subir um caminho pedregoso. Nossos pés iam repassando um caminho esculpido entre xiquexiques, facheiros, coroa de frades, caroás e mandacarus, os raios solares transpunham nossa pele e os pingos de suor vertiam as costas, mas havia algo que precisávamos saber daquele lugar. Entre essas veredas pilhas de pedras se amontoavam em montes aqui e acolá, e Dão com um semblante mais casto agora vai à frente, os nossos corações vão tomando um batimento mais lento, estávamos pisando em um solo sagrado, Dão rompe o silêncio e balbucia: “aqui foi um cemitério de crianças há muito tempo”, e então, um clarão, estávamos num lugar de anjos, as pedras em montes, eram sinais desses tempos. Fomos caminhando e o cume, uma pequena igreja consagrada a São Francisco, um ponto branco acima arrodeado do abraço do Rio, a visão era uma prece. Ficamos ali em silêncio por alguns instantes, numa oração mental de agradecimento. Depois fomos entendo as palavras que ali tecemos, os recados dados e recebidos, voltamos tão cheios de nós mesmos e de nossa graça pela vida que riamos e festejávamos nosso encontro em reconhecimento. Dão nos falava das histórias e nós, abríamos o corpo e a alma para sentir cada vida vivida ali. Momentos tão únicos que entre os banhos que tomamos, até gatos siameses foram nos saudar, nunca irei esquecer a história dos gatos de olhos intensamente azuis da Ilha dos Anjos. Grata, Dão. Findamos esse dia vendo o sol descer aos montes, nas águas quentes de Chico, éramos um ponto que emergíamos nesse universo. Nossa finitude dimensionou toda a grandeza desse instante.

LUGAR ÚNICO DE MUITOS ENCANTOS

A noite desceu o manto e quero falar, aqui houve-se os acordes de Joaci, com seu pandeiro sacudindo os corpos do povoado e numa casa que pulsa uma curadoria artista ímpar, o chamado é a luz vermelha, o Salão, o bar/galeria que acende nos convidando não só ao olhar sobre as peças garimpadas, mas a cerveja super gelada e um papo agradabilíssimo com o proprietário André Dantas, que numa decisão mais que sabia deixou os arquétipos concretos de Nova York para aqui fixar sua vida e realizar, além de seus anseios pessoais, um plano com recursos próprios e muita paixão, a CABRA ILHA DO FERRO, projeto de residência artística, que vem incentivando a vivência, a troca de ações e atividades de forma orgânica pelos que aqui estão a habitar.

Não quero deixar de salientar que esse lugar deve a um inestimável morador, senhor, mestre Fernando Rodrigues dos Santos que acreditou na mais sólida certeza humana, sua capacidade criativa, sua missão conduziu seu povo a toda essa explosão cultural, mesmo não sabendo ontem tudo isso ia rumar, levou até o fechar de seus olhos, o desejo de sua alma e veio visionário, aqui ele firmou seu nome e até hoje sua família, em nome de sua filha Rejania tem as portas abertas e nas mãos o legado deixado, a sabedoria aprendida, e estes vão nascendo e seguindo os rumos do ancestral. Aqui nascem e se criam sumidades, Bebeu, Antônio Sandes, Camille , Guilherme, Lucas, Zé Crente, Petrônio, Yang, Faguinho, Fernando, Domingos Sávio, Gedson, Bedeu, Valmir, Jordânia, Urânia, Elvia, mestres e mestras que aqui faço representar tantos outros, brotam nesse solo do sem fim, vão dia a dia desvelando suas habilidades, pois nessas terras um galho de craibeira, mulungu e imburana podem ser uma ave, um tronco um ser gigante, as ramas descascadas são árvores que se designam as luminárias, os barcos daqui navegam em galerias do mundo, portas guardanapos são bonecos coloridos, um mundo mágico de seres de madeira que os meus olhos ganham vida e eles meio em cochichos contam segredos daqui.

Aos poucos sentíamos que tínhamos que nos despedir, e como uma traquinagem dos contos recitados ao estalar das faíscas das fogueiras mais ardentes, o melhor estava por vim, fechar a porta da casinha que nos acolheu e caminhar até a igreja de Santo Antônio, agradecer e suspirar antes tudo isso, foi nos permitindo a saudade sem ainda termos partido, mas precisamos ir, e o caminho era sobre o olhar curioso, sabíamos que precisamos conhecer Morena, e foi com esse desejo que paramos na segunda vila de casas no meio da estrada rumo à nossa volta. Foi enigmático. Mal sabíamos que aquela senhora fazedora de bonecas de pano, tinha a mais importante mensagem de toda a nossa viagem, ali o universo nos preparou um instante mágico.

Ao olhar Morena, senhora de 96 anos que nos recebe entre panos multicoloridos, agulhas, linhas e miçangas fazendo tudo em uma forma tátil porque a visão já não a entrega a fidelidade das coisas e nos mostrou mesmo com a sua deficiência auditiva a memória impecável ao nos recitar um causo sobre Lampião… estávamos pávidas, mas nada se compara quando suas mãos bentas de rezadeira pegaram os raminhos de matruz trazido pela sua nora e sobre rezas ditas como sussurro, nos benze. Tudo era claro, Morena na sua lucidez aos seus muitos anos nos fez ver com uma calidez que havia mais que toda a beleza natural daquele lugar, havia ali um desdobramento para cada um que se chegue, como uma fresta particular que se abre a quem de fato quer sentir, a quem de fato que se permitir, assim é – Ilha do Ferro.